MUITA DOSE DE MÃE II
O fim dos sapatinhos de lã, a primeira sandália, as lições de bem-comer só com colher, os passos, os percalços, os traços na parede que era limpa: as maravilhosas aptidões artísticas: borrões de tinta; as pequenas malcriações; as grandes malcriações; a bola na vidraça; as sílabas adivinhadas; as palavras não faladas, mas ouvidas; os pensamentos; a manha, a birra, os passeios na calçada; o vaivém do balanço, a gangorra, o monte de areia; essa sujeira venturosa da infância livre; a “van” da escola; o jardim, o cheeseburger; as mil tranqueiras; a desordem; o tênis furado; a escova nunca usada; o par de brincos; os imensos pacotes de fotografias; a nota baixa, a nota alta; as boas e as más companhias; a pavorosa espera dos olhos abertos enquanto não ouve a chave na fechadura; as meninas do vizinho; os meninos do vizinho; os sustos da brecada do carro; os abraços, os beijos, dados e não dados; os carinhos não recebidos.
A sombra do futuro verdejante; o emprego onde ganha uma ninharia; a creche; o grupo escolar; o chamado na secretaria; as provas não semanais, mas de cada dia; o sonho; o pesadelo; as barras que se desmancham, a barra que fica cada vez mais pesada; o maço de cigarro; a mesada; as reclamações; a puberdade; a impertinência da adolescência, a apatia pela TPM da namoradinha; ficar ou namorar?; a chave do carro para uma volta no bairro, a camisinha escondida dentro de uma meia na gaveta; o novo personagem na família: Sua Majestade; a estremeção; a liberdade; a porta batida com estrondo; a porta não fechada; a situação aparentemente sem saída; a ida; a volta; a partida; aquela exata inconsciência das arestas do mundo; a queda; a angústia; aquele prever que é quase um sentimento inato. A ingratidão e o perdão. Assim, misturando o suco, se no final ainda houver um sorriso, mesmo que sofrido, a mãe existe.
Rubens Shirassu Jr.