UM DOM DE FAMÍLIA

            Meu bisavô era um bruxo da Calábria.
            Ninguém na família sabia exatamente o que ele fizera, mas a Inquisição o queimara na fogueira. Meu avô resolveu, então, fugir com a família para o outro lado do mundo, e estabeleceu-se em Santos.
            Aqui no Brasil, ter poderes mediúnicos era coisa corriqueira, e ninguém se importou muito com os talentos do meu avô, ele era apenas mais um a benzer, curar, sonhar com o futuro e conversar com os mortos.
            Quando o morro de Santa Therezinha desbarrancou, em meados do século passado, ninguém estranhou que meu avô acordasse de madrugada e enviasse filhos e vizinhos a buscar os parentes que moravam nas casas ao sopé do morro; nem os parentes, que estavam a dormir, discutiram ao serem acordados; simplesmente pegaram seus trens e saíram de casa, a tempo de verem sua casa ser completamente soterrada pela enorme pedra que deslizou morro abaixo. De quebra, ainda salvaram outras famílias da vizinhança. A tempestade começara de madrugada, e vovô, que sonhara com a queda da pedra sobre a casa da tia Maria, exatamente sobre o quarto das crianças, aparentemente acordara para evitar a catástrofe.
            Eu cresci observando conversas telepáticas entre meu pai e minha mãe. A princípio, minha mãe se incomodava um pouco com o que chamava ‘falta de privacidade mental', mas aos poucos, acostumou-se e achou até conveniente. Ela resolvia, por exemplo, fazer algo especial para o lanche da tarde e dava-se conta de que faltava algum ingrediente na despensa – presunto, queijo, coco ralado, salsicha, azeitona, fosse o que fosse. Ela nem saia para comprar, na certeza de que papai o traria, e ele, realmente, entrava em casa dizendo:
            – Querida, trouxe o queijo que você queria, vamos ter pastéis hoje? - e mamãe estava justamente abrindo a massa de pastel sobre a mesa da cozinha.
            Mamãe só ficou nervosa no dia em que entrou no quarto, viu meu pai, falou com ele, voltou para a sala, só para constatar que ele não havia ainda entrado em casa, e achou que havia tido uma alucinação. Quando papai chegou em casa, ele perguntou, da porta, a rir, se ela o vira parado ao lado da bicicleta às nove da noite, e explicou que estivera fazendo algumas experiências mentais. Mamãe ficou tão brava que não falou com ele por mais de uma semana.
            Eu mesma passei por uma experiência semelhante, com meu pai, que me deixou furiosa. Crescendo em uma família como esta, compreende-se que as crianças nunca mintam, nem guardem segredos de seus pais – como poderiam? O sentimento de falta de privacidade na adolescência pode ser muito, muito desconfortável. Eu costumava, por isso, dizer meias verdades. Por exemplo, dizia que ia até a farmácia quando ia mesmo à banca de jornal – e passava na farmácia para comprar qualquer coisinha, e tinha então a sensação de não ter mentido e de, ao mesmo tempo, ter feito algo secreto, bem meu, bem íntimo. Porém, certo dia, eu resolvi visitar uma colega que não via há muitos anos. Uma amiga em comum, que eu encontrara na véspera, me dissera que ela viria com a família naquele fim de semana. Meu pai perguntou-me aonde ia, eu falei que ia ao Gonzaga fazer compras, e ele, bravo, me disse:
            – Tem certeza? Porque se pretende ir visitar Maria das Dores vai perder a viagem, pois ela não veio.
            Eu fiquei sem fôlego. Há mais de três anos não via minha amiga, e, durante todo este tempo, nem falara sobre ela com ele. Claro que fui e dei com a cara na porta. Por algum motivo que só fiquei sabendo mais tarde, a família tivera de adiar a viagem na última hora. Mas meu pai sabia...
            Eu me interessava, por esse motivo, por todos os assuntos esotéricos, principalmente a literatura científica sobre paranormalidade. E fiquei muito curiosa pela ordem Rosa Cruz, pelos livros tibetanos, pelos livros espíritas, pela Cabala, enfim, eu procurava por todos os meios desenvolver em mim o dom familiar, em vão, pois, em mim, ele parecia ter pulado uma geração.
            Meu pai, percebendo minha ansiedade, me explicou que o dom não vem para quem quer, e sim para quem dele precisa e merece. E que eu deveria me dedicar ao aprimoramento de minha alma. E eu, então, dediquei-me ao estudo fascinante da filosofia. Afinal, por mais yoga que eu fizesse, minhas meditações não me revelavam nada mais além de uma calma interior absolutamente silenciosa, extremamente agradável e relaxante, mas sem nenhuma conotação telepática, psíquica, mediúnica ou paranormal, em qualquer aspecto.
            Quando minhas filhas nasceram, envolvi-me, pelas contingências do dia a dia, com as coisas mais terra a terra da vida e afastei-me das coisas do espírito. Até um dia em 1997, em que, adolescentes, as minhas duas garotinhas resolveram que iriam porque iriam a uma apresentação de um conjunto musical, a banda Raimundos, no Clube de Regatas Santista. Todas as suas amiguinhas iam estar lá. Elas não queriam ficar de fora. E, como um leão, eu disse um não absoluto. Um sonoro, firme, inabalável não, que nem eu entendi.
            Meu amigo Cláudio ia levar seu filho e os filhos de alguns vizinhos. O clube era perto de casa, em bairro seguro, outros adolescentes do nosso prédio também iam, também com seus pais, eu nem precisaria ir levar as meninas, bastava pedir uma carona, fazíamos isso com frequência, uma levava os filhos das outras, alternadamente, para um lugar ou outro, em um rodízio que ficava bem para todas as famílias...
            – Queridas, acreditem, eu sei do que estou falando. – mentira, pois eu não tinha a menor ideia do que estava dizendo, mas eu tinha certeza de que elas não deveriam ir. Finquei pé em minha negativa.
            Aquela noite foi horrível. Amuadas, as garotas trancaram-se no quarto, silenciosas, sem dúvida para falar mal da mãe, e chorar um pouquinho pelo show perdido. E eu me sentia a bruxa malvada dos contos de fadas.
            Na manhã seguinte, acordei tarde, pois custara a conciliar o sono. Dois pares de olhinhos assustados e chorosos me aguardavam na cozinha, e ganhei abraços apertados das duas mocinhas tristes, que já haviam visto o noticiário da TV e atendido a telefonemas matinais.
            – Como você sabia, mamãe?
            E, tropeçando nas palavras, me informavam das novidades, atropelavam os fatos da véspera.
            O clube fora invadido por uma multidão de fãs que, todos ao mesmo tempo, tentaram passar por uma escadaria no momento da saída; mais tarde verificou-se que alguém esbarrara em uma fiação solta, levara um choque, gritara, e iniciara-se o pânico. Todos quiseram correr e sair ao mesmo tempo, e a escadaria ruiu. Muitos adolescentes foram esmagados a morreram no acidente, inclusive uma coleguinha de escola de minhas filhas – se elas estivessem juntas, também teriam se ferido gravemente, ou, quem sabe, morrido.
            De alguma forma, eu soubera. E assim soube que eu também sou intuitiva.
            Por mais duas vezes, desde então, tive pressentimentos que se revelaram, a cada vez, mais claros e precisos. E soube o que meu pai adivinhara: para mim, o dom não veio pleno, para beneficiar terceiros. Eu protejo meus entes queridos. Tenho, vez por outra, sonhos inspiradores.
            Minha filha mais velha é mais sortuda. Compra precisamente os números premiados das rifas. Já ganhou computador, viagem de navio, e até passagem de avião.
            Diferente a cada geração, a misteriosa força está lá, acrescentando um delicioso encanto a nossas vidas.

Sonia Regina Rocha Rodrigues
(crônica classificada em 13º lugar no concurso de Crônicas Bigtime Editora 2013)