Verão, calor sufocante. Minha rua tem prédios de um lado, e do outro uma encosta de pedra com mais de 50 metros, coberta de árvores, matagal, rochas enormes. Todo mundo que vem aqui acha uma beleza e suspira: “Como deve ser bom viver junto da Natureza!”. Esquecem os desatentos que a Natureza, do ponto de vista quantitativo, tem um bilhão de besouros para cada mico-leão-dourado ou boto-cor-de-rosa. No verão, quando a chapa esquenta, o mundo coleóptero se assanha. Vai ver que o verão é, também para eles, a época melhor para o acasalamento, a caça às fêmeas, o roçar obsceno das superfícies quitinosas. Por volta do meio-dia o ar em frente à janela do meu escritório fica parecendo o espaço aéreo de Pearl Harbor naquela manhã inesquecível.
Pois bem: logo agora um desses bichos emburacou zoando como um helicóptero, com um vibrar ensurdecedor de élitros, esbarrando nas estantes, arremetendo com insensatez contra a luz fluorescente (que vive sempre acesa, mesmo ao meio-dia – senão o terceira-idade aqui não enxerga o teclado) e investindo de encontro aos meus óculos, que o bicho-voador talvez imagine serem câmaras do FBI invadindo sua privacidade insetóide.
Pois não é que o danado, tentando fugir pela janela, acaba se encalacrando do lado direito, entre as duas lâminas de vidro, uma delas corrediça?! Fico vingado ao vê-lo naquela situação kafkeana, preso entre dois campos-de-força invisíveis (deve ser assim que ele interpreta os vidros – parece um besouro jovem, que lê ficção científica). Mas ele esperneia tanto, se debate tanto, que acabo me condoendo. Com uma régua cuidadosamente inserida, empurro-o para fora da armadilha, apago a fluorescente (para que o idiota entenda que o sol está lá fora) e vejo-o partir, rumo ao Bar dos Besouros, para se vangloriar de sua aventura.
Por que fiz isto? Acho que fiz por pena dele, solidariedade entre viventes, e porque, de certa forma, “um besouro também é um ser humano”. Eu tenho o dom da empatia, de me colocar no lugar dos outros (por isso sou péssimo para negociar contratos – sempre fico com pena da gravadora, da editora, da rede de TV, etc.). Salvei o besouro para que ele fosse feliz, mesmo sabendo que a felicidade dele não aumenta em nada o meu pecúlio. Ou talvez aumente, sim. Rendeu-me uma crônica, como a borboleta de Brás Cubas rendeu a Machado um capítulo.
O ser humano é uma ilha e é o mar que a cerca. Até o bem que fazemos aos outros nunca ultrapassa as fronteiras de nós mesmos. Nem um serial killer nem Madre Teresa de Calcutá chegam jamais a saber o mal ou o bem que fazem. Ah, que se dane. Fui no YouTube e fiquei vendo Cassia Eller cantar “Blackbird”