Presente de dia dos pais

Eu já tinha prometido a mim mesmo não mais escrever sobre meu pai, falar do Alzheimer e do seu estado de saúde fragilizado, mas não consegui evitar. Me deu uma coceira enorme nos dedos quando vi aquele ser deitado e amarrado a uma cama de hospital, aquele ser que um dia foi meu pai.

Numa quinta-feira, final de julho, ano 2011, meu pai teve alta da UTI na hora do almoço, mas só lá pelas 15 horas é que pude ve-lo, num apartamento a que ele tem direito pelo plano de saúde. Agitado, muito mais magro do que o habitual, a boca seca e aberta, com uma sonda entrando pelo nariz, ele nem de longe lembrava o homem que lá na minha infância me agarrou de jeito e me deu uma boa sova daquelas bem dadas, só por causa da bagunça que fiz com as ferramentas dele. Engenheiro que era, sempre gostou de ter às mãos as
ferramentas para fazer pequenos consertos na casa. Artista que sou, nunca gostei de arrumar as coisas em seus devidos lugares. Vejo beleza no caos, enquanto ele sempre gostou da ordem e da arrumação. Isso sempre foi motivo de atrito entre nós. Quando ele voltava pra casa à noite, vindo do trabalho na fábrica, eu fingia que estava fazendo alguma coisa de útil, pra que ele não viesse me cobrar alguma lição de casa ou tentar me ensinar alguma palavra nova em ingles. Eu tinha verdadeiro horror de ter que imitar aquele queixo encolhido do sotaque britânico, que ele achava muito mais elegante e superior ao americano.

Olhei para suas mãos amarradas, inchadas e roxas pelo excesso de anticoagulante que ele toma há quarenta anos – não há uma maneira menos cruel de se manter um idoso com Alzheimer na cama, sem que ele se fira a si próprio? A indústria farmacêutica inventou fórmulas mágicas para prolongar a vida, mas a qualidade ainda deixa a desejar…

Qualidade sempre foi um ponto de honra para meu pai. Quando ele via meus cadernos da escola ficava possesso. Eu os enchia de rabiscos surrealistas, foi a maneira que encontrei de driblar o tédio que sentia dentro da sala de aula, principalmente nas disciplinas de exatas. Eu registrava as aulas de uma maneira caótica e artística, ele implicava com isso e me mostrava as anotações escolares dele. Uma escrita perfeita, impecável, com a letra parecendo impressa, de tão caprichada que era. Acabei assimilando a caligrafia dele por osmose, de tanto que ele insistia que a escrita precisa ser legível e sem rasuras. Errou? Rasga e começa tudo de novo em outra folha, nada de apagar com borracha – dizia ele! Claro que isso era no tempo em que ainda se escrevia a lápis… Já com os meus desenhos ele era bem mais tolerante, até elogiava meus aviões com cara de salchichas voadoras! Talvez imaginasse que assim incentivava um possível gosto do seu primogênito pela engenharia aeronáutica. Se assim pensava, o projeto abortou logo de cara, pois a bronca que levei por causa das ferramentas foi justamente porque eu estava construindo meu primeiro avião de madeira!

O apartamento no hospital até que é espaçoso, mas barulhento e muito frio, gelado mesmo, constrastando com a temperatura do inverno quente lá de fora. Procurei pelo controle do ar condicionado, tentei subir para os 23 graus mas não consegui. Achei um cobertor no armário e o estendi sobre o lençol fino que cobria meu pai, que sempre foi um cara muito friorento. De tão friorento, ele chegou até a inventar uma geringonça à qual chamou de esquenta-pé. A coisa era feita de uma lata de Nescau encapada com flanela, uma lampada de 15 W e dentro da lata um interruptor pra desligar quando esquentasse demais. Vendi muitos desses esquenta-pés na lojinha que minha mãe mantinha em casa, sempre abastecida com demais os produtos que ele fabricava na sua pequena indústria. No display da loja havia copos térmicos de plástico, jarras diversas, tampas para garrafas de refrigerante e cerveja, aquários com neve artificial, quebra-cabeças, abridores multiuso, brinquedos variados, uma infinidade de produtos de todas as cores, que enchiam meus olhos e meu imaginário infantil.

Eu gostava de ir à fabrica aos sábados. Pegávamos a kombi branca, saíamos da região da Avenida Paulista e em dois tempos chegávamos ao prédio feio, triste e sujo, localizado no bairro do Pari. Eu adorava ficar vendo entrar numa ponta da máquina o polietileno granulado, que era aquecido, derretido e prensado, para magicamente aparecer na outra ponta em forma de peças que mais tarde seriam coladas e virariam brinquedos e utilidades domésticas. Lembro até hoje do cheiro do tolueno, o solvente da cola, devo ter tido meus primeiros baratos ali naquelas mesas, ajudando na montagem desses objetos. A finalização dos brinquedos era a parte que mais me divertia, eu gostava de trabalhar no meio da mulherada arrebanhada ali mesmo na região. Não via o tempo passar em meio àquela salada de sotaques nordestinos e mediterrâneos, com uma conversa bem diferente da que eu ouvia em casa… Mas odiava quando meu pai me punha sentado na mesa do escritório, que para mim mais parecia a antesala do inferno, e se punha a demonstrar teoremas e me explicar o que eram senos, cosenos e tangentes. Verdade seja dita, aprendi alguma coisa durante essas lições. Por exemplo, entendi muito bem e me foi útil muitas vezes na vida prática, a noção de que o caminho via hipotenusa é sempre mais curto do que pelo lado dos dois catetos. Mas de resto, era terrivelmente desgastante ficar à mesa escutando a voz irritada do engenheiro, diante da incompetência do artista para entender o mundo do jeito quadrado que ele via…

O cobertor que estendi sobre o lençol não provocou nenhuma mudança no semblante do velho. Ele permaneceu indiferente, o olhar distante não manifestou nem gratidão, nem reconhecimento e nem alívio. Minha mãe disse que pacientes de Alzheimer não reclamam de dor, mas duvido que não sintam o desconforto. O ar condicionado continuava secando e esfriando o ar. Olhei com preocupação para os lábios do meu pai, que já estavam começando a descascar. Besuntei manteiga de cacau e umedeci sua língua com gaze embebida em água, imaginando que assim aliviaria um sofrimento e aflição que talvez fossem mais meus do que dele. Me dei conta da inversão de papéis, agora era ele a criança a precisar de cuidados. Lembrei dele fechando as janelas do meu quarto, acendendo a espiral de fumaça contra os mosquitos e aparecendo no meio das noites de inverno pra me botar mais um cobertor. Ele nunca me abraçou, nem me beijou. Fui eu quem quebrou esse gelo, bem mais tarde, depois que aprendi a tocar outras pessoas, ajudado por umas aulas de Biodanza que resolvi fazer, lá pelos meus 28 anos mais ou menos. Foi nessa época que ele mudou comigo, passou a me considerar, me percebeu como um igual, antes eu era o filho que não tinha dado certo… ou pelo menos assim eu achava.

Mas o nosso encontro mesmo, se deu quando meu pai se aposentou e passou a frequentar o sitio que eu morava. Ele tinha lá a sua casona no alto da montanha e e eu a minha casinha no fundo do vale. Sua diversão era passar o dia inspecionando as cercas, as valetas das estradas e as mudas de frutíferas que espalhou pela propriedade. Pegava uma enxada, um saquinho de NPK e outro de veneno contra saúva e rodava o sitio inteirinho, todo feliz com a descoberta das coisas simples da vida. Como ele ficava sozinho, passou preparar o seu almoço, mas deparou-se com um problema: não tinha a mínima noção de como se comportar diante de um fogão! Não é exagero, ele não sabia nem como fritar um ovo, sempre houve quem fizesse isso para ele! Resultado é que nas nossas conversas, volta e meia ele me perguntava como preparar um macarrão, uma couve, um ovo, uma batata, essas coisas básicas, mas que pra ele eram um bicho de 7 cabeças! Eu me divertia ensinando o velho, vendo aquele senhor setentão a anotar uma receita culinária como se fosse uma fórmula matemática! Detalhe, eu nunca comi da comida dele, muito espartana e sem imaginação pro meu gosto… Mas ele era feliz, chegou a me dizer que só depois de aposentado é que entendeu o por que de eu ter ido morar na roça e levar a vida tranqüila que eu levava. Considerei este o maior elogio que ele jamais me fez.

O frio não dava trégua, e eu recém saído de uma gripe, estava tremendo que nem vara verde naquele quarto. Fucei no armário e descobri um pijama de nylon azul escuro, que minha mãe havia trazido mas que ele acabou não usando. Não tive dúvidas, vesti aquela coisa de plástico mesmo, de contato desagradável com a pele. E imediatamente um cheiro conhecido me invadiu as narinas, despertando memórias há muito adormecidas. O cheiro era o mesmo que eu sentia quando ele me me apoiava os braços, ao cometer a temeridade de ensinar um garoto de 10 anos de idade a atirar com uma carabina Urko calibre 22. Verdade que meu pai tinha sido militar, tinha intimidade com armas, mas foi um risco muito grande. E o garoto, lógico que com o incentivo dado pelo pai, cometeu o crime de assassinar algumas dezenas de gatos que vinham fuçar na horta no quintal da família, na alameda Sarutayá 333, em São Paulo. Até hoje não sei como esse episódio passou em branco e nunca houve uma reclamação de nenhum dos vizinhos, dando falta de algum bichano estimado! Pura sorte, nem gosto de lembrar, mas parece que tenho que escrever, até como uma confissão de culpa de alguém que quer se redimir.

Nas nossas conversas falamos de muita coisa, mas nunca perguntei o que ele tinha na cabeça quando deixou uma arma de fogo nas mãos de um menor desacompanhado. Mas ele se abriu comigo, até muito mais do que eu imaginava quando me aproximei dele. Falamos de como ele escolheu minha mãe pelo tipo físico que, ao ser combinado com o dele, geraria uma prole idealmente perfeita, (eu lembro das risadas que dei quando ele me contou isso com a cara mais séria do mundo!) De como ele gostaria de ter brigado menos com os filhos e ter sido mais amigo do que carrasco. Falamos de como ele tinha dificuldade de se fazer entender pelas pessoas mais próximas e de que seu sonho seria passar seus últimos anos suando a camisa no sítio e não na cidade. Ele falava muito, gostava de falar, emendava uma história na outra, contava várias ao mesmo tempo e isso às vezes me entediava, até porque algumas eu já sabia de cor e salteado. Mas se fosse hoje, com a curiosidade e tempo de que disponho, teria deixado o velho falar, deixaria ele recontar em detalhes como foi sua infancia em Nova Europa, como eram aqueles tempos cheios de dificuldades mas repletos de aventuras. Deixaria ele contar, pela enésima vez, que era filho de imigrantes que aportaram no Brasil com as mãos abanando e que chegaram a roubar bananas, no Porto de Santos, para não morrerem de fome. E deixaria, mais uma vez, que ele falasse do orgulho que tinha dos pais, que com muito trabalho e dedicação, conseguiram dar curso superior aos 7 filhos que tiveram.

Alguém bate à porta e não espera permissão,  já vai entrando. É a enfermeira com a refeição da noite, a ser administrada através do catéter introduzido em sua narina, o jeito mais esquisito e antiprazer de se alimentar que eu já vi na vida!… Com paciencia de mãe ela montou o aparato, ligou o motorzinho, mas ele nao pegou de jeito nenhum, precisou de várias tentativas e algumas pancadas na carcaca antes de comecar a bombar o preparado de cor indefinida, à base de soja e frango; parecia até o Ford 29, das histórias da querida e idolatrada Nova Europa, cidade natal do meu pai, um amontoado de prédios, perdido na alta araraquerense, mas que na boca dele ganhava contornos de uma Terra do Nunca caipira. Ou teria sido a sua Pasárgada? Não sei, só sei que lá ele foi feliz, lá ele era cuidado e mimado por um bando de mulheres fantásticas, suas irmãs e sua querida mae, as fadas que faziam as vezes de embaixatrizes entre ele e o mundo real.

Tocou o telefone no quarto, era minha mãe que chamava, interrompendo a viagem que eu fazia com meu pai. Ela sempre foi assim, abrupta e decidida, um modelo robusto de mulher, que sempre soube o que quer. Escolhida a dedo pelo meu pai, à imagem e semelhança de sua mãe e irmãs. Meu pai é Taurino, minha mãe Escorpiana, Marte e Venus, juntaram-se a fome e a vontade de comer. Tenho certeza de que foi amor à primeira vista, um fogaréu forte o suficiente para produzir as brasas que ainda hoje aquecem a relação dos dois. Tenho certeza que jamais tiveram duvida, mesmo com todas as brigas que atravessaram, que as juras que trocaram no altar foram sinceras e para vida toda.

— Chico, eu já estou chegando pra ficar aí com seu pai. Você já pode ir andando, mas me faz um favor quando sair? Passa em casa e veja se eu fechei o portão eletrônico, saí tão depressa que não me lembro se acionei o controle.

Minha mãe sempre faz milhares de coisas ao mesmo tempo e vive pedindo ajuda pra conseguir cumprir todos seus intentos. Nas atuais circunstâncias eu não podia e nem devia negar isso a ela. Saí do hospital e fui à casa dela. O portão estava mesmo aberto e pedi ajuda do guarda, o Valdeci, que sabe como fecha-lo manualmente. Naturalmente, falamos do estado de saúde do meu pai e ele comentou como gostava de conversar com o dr Ruiz, sempre animado e espirituoso, principalmente com os não familiares. Contei em detalhes a condição do meu pai e o Valdeci fez um comentário no final:

— Puxa vida, seu pai um homem tão ativo, agora nessa situação. Como será isso pra ele?

Não sei, Valdeci, só sei que eu não quero essa vida pra mim, não! Faço qualquer coisa mas não fico nessa situação de dependência dos outros de jeito nenhum. Que graça tem viver nesse estado?

O Valdeci me olhou bem nos olhos, deu uns 5 segundos antes de falar e soltou a bomba…

— Chico, olha só, eu conversava muito com o seu pai e há dez anos ele falou a mesma coisa que você tá falando pra mim agora.

— …

Chico Abelha