Estátua de Carlos Drummond em Copacabana (Rio), de Leo Santana, com um verso do poema "Mas viveremos"
A BRINCADEIRA MAIS SÉRIA
Não tenho vergonha de dizer que faço versos nem como os faço. Todo dia a minha antena funciona: emoção diante da vida ou dos próprios pensamentos, a cota de anos, de dias, de sacrifícios, de prazeres e virtudes, enganos e erros. E ainda topamos com as perplexidades diante das variações do Imposto de Renda e da situação financeira, ou da política – esta porcaria que nos procura diariamente, desde o nosso próprio emprego até o nosso salário e o dos filhos. E estes continuam sempre nossos filhos pelo amor e pela pior situação econômico-financeira do que nós, uma prova de que o mundo vem piorando e, com ele, nosso Brasil. É aqui que se faz crítica em poesia. Entram em ação as paródias e os epigramas, a sátira a permear as imagens de nossa linguagem, cuja forma pode ser soneto, trova, haicai, balada, poema livre etc. É preciso ter cuidado para que o dia-a-dia não se banalize em nossa letra poética. A linguagem da poesia é diferente. Se você quer escrever um artigo é só usar as palavras e frases comuns. Se quer fazer uma confissão, da mesma forma. Não importa que aquele seja no tom sarcástico e este no sentimental, individual.
Não posso ficar com a frescura de dizer que sou um bom poeta, daqueles que o verso/poema/canto salta da cuca e vai direto para a pauta do papel pela esferográfica como criança que nasce de parto normal e de mãe sadia. Tenho minhas pequenas e grandes dificuldades. Elejo temas que continua a glosar em todas as poesias de uma fase. Começo poema que nunca termino, por medo ou incapacidade, não importa. Acompanho os passos de meus poemas, monto-os e os desmonto ao belprazer de minha brincadeira intelectual com as palavras. É assim que se arma uma brincadeira. É assim que se faz poesia também: brincando. Certa vez brinquei de trabalhar um poema e consegui cerca de 10 diferentes formas, evocando o mesmo tema. Não faz muito tempo, foi quando eu e o poeta Hardi Filho construíamos o nosso livro “Tempo Contra Tempo”, editado em parceria, que continua fazendo sucesso de crítica e de leitores. Ontem o fato se repetiu, agora com uma poesia que nem sei se vou publicar. Goza de mim, leitor? Pois é. E não faço bazófia. Se for riqueza, é apenas de autocrítica. Talvez defesa. Não tenho grande memória, supro-a com a fertilidade da imaginação, com o trabalho, com o suor do rosto. Anotações mais anotações. Depois, o poema lírico sai das comportas do “eu”, como sabemos, e a forma é que deve universalizá-lo por metáforas surpreendentes, não aquelas já velhas e surradas, catacréticas e cheias de cataratas que obstruem a visão do leitor.
Sofrer? O poeta é sofrimento e alegria, quase parodiando Fernando Pessoa, em seu “o poeta é um fingidor”. Mas compreendamos. A inteligência pode ser a comum, a que tenho. Depois que o homem inventou a Enciclopédia, o Dicionário, o Computador, sem falar no disco, na gravação, no papel em branco, na tinta e na caneta – o coração e a cabeça devem ficar disponíveis para o amor e o balanço (da dança, da rede ou da mão quando escreve), para que a inspiração corra livre e desimpedida durante o dia. Eu caminho, fora e dentro de casa, e caminhando me encho de “inspiração”. A noite é insondável para a poesia, como a morte. Se uma coisa puxa a outra, digo que meu trabalho “artesanal” segue noite adentro, em busca da melhor forma, do melhor som, da melhor cor – o poema tem cor, podem crer. É a imagem em metáfora ou metonímia, em comparação ou por oposição, correndo para fixar-se em letra de forma, em companhia com o senhor já insondável conteúdo, a mudar de roupa e a querer parecer outra coisa que não ele – sendo ele mesmo. Contexto vivo e palpitante, e nele, a poesia necessária como ar que se respira.
Francisco Miguel de Moura