Mãe Natureza

Chico Buarque dos desencontros

Mamãe costumava me contar sobre seu sonho de moça... - Alô? - “A sua lembrança me dói tanto, eu canto pra ver se espanto esse mal.....” - Quem tá falando? - “Mas só sei dizer um verso banal. Fala em você, canta você, é sempre igual...”
Houve uma época em que os telefones sabiam guardar segredos. Não havia bina ou celulares, e uma mulher podia receber ligações apaixonadas de um desconhecido. Hoje, os telefones odeiam os amores secretos. São insuportavelmente indiscretos e mal amados. Naquela época tínhamos a cumplicidade da telefonia. Éramos quatro ou cinco amigos. Fazíamos dezenas de ligações, e em todas elas eu tocava sempre a mesma música. Jamais alguma das mulheres desligou. Todas ouviam até o fim a canção Desencontro, de Chico Buarque. Cada um de nós tinha direito a escolher uma mulher para quem ligar. Minha função era tocar e cantar. Os outros escolhiam as mulheres, ligavam e ficavam na torcida para que elas não desligassem antes do fim da canção. A curiosidade feminina não lhes permitia desligar. A maior parte delas ouvia no mais absoluto silêncio. Algumas poucas não conseguiam ouvir até o fim sem perguntar várias vezes quem era. - Alô? - “Sobrou desse nosso desencontro um conto de amor sem ponto final...” - Quem tá falando? - “Retrato sem cor jogado aos meus pés...” - Faaala!! - “E saudades fúteis, saudades frágeis, meros papéis...” De nada adiantava perguntar. Não obtinham nada além da canção. No final apenas desligávamos. Era verdadeiramente lindo. A loucura era tanta que, quando não tínhamos mulheres específicas para quem ligar, simplesmente abríamos a lista telefônica e escolhíamos um nome feminino qualquer. Neste caso, inclusive, eu podia estar cantando para alguma senhora com idade para ser minha avó, ou mesmo para um travesti: - Alô? - “Não sei se você ainda é a mesma...” - Não, não, eu mudei bastante, você não me reconheceria mais. Ou então, para algum pai descontrolado de ciúmes: - Alô? - “Ou se cortou os cabelos, rasgou o que é meu...” - Vou te rasgar é de faca, seu vagabundo! Absurdos a parte, assim corriam nossas noites, entre desencontros, whisky, telefonemas e o violão. Fico agora imaginando o que se passou na cabeça de cada uma das mulheres para quem ligamos. Considerando que todas ouviram até o fim, suponho que tenham gostado. Sendo assim, quantas devem ter perdido a noite imaginando quem seria o apaixonado? Quantas se viram subitamente recuperadas de alguma desilusão amorosa? E quantas não devem ter caído doente com febre e tremores? Não sei a quantas delas fizemos bem ou a quantas fizemos mal. Não sei se Chico Buarque e seu Desencontro funcionariam hoje nesses tempos de celular, bina, axé e música sertaneja. Não sei de nada. Sei apenas que cantei milhões de vezes Desencontro sem ter a mínima idéia de quem estava do outro lado da linha. E repito: nenhuma jamais desligou. - Quem tá falando? Por favor, quem tá falando? - “ Se ainda tem saudades e sofre como eu, ou tudo já passou, já tem um novo amor, já me esqueceu.” A vida é realmente bela!

Osias Canuto

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