Idosos são belos

Idosos são belos
— Ricas sedas amassadas
Sem perder a luz.
       Haruko

Assino meus haikais com esse nome, Haruko, que significa "primavera” em japonês, nomeada por um namorado de adolescência, que era nissei. Para mim, eclodir em flores significa colorir-me em versos. Afeita ao Oriente, em uma de minhas leituras, soube que a seda é um tecido que mesmo amassado ”não perde a luz". .Isso reportou-me ao plissé das rugas no rosto, na pele em geral, dos que já viveram muitos caminhos. Noutro dia, Diovvani Mendonça, poeta que em Belo Horizonte, criou o Projeto “Pão e Poesia”, quando atendi ao seu telefonema, leu-me, emocionado, voz grave, os haikais que encontrara em meu livro virtual Orvalho e entre eles, esse acima, em epígrafe. Na qualidade de “poeta convidada”, estou com seis desses haikais, na edição recente – e nos mega banneres que ele colocou em circuito por escolas.

Lembro-me do rosto em pergaminho de vovó Theófila Theonila Câmara de Araújo, capulhos de algodão na cabeça – que foi mãe de dezenove filhos e minha mãe, a caçula deles, somente a conheceu já velha. Netos e bisnetos ao colo, mansa e santa, não raro sentia as mãozinhas e dedinhos por sua face, às vezes acompanhar a escrita do tempo. E um dia, minha priminha Solimar perguntou-lhe: – Vovó, que é “isso”? Referia-se aos meandros das rugas, quais secos rios... Mas os olhos de vovó, que fora filha única e rica, tendo o esposo perdido seus bens em andanças políticas e negócios mal fadados, embora fosse brilhante poeta, jornalista e trabalhador, brilhavam de felicidade, sempre. Já viúva, tendo vivido mais de cinquenta anos com o homem amado — com quem sonhara pouco antes dele aparecer na fazenda de seu pai, no momento em que ela acabava de contar à tia e madrasta, que ele chegaria em um cavalo ajaezado em prata, baio, e que era um lindo homem – às vezes, eu, chegando do jornal onde trabalhava, encontrava-a na varanda de mamãe, a contemplar o espaço, com aqueles olhos iluminados. E eu dizia: ” – A senhora está pensando em que?” Ela respondia-me, invariavelmente: – Estou aqui, esperando um dia encontrar-me com o meu Luiz. Era o nome de vovô, Luiz Máximo de Araújo, que todos os dias, enquanto viveu, e estavam na mesma cidade – pois ele viajava muito – dava-lhe um presente. Mesmo quando sem bens, trazia agulhas, linhas, fitas, caixinhas de bombons, broches de bijoux, talvez para compensar-lhe as joias perdidas. Mesmo àquela época, décadas antes do feminismo engatinhar, jamais foi machista, dizia que à mulher bastava administrar a casa e a criação dos filhos, o que já era muito...E ele dizia sempre: ” – Velho, não! Sou moço usado”... Cresci amando idosos, espelhada em minha mãe, que se dava bem com todos...

Por sugestão de um dos coordenadores do nosso Movimento Paz e Poesia, agora inserido em “Palabra em El Mundo", o Embaixador da Paz e Poeta Cláudio Márcio Barbosa, fomos a um asilo de anciãos. Conversamos longamente com a psicóloga, a assistente social, a enfermeira, a recreadora que ali estavam. Percebemos o zelo, o conhecimento dessa causa da terceira idade. Esta, hoje, maisa pontada por eufemismos: Serena Idade, Melhor Idade. E então, minha amiga Lu Peçanha, também Embaixadora da Paz, como eu, pelo Cercle de Les Ambassadeurs Univer. de la Paix, Lu que é fotógrafa da alma em seus belos trabalhos, saiu comigo e fomos circular. E registrar as pessoas, sem mostrar o rosto nas imagens. Lá, vimos desde as pessoas menos idosas – qual uma cadeirante, que disse estar ali por vontade própria – para não "atrapalhar a família" – a macróbias pessoas, quase centenárias. Uma delas, não tinha quase rugas, malares altos – e um olhar onde a luz se abrigava. Outros, já sem a visão. Uma, choramingava sem lágrimas, em clara representação, que sumira sua grinalda, pois no dia seguinte iria coroar Nossa Senhora na igreja. Na verdade, queria ganhar uma nova, mesmo corpulenta, parecia-nos uma daquelas meninhas que sabem jogar chame para os adultos a atenderam, num clara regressão de idade. Havia um senhor a ver TV, isolado, talvez por escutar pouco, cadeira bem próxima ao aparelho – ou para ter seu espaço pessoal preservado. O primeiro com quem falamos, fazia lições de casa, orgulhoso de estar sendo alfabetizado, a escrever com lápis, caprichosamente. E um outro, negro e esbelto, vestido com camisa branca bem passada, as mangas ligeiramente arregaçadas, sapatos elegantes, sentado no pátio. E Lu captou um momento único: ventava e uma folha nova de parreira veio pousar aos pés dele. Ela, ao enviar-me essas fotos em preto e branco, de impacto, colocou, simbolicamente nessa fotografia, apenas a folha em verde, uma verdadeira poesia visual, metáfora concreta. Outra das fotos mostra uma senhora, costurando uma saia, reduzindo a bainha-a vaidade feminina sempre um traço que anotamos. A assistente social conta-nos de quem não recebia visitas e agora, com netos tomando a si a visita, melhorou muito a ansiedade, a depressão, a saúde geral.

Presenteei-os com os saquinhos do Pão e Poesia do Poeta Diovvani, e eles adoraram, pois quem fica mais velho tem sempre coisinhas a guardar. Fiquei a pensar em quantas fraldas teriam trocado, de pessoas que hoje não as visitam, quantas canções de ninar cantaram, quantas noites insones para cuidar de um filho, quanto trabalho extra – além dos próprios gens e vida que doaram a seus descendentes... A solidão dói qual roseiral silvestre, para colher uma rosa, muitas picadas e dores. Felizmente, voluntários aparecem para suprir as carências, adotam os velhinhos em dias de visita... Lembro-me ainda, em meu consultório, quando foi-me levada uma senhora que não mais saía de casa, e a coloquei na maca, para levá-la a um estado Alpha e melhor chegar ao cerne de seu problema, enquanto falava no relaxamento, tomei nas mãos seus pés e os massageei. Uma crise de choro. E depois, a catarse.Indagada sobre tanta emoção, ela confidenciou-me a soluçar: – “Acontece, que há dez anos, ninguém me toca”... O filho construíra uma gaiola dourada, com tudo que uma pessoa idosa pode precisar. A nora era ciumenta. Da porta, o filho dava boa noite, os netos também... Mal lhe falavam. Nos finais de semana, viajavam, e ela não era levada “por causa da idade”. A solidão minou os resquícios de uma rica vida de ações – ela fora a primeira mulher a dirigir um carro, em sua região, lembrou em lágrimas. Depois de muita terapia familiar, quando mudei-me, ela já ia sozinha à consulta, com uma bolsa linda de matelessé, feita por ela mesma, onde, numa bolsinha menor, presa por um roloté, no fundo, levava seu dinheiro: – “Assim engano o ladrão”, dizia alegremente, pois usava agora uma condução coletiva, novamente independente.

Para mim, mesmo ao explicar às novas gerações o potencial de uma pessoa que já viveu muito, basta-lhes a tarefa falar de sua vida e dos tempos vividos: são testemunhas vivas de suas épocas e História desfila com conhecimento de causa.Quando recebi da ALTO (Academia de Letras de Teófilo Otoni), através do Secretário professor Wilson Colares, o lindo livro de Didinha, Hilda Ottoni Porto Ramos, da tradicional família otoniense, “Memórias Vivas... Vivas Memórias”, encantei-me. Tive a demonstração exata do que sempre busco ensinar: idosos são referências vivas. E quem lhes possibilita registrar lembranças, merece nosso aplauso e aprovação. Pessoas de muita vivência trazem informações vívidas e confiáveis, até das transformações da língua, as trocas de moeda, os costumes.... Afinal, qual disse o Poeta chileno Pablo Neruda, confessam que... viveram! (*). Fora as doenças próprias da idade, quando alguns têm dificuldades em lembrar-se de muita coisa – onde colocaram os óculos, o jornal – as relembranças, a memória retrógrada são preservadas quase sempre. E, muitas vezes, aparecem em flashs rápidos. Não as descurem, não as desdenhem, ouçam-nas.. .Idosos são belos: ricas sedas amassadas, não perdem a luz.

Clevane Pessoa de Araújo Lopes

______________

(*) Referência ao livro “Confesso que Vivi”, de Pablo Neruda, que em 2010 (ano em que este artigo foi escrito) completaria 106 anos.

« Voltar