DESCASO OU DESAMOR?
Quando eu ainda era criança e minha avó foi morar conosco, eu não compreendia bem o porquê dela estar tão deprimida com a morte do meu avô. Ela quase não falava e ficava sentada na sua cadeira fazendo crochê, remexendo nas gavetas, comendo feito um passarinho, sem a menor felicidade em estar ali. Relembrava com saudade a sua casa em outra cidade, dizia que queria ir embora, de volta para o seu lar, mas minha mãe, com toda a paciência, procurava convencê-la de que aquilo não era o ideal, pois ela já não podia ficar sozinha. Acho que a distância do seu verdadeiro lar deixava-a mais deprimida. Deve ser muito triste você ser obrigado a largar suas coisas assim, deixando tudo para trás. Acho mesmo que isso causa um trauma maior do que a própria viuvez em si. Depois, a saudade já é um sentimento irremediável e, para algumas pessoas, ficar junto às lembranças é um paliativo.

Mas o que aconteceu com minha avó, acho que acontece com a maioria dos idosos que em determinada época da vida são obrigados a enfrentar as mudanças. Os que têm mais sorte, ficam com os filhos e os outros... bem, isso é uma história muito triste. Muitos são abandonados em asilos ou em casas de saúde duvidosas, sem o menor trato e carinho.

Nossos velhos, tão úteis e indefesos, mereciam uma sorte melhor. Nós mesmos podemos lhes dar esta sorte.  Basta um pouquinho de boa-vontade, generosidade e amor.

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O mar é melancólico. O bater das ondas em um ritmo que pouco varia... o barulho de água, o cheiro de sal... e esse sol escaldante que acompanha a brisa serena dessa manhã. Um dia azul! Azul de “céu de brigadeiro”, como falam por aí. Estou sentado aqui, nesse banco à beira-mar, e nem sei se amanhã retornarei. Vida de velho é tão instável. Na verdade vivemos por viver. Vivemos esperando a morte. Um dia é só mais um dia. Nada mais. O homem não foi feito para ficar sozinho. O marido sempre deveria morrer antes da esposa. As mulheres são mais capazes de viver sem o homem. É tão difícil essa adaptação a novas regras! Imagina que aquela enfermeira quer me dizer até a que horas devo tomar banho! Até no meu aparelho de barbear, ela mexe. Outro dia, apagou a luz do meu quarto sem me perguntar se podia. Isso eu não pude admitir. Joguei minha bengala contra a porta. Ela nem ligou. De manhã, entrou no quarto, recolheu a maldita bengala e encostou-a na cama, novamente. Não disse nada. Parece que debocha de mim. Pensa que sou criança. Hum!...

Costumava correr por essa praia inteira quando jovem. Muito do meu físico e da minha saúde é por conta dos exercícios físicos que sempre fiz. Hoje, não. Hoje, para chegar até aqui já é uma luta! Às vezes demoro a voltar e eles mandam alguém  me buscar. Tenho sorte por me deixarem sair sozinho. Aquele meu vizinho não sai do quarto. Também, só fala bobagens! Caducou de vez! Coitado! Um dia desses, fez xixi na cama. Todos riram dele. É assim que vive um velho: servindo de chacota para os outros.

Outro dia, meu neto, depois de dois anos, veio me visitar, com meu filho. Ele tem 6 anos. Ao entrar no meu quarto disse para o pai: “Tem um cheiro estranho aqui, pai. O que é isso?” Houve um branco e um silêncio geral. Crianças são perversas, mas é sem querer. Um dia vão ser velhas também. Penso que ele pressentiu o cheiro da morte. Só pode ter sido isso. Meu quarto é limpinho, apesar de ter gente que diz que velho cheira esquisito. Aquela mulher de branco manda que eu tome banho todo dia! Mas, ainda não descobriu que eu só abro o chuveiro e fico sentado no vaso folheando uma revista. Ha, ha, ha, ha! Tomar banho dá muito trabalho. Tenho medo de escorregar! Depois, velho não suja muito. Não faço nada!...ha, ha, ha, ha, ha!

Quando vim morar aqui, meu filho sentou-se comigo no sofá da minha antiga sala e disse: “Papai, a mãe morreu e o senhor não pode viver sozinho aqui. Lá em casa é pequeno e a Marilda trabalha fora. Quem vai cuidar do senhor?” Tentei argumentar, dizendo que então eles poderiam mudar para o meu apartamento que era maior e coisa e tal, mas, na verdade, o problema não era espaço. Eles não me queriam mesmo por perto. Ainda me enganei por um período, achando que meu filho estava fazendo o melhor para mim. Não era isso. As pessoas não entendem que o melhor para um velho é estar perto dos seus. Mas a paciência dos jovens é curta demais para entender isso e o amor é egoísta e imaturo ainda. Naquele dia, quando a porta bateu atrás dele, fiquei sentado no sofá por horas a fio pensando e recordando momentos singulares da minha vida. Fiquei viúvo depois de cinqüenta e dois anos de casado. Minha mulher, única na minha vida, morreu depois de um tombo de um banquinho ao subir no guarda-roupa para procurar uma caixa de jóia escondida. Imagina, morrer assim! Bateu com a cabeça na quina da cama e depois de três dias em coma não resistiu. Se eu soubesse que iria perdê-la por causa de jóias, teria jogado tudo fora. O que adiantou tanto esconder? Teve dias que ela não lembrava onde as escondera. Hum! Até na lata de açúcar aquelas jóias já andaram. Nem eu me lembrava também. Ficávamos o dia inteiro procurando a maldita caixa. Para quê? Deu no que deu. Ela morreu.

Hoje, eu estou olhando aquela nuvem grande feito um algodão branco no céu e lembro-me dos cabelos dela. Minha velha era vaidosa com seus cabelos! Estavam sempre arrumadinhos. Ela ainda arrumava os meus. Quantas vezes eu chegava de manhã cedinho no banheiro e minha pasta de brilhantina já estava pronta. A pasta tinha um ponto que só ela sabia dar. Lembro-me do dia seguinte à sua morte. Misturei a pasta de um jeito que ficou horrível. Joguei tudo fora e fiquei descabelado mesmo. Custei para acertar o tal ponto de novo.

Um dia, comecei a andar na rua perto de casa e perdi o rumo. Esqueci aonde ia. Voltei para casa, sentei no sofá e fiquei pensando, pensando, pensando e desisti. Não lembrava mesmo o que iria fazer na rua. Três dias depois me lembrei. Ia ao cemitério. Ao enterro de um vizinho. Só lembrei porque fui chamá-lo para jogar damas e a mulher dele atendeu à porta. De preto. Chorando. Ainda bem que lembrei antes de perguntar por ele! Aproveitei e fiz visita à viúva.

O pior me aconteceu no final. Deixei uma panela no fogão e ela queimou inteirinha. Eu estava lendo jornal na sala e não senti cheiro nenhum. Também, tenho uma rinite alérgica que não me deixa sentir cheiro direito. Meu vizinho de baixo chamou os bombeiros. Ouvi a sirene tocando na minha porta. Corri para a janela e perguntei a um passante o que tinha acontecido. Ele disse que minha casa estava incendiando. Agora, lembrando-me de tudo, dá até vontade de rir. Mas, não foi fácil. Meu filho brigou comigo. Disse que eu estava ficando caduco e que iria pôr meu apartamento à venda. Não demorou muito e vi toda a minha casa sendo desmontada pela Marilda. Eles levaram tudo. Vim com uma mala de mão e mais nada. Até meu relógio de bolso ele levou. Disse que aqui alguém poderia roubar. Em uma outra ocasião, ele brigou comigo por causa de dois lenços. Sim, dois lenços. Acreditam? O lenço que eu ponho no bolso direito é para assoar o nariz e o lenço do bolso esquerdo é para guardar a dentadura quando fico cansado dela. Ora bolas, meu filho disse que eu já estava confundindo os lados e misturando os lenços. Ele acha que eu estou maluco. Fiz isso a vida toda. Confundindo? Ele é quem está confundindo a vida dele com a minha! A pergunta que faço dentro de toda a minha senilidade é que se não sirvo para nada, por que ainda vivo? Deus não poderia ter me esquecido aqui. Não eu, seu servo fiel, cumpridor dos meus deveres. Deveria existir uma razão para ter me deixado aqui sem minha velha. Nunca tomei conta de mim sozinho. Saí da barra da saia da minha mãe. Caí na barra da saia da minha mulher. Agora, na barra da saia dessa enfermeira maldita. Mulheres! Todas mandando em mim! Até na hora do meu banho!

Outro dia, estava vendo uma pelada aqui na praia. Garotos riram de mim. “Pernas de Pau!”, gritei. Se eu fosse mais moço, mostraria a vocês como se joga bola! (com o dedo, fiz aquele sinal masculino). Continuaram rindo. Virei de costas. Ri também! É assim que me divirto!

Eu queria ter tido uma filha. Uma mulher sempre tem mais paciência e amor pelos pais. Minha mãe já dizia: “Filhos das minhas filhas, meus netos são; os dos meus filhos, serão ou não”. Mas não adianta reclamar. Esse tipo de experiência só se aprende vivendo. Depois, não posso julgar todas as noras do mundo pela minha. Ela também vai ser velha um dia. Ela só, não. Todos vão ser velhos um dia. Todos deveriam pensar com mais carinho no idoso. Tantas experiências guardadas e desperdiçadas, por questão de preconceito, veja só. Minha cabeça não anda muito boa, mas conheço velhos que até hoje trabalham como caixa de mercado, no balcão de farmácia e em diversas atividades que podem realizar com responsabilidade e destreza. É só uma questão de justiça, caridade e boa-vontade. Não estarei mais aqui nesse mundo para ver isto. Porque o homem só se dá conta dos seus erros quando estes se voltam contra quem errou.

Paciência!

É, minha velha... Que saudade! Olho para essa praia e vejo você de maiô, saindo da água. Uma sereia. Minha sereia! Fico imaginando todos os homens da praia olhando para você e me invejando! Iriam me perguntar:
— Mas ela não está ficando velha?

E eu responderia:
— Está. Mas eu estou ficando cego. Ha, ha, ha, ha!

Aqueles meninos jogando bola, não sabem de nada. Pernas de pau. Vou ter que voltar para clínica agora senão aquela enfermeira vem me buscar. Droga de bengala, está agarrando na calçada. Velho não é um traste. Velho é o futuro dos homens. De todos os homens. Só o que me incomoda é a saudade da minha família. Só isso!

O resto eu não ligo. O resto é resto.
As lembranças, vó. Elas todas têm seu jeito. Seu jeito de vó, Maria.

Claudia Villela de Andrade

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