Coimbra, 28 de Março de 1986
Sexta-feira Santa. A Paixão de Cristo rememorada de diversas maneiras. A ler, a ver e a ouvir. Não há evento do mundo tão bela e profusamente celebrado. A cegueira do povo, a ambiguidade dos governantes, o sectarismo religioso, a via-sacra da injustiça, a exaustão do sofrimento, o semelhante solidário, a ternura feminina, a crucificação e o medo da morte. A história agónica de todos os homens vivida sombólica e paroxisticamente por um só. A verdade e a profundidade das alegorias! Espelhos ao mesmo tempo fiéis e mágicos, é nelas que nossa condição se reflecte trivial e sublimada. E encontra conivência ou lenitivo nas horas felizes ou infelizes. Nas de provação, as mais amiudadas, é o absoluto que dá conforto ao relativo. Nunca nenhuma desgraça que nos aflige atinge a dimensão trágica do mito.
Miguel Torga
Do livro: Diário, Vols. XIII a XVI , 1999, Herdeiros de Miguel Torga e Publicações Dom Quixote, 1999, Portugal