Um verdadeiro milagre
Os dois velhinhos formavam um par muito simpático. Ambos eram muito conhecidos nas redondezas. Ele, Teodoro, um ancião forte, sacudido, alegre e vivo. Possuía a sabedoria que as lidas, a enxada, a natureza e a lavoura, além de paciente observação, deixaram-lhe na alma, simples e feliz. Ela, a benzedeira mais famosa da região, apelidada desde mocinha de “ Dona Bondade “. Seu nome também traduzia a qualidade do epíteto: Angélica. Assim foi batizada.
Conheceram-se ainda crianças, namoraram, casaram-se. Veio uma prole numerosa – doze filhos – cinco meninas e sete meninos.
À custa de muito trabalho conseguiram criá-los e educá-los. Os mais moços continuavam ao lado do pai e da mãe, trabalhando e vivendo à maneira da roça. Alguns constituíram família e viviam por perto. Todos se ajudavam e se amavam verdadeiramente.
A gente do lugar sabia da união e felicidade daquela família.
Dona Bondade era parteira, era quem aconselhava os doentes e aflitos, quem preparava remédios caseiros, tão eficientes quanto os comprados na farmácia da cidade mais próxima.
Seu Teo era a sabedoria em pessoa, bom para todos, conciliador, sabido. Ninguém conseguia lhe passar a perna. Tinha inteligência de sobra para resolver charadas, questões complicadas e orientar jovens e adultos. Muitos só decidiam fechar negócios depois de uma boa conversa ao pé do ouvido com ele.
Avançados em anos, seu Teo e Dona Bondade, partilhavam do mesmo amor e alegria da juventude. Eram um casal companheiro e apaixonado.
O tempo, no entanto, começou a pesar. Principalmente para Dona Bondade. Passou a sofrer de dores nas costas que nem suas rezas e poções mais poderosas podiam afastar. Os médicos da cidade muito menos. Diziam que gozava de excelente saúde, não chegavam a nenhum diagnóstico preciso acerca das dores.
Teodoro sofria ao lado da mulher, disfarçando a angústia. Além disso sempre soube fazê-la rir, nas situações mais difíceis.
Pegava da enxada e, resignado, ia cuidar da plantação. Mexia aqui e ali, consertava o espantalho. Olhava as galinhas, os patos, limpava o chiqueiro, tangia o pequeno rebanho. Mantinha tudo na mais perfeita ordem, sempre sorrindo e conversando com todos.
Um belo dia, depois das tarefas da manhã, Teodoro encostou-se a uma árvore frondosa, uma enorme amendoeira, após comer a refeição carinhosamente preparada por Dona Bondade.
Envolveu a marmita e os talheres com o lenço, bebeu da água fresca da moringa e adormeceu...
Dormiu de roncar.
Seus sonhos não eram nada diferentes do cotidiano, prazerosamente simples...
Viu-se diante de um sujeito, com ares da morador de cidade grande. Talvez um doutor, um engenheiro, um advogado, um comerciante... Quem poderia saber?
O estranho bem apessoado, dirigiu-se a ele de forma amistosa e educada.
- Então, você é o homem mais estimado destas bandas, não é?
Não posso me queixar de ninguém, respondeu Teodoro.
- Sem inimigos, família criada, todos com saúde...
Graças a Deus, disse o ancião, fazendo o sinal da cruz.
O estranho se assustou um pouco com as respostas e o gesto, mas foi adiante...
Veja Teodoro – é o seu nome – estou certo?
Seu Teo começou a desconfiar daquela criatura. Caiu em si e exclamou, mentalmente: valei-me São Miguel, que este aqui não é outro, senão o príncipe da mentira!
O comandante em chefe dos anjos surgiu a sua frente, naquele momento. Chamou-o a um canto e sussurrou-lhe: É o próprio, responda ao que lhe for perguntado, sem hesitação!
O demônio prosseguiu: Teo, você tem sido um exemplo de pai, marido e homem.
Estou autorizado a realizar algum desejo, algo que você ainda não conseguiu com seu esforço próprio. Para isto, basta você responder a algumas perguntas simples, como a que já lhe fiz.
Orientado pelo Arcanjo, Teodoro estava preparado para a sabatina. Tremia um pouco, mas coragem nunca lhe faltara.
- Vamos lá. Pergunte!
- O que é o céu para você Teodoro?
Seu Teo respondeu-lhe com um olhar, longo, plácido, contemplando os pastos, os animais, a casinha ao longe...
- Muito bem. Estou satisfeito.
- E o inferno? O que é para você?
Teodoro deu uma olhadela para as mãos fortes e calejadas. Já ia responder mas lembrou-se a tempo de que quem o interpelava era o rei dos trapaceiros. Recordou-se do Maneco, vizinho e companheiro de muitos anos, enfermo, delirando devido à bebida.
- Resolutamente declarou: é a cachaça!
Pois bem. Vou lhe fazer a última pergunta.
- Estou pronto!
Onde ficam o inferno e o céu?
Teodoro percebeu que a questão tinha sido preparada para confundi-lo. Responder seria difícil, quase como enganar o coxo...
Um arrepio percorreu-lhe a espinha, mas, bem depressa concluiu: o céu e o inferno estão no homem! E isso já lhe respondi. São as respostas das perguntas que você já havia feito. Estou certo?
Você é sabido mesmo! Enganou a mim! Estou passado! Peça o que quiser e eu lhe atenderei. À propósito, gostaria de ver sua esposa curada daquelas dores horrorosas?
Lágrimas rolaram pela face do bom velho. Sem dúvida era o que mais desejava - Dona Bondade cheia de vida! Mesmo assim não hesitou em desancar o insistente perguntador.
- Bem, não são dores muito fortes. Além disso tenho fé de que vão passar. A Angélica é muito forte, sabia?
Fulgurou uma luz de tonalidade prata-azulada, onde estava o inquiridor. O Arcanjo tomou a palavra, afirmando solene: Teodoro, tua sabedoria era bastante conhecida, pelos anjos, por mim e até por Deus. Faltava saber se tua sinceridade era igual. Vai, volta a casa. Ah, ia me esquecendo, fingi ser o “dito cujo”, para lhe testar. Desculpe o \"mal\" jeito. Vai em paz, seja muito, mas muito feliz! Aliás é o que você sempre foi, não é?
Teodoro acordou, pegou suas coisas e foi chispando para casa. Lá encontrou Dona Bondade, com o sorriso mais luminoso que tinha visto...
- Tão cedo meu velho? Que bom! Acho que as dores sumiram.
- É um verdadeiro milagre!
Bruno Rezende Palmieri