O ABOLICIONISMO
(Fragmentos)

"Em primeiro lugar, a parte da população nacional que descende de escravos é, pelo menos, tão numerosa como a parte que descende exclusivamente de senhores; a raça negra nos deu um povo. Em segundo lugar, o que existe até hoje sobre o vasto território que se chama Brasil foi levantado ou cultivado por aquela raça; ela construiu nosso país. Há trezentos anos que o africano tem sido o principal instrumento da ocupação e da manutenção do nosso território pelo europeu, e que os seus descendentes se misturam com o nosso povo. Onde ele não chegou ainda, o país apresenta o aspecto com que surpreendeu aos seus primeiros descobridores. Tudo que significa luta do homem com a natureza, conquista do solo para a habitação e cultura, estradas e edifícios, canaviais e cafezais, a casa do senhor e a senzala dos escravos, igrejas e escolas, alfândegas e correios, telégrafos e caminhos de ferro, academias e hospitais, tudo, absolutamente tudo que existe no país, como resultado do trabalho manual, como emprego de capital, como acumulação de riqueza, não passa de uma doação gratuita da raça que trabalha à que faz trabalhar. ”

(...)

"Entre as forças em torno de cujo centro de ação o escravagismo fez vácuo, por lhe serem contraditórias, forças de progresso e transformação, está notavelmente a imprensa, não só o jornal, mas também o livro, tudo que diz respeito à educação. (...) Mas, para fazer vácuo em torno do jornal e do livro, e de tudo o que pudesse amadurecer antes do tempo a consciência abolicionista, a escravidão por instinto procedeu repelindo a escola, a instrução pública, e mantendo o país na ignorância e escuridão, que é o meio em que ela pode prosperar. A senzala e a escola são pólos que se repelem."

(...)

"Em primeiro lugar, o mau elemento de população não foi a raça negra, mas essa raça reduzida ao cativeiro. (...) Não pode, para concluir, ser objeto de dúvida que a escravidão transportou da África para o Brasil mais de dois milhões de africanos. (...) Que durante três séculos a escravidão, operando sobre milhões de indivíduos, em grande parte desse período sobre a maioria da população nacional, impediu o aparecimento regular da família nas camadas fundamentais do país; reduziu a procriação humana a um interesse venal dos senhores; manteve toda aquela massa pensante em estado puramente animal; não a alimentou, não a vestiu suficientemente; roubou-lhe as suas economias, e nunca lhe pagou os seus salários; deixou-a cobrir-se de doenças, e morrer ao abandono; tornou impossíveis para ela os hábitos de previdência, de trabalho voluntário, de responsabilidade própria, de dignidade pessoal; fez dela o jogo de todas as paixões baixas, de todos os caprichos sensuais, de todas as vinditas cruéis de uma outra raça."

(...)

"Quando mesmo a emancipação total fosse decretada amanhã, a liquidação desse regime daria lugar a uma série infinita de questões, que só poderiam ser resolvidas de acordo com os interesses vitais do país pelo mesmo espírito de justiça e humanidade que dá vida ao abolicionismo. Depois que os últimos escravos houverem sido arrancados ao poder sinistro que representa para a raça negra a maldição da cor, será ainda preciso desbastar, por meio de uma educação viril e séria, a lenta estratificação de trezentos anos de cativeiro, isto é, de despotismo, superstição e ignorância. O processo natural pelo qual a escravidão fossilizou nos seus moldes a exuberante vitalidade do nosso povo durou todo o período do crescimento, e enquanto a nação não tiver consciência de que lhe é indispensável adaptar à liberdade cada um dos aparelhos do seu organismo de que a escravidão se apropriou, a obra desta irá por diante, mesmo quando não haja mais escravos ."

Joaquim Nabuco

Do livro: O Abolicionista (publicado em 1883). Leia a obra na íntegra em: http://www.culturabrasil.org/zip/oabolicionismo.pdf