Um tema, duas penas
Pretendo comentar hoje dois magníficos textos de dois dos maiores nomes da literatura nacional.
De um lado, a flor: a beleza, o singelo, a pureza, o ideal. De outro, a água: sem forma, absorvente, destruidora.
Deste tema rico em interpretações, dois grandes nomes da poesia nacional extraem dois textos aparentemente contraditórios.
A aversão pela água, na poesia de Vicente de Carvalho, bem como seu anseio por ela, na de Gonçalves Dias, lembram-me um casal de namorados, o eterno descompasso em que homens e mulheres repetem século após século seu desencontro fatal, como duas raças alienígenas mutuamente estranhas. Podemos pensar no yin-yang, o feminino e o masculino; quando um quer, o outro não quer.
À primeira vista, contudo, já é evidente o caráter narcisista destes dois poemas, na imagem do espelho das águas. É o ser humano a mirar-se na realidade e a vislumbrar, de um lado, em Gonçalves Dias, um ideal, e em Vicente de Carvalho, a morte que o amedronta.
Frágil ser humano, tão belo, tão efêmero, tão à mercê da vida sob a qual sente-se com tão pouco controle, enfrentando a indiferença ou a oposição feroz.
De forma que estes dois poemas, que a princípio parecem opostos nos remetem à inexorabilidade do destino. A água é o inconsciente humano, a força desconhecida que controla nossa vida, e também, pela ausência de forma, a imagem do Deus devorador ou receptivo, que nos recolherá em seu seio após a morte inevitável.
Com que sensibilidade, com que agudeza trabalham estes dois mestres e quanta filosofia se esconde atrás de uma situação aparentemente banal: a flor... a fonte...
Deixemos agora de lado estes frios argumentos e deleitemo-nos com estas belas imagens. Afinal, quando escreveram estes versos, estou quase certa de que nossos poetas não pensaram em nada disso. Poetas não usam o raciocínio, usam a imaginação. A pensar, preferem sonhar.
Sonhemos, pois...
\"Não Me Deixes!\"
Gonçalves Dias
Debruçadas nas águas dum regato
A flor dizia em vão
À corrente, onde bela se mirava ...
\"Ai, não me deixes, não!\"
\"Comigo fica ou leva-me contigo
Dos mares à amplidão;
Límpido ou turvo, te amarei constante;
Mas não me deixes, não!\"
E a corrente passava; novas águas
Após as outras vão;
E a flor sempre a dizer curva na fonte:
\"Ai, não me deixes, não!\"
E das águas que fogem incessantes
À eterna sucessão
Sempre dizia, e sempre embalde:
\"Ai, não me deixes, não!\"
Por fim desfalecida e a cor murchada,
Quase a lamber o chão,
Buscava ainda a corrente por dizer-lhe
Que não a deixasse, não.
A corrente impiedosa a flor enleia,
Leva-a do seu torrão;
A afundar-se dizia a pobrezinha:
\"Não me deixaste, não!\"
A Flor e a Fonte
Vicente de Carvalho
\"Deixa-me, fonte!\" Dizia
A flor, tonta de terror.
E a fonte, sonora e fria,
Cantava, levando a flor.
\"Deixa-me, deixa-me, fonte!\"
Dizia a flor a chorar:
\"Eu fui nascida no monte...
\"Não me leves para o mar\".
E a fonte, rápida e fria,
Com um sussurro zombador,
Por sobre a areia corria,
Corria levando a flor.
\"Ai, balanços do meu galho,
\"Balanços do berço meu;
\"Ai, claras gotas de orvalho
\"Caídas do azul do céu!...
Chorava a flor, e gemia,
Branca, branca de terror,
E a fonte, sonora e fria
Rolava levando a flor.
\"Adeus, sombra das ramadas,
\"Cantigas do rouxinol;
\"Ai, festa das madrugadas,
\"Doçuras do pôr do sol;
\"Carícia das brisas leves
\"Que abrem rasgões de luar...
\"Fonte, fonte, não me leves,
\"Não me leves para o mar!...\"
As correntezas da vida
E os restos do meu amor
Resvalam numa descida
Como a da fonte e da flor...
Sonia Rodrigues