Alma Verde gentil que te partiste

Temo me tornar um especialista em necrológio de livrarias, um tipo assim de necrobibliocronista (pois, se morrem as livrarias, morrerão os livros e, com eles, morrerão os escritores). Para muita gente, uma livraria é muito mais do que um mero estabelecimento comercial que vende livros. Uma livraria, por menor que seja, transpira uma atmosfera meio solene, meio sagrada. Ali dentro encontra-se tudo o que há de melhor e de pior na civilização e no ser humano (ali dentro está a vida). E, convenhamos: quanto pior, melhor para a obra literária, para o labor artístico do ficcionista e para o prazer do leitor que sabe ler e busca qualidade, grandiosidade e originalidade. Que busca o sabor incomparável do bom livro, da boa história, para o mais agradável emprego do seu tempo.

Mas livrarias, como tudo o mais no mundo, também morrem, o que é uma contingência natural das coisas que vivem. O problema se instaura no momento em que as perdas superam os nascimentos. No caso das livrarias, a impressão persistente, incômoda, é que elas são fechadas, que elas sucumbem em série contra uma ou outra que, muito raramente, surge num centro comercial, por exemplo, para vender aquilo que integra as listas dos mais vendidos, aquilo que se vende no exterior, o que, no geral, equivale a dizer que vende cada vez mais livro e menos literatura, cada vez mais o global, que existe no mundo todo, e menos o específico, o regional, que só consegue existir, quando muito, em exíguos territórios, quase guetos de fanáticos desesperados. E isso quando se sabe que qualidade independe de marketing , de merchandising e de publicidade maciça.

Até onde alcança a memória de quem vive no bairro desde os anos 70, o Córrego Grande somente há poucos anos passou a contar com uma livraria, discreta e pequena, é verdade, mas uma livraria de verdade. Depois de ancorar pelos lados do Balneário e pela praça da Trindade, a Alma Verde fundeou quase na UFSC, quase no Pantanal, quase na Trindade, mas efetivamente no Córrego. Pronto: tínhamos enfim a nossa livraria no bairro. Faz poucos anos apenas - e agora ela se foi, tão cedo desta vida , com atividades encerradas no último dia 6, fechada por algum desses motivos tão comuns aos negócios e aos fenômenos microeconômicos. Se ainda tivessem surgido, nesses poucos anos, duas outras casas destinadas ao culto dos livros, ou ao menos uma biblioteca pública, podia-se considerar ter havido um saldo positivo, um balanço (de esperança) em favor das letras, dos livros e da leitura. Mas não, tal não sucedeu. Fechou a Alma e fechou também, na calçada oposta, a primeira locadora de vídeos do bairro.

O Thomaz e o Daniel levaram a Alma Verde até onde deu, até a exaustão absoluta. Buscaram mesmo uma maneira de ressuscitar a casa na forma de repasse do acervo e das instalações para um outro livreiro, mas, ao que tudo indica, as negociações não lograram êxito.

O Córrego, assim, perdeu a sua livraria.

Surge, então, a pergunta fulminante: se livrarias são fundamentais para a difusão das artes, em especial, mas não exclusivamente, da literatura, por que as políticas públicas e os planos de Estado para a cultura não concedem tratamento diferenciado, como pequenos templos isentos de impostos e com subsídios ao seu funcionamento, a essas livrarias de bairro que vendem mais, muitíssimo mais, do que simples produtos comerciais - e não cobram dízimo dos seus fieis nem a doação de cartões de crédito com as senhas abertas?

Amilcar Neves