Porciana & Persianas Genealógicas
Quando apareceu, optou pelos números. À direita, o número redondo da folha. À esquerda, escondido num canto iluminado pela tênue luz da lamparina, o número do termo. Muda, invisível, inodora, alheia ao tempo e à caligrafia rebuscada, quase apagada, do empertigado escrivão do cartório. "Moço esquisito", pensou, sufocada pelas paredes amarelecidas da sala abafada, sem sol. Quis abrir as janelas, mas as trancas eram altas demais para sua altura pouca.
Invisível, se valeu desse estado e levantou a saia pesada, negra, sustentada por muitas anáguas. Recolheu as ondas do oceano de panos e esticou as pernas ávidas de sol. Seu marido não viu. O moço esquisito não viu. "Quem foi que disse que a morte não traz vantagens?", pensou com os botões da blusa abotoada até o cume do pescoço.
No topo da montanha escarpada em curvas e grotas de carne, os botões abandonaram as casas, descendo pela encosta como alpinistas à frente de uma avalanche. Ninguém percebeu o imperceptível abalo nas tábuas enceradas do assoalho e com enfado o empertigado escrivão continuou a escrever que às nove horas da noite deste dia de mil novecentos e oito falleceu Porciana Roza de Jesus, de pneumonia, aparentando oitenta annos de idade. Pronto. A morte fora lavrada e assinada.
Livre da saia, das anáguas e da blusa, Porciana se exibiu para Deus exatamente como Ele gostava de espiá-la no riacho. Ergueu-se da cadeira à frente da mesa do moço esquisito e, esticando-se na ponta dos pés, finalmente conseguiu abrir a janela. Ninguém percebeu o imperceptível tornado que embaralhou as letras rebuscadas, quase apagadas, do termo de seu óbito para formar um cifrado recado: eu, Porciana Roza de Jesus (e de Deus), sua trisavó, declaro que dos pecados cometi todos; acumulei o brilho das estrelas no cofre da alma, emprestei amor a juros tão altos que poucos amantes puderam pagá-los, gemi de prazer à cada botão desabotoado, invejei todas as aves de migração, lambi cada torrão de açúcar como se fosse o último, cobicei a prata da lua e o marulho das ondas, amaldiçoei o Criador por não ter me feito sereia ... e que os "aparentes" oitenta anos declarados pelo doutor ficam por conta dos óleos com que ungi meu corpo nos meus noventa e sete anos de vida.
Sincréticas avós
Vitalina dizia que "não há impossível que não se realize com uma boa receita". A sua convicção era tanta que, quando ouvia alguém reclamando de que algo não corria bem, ela dava um profundo suspiro, fechava os olhos por alguns segundos e depois surpreendia o aflito, dando-lhe algumas de suas receitas, que iam dos "Quiabos da Felicidade" às "batatas do Dinheiro".
Virgínia, por sua vez, não era tão eclética com as receitas e achava que "não há mal que não se cure com um doce", conforme ela mesma dizia. Acreditava tanto nessa máxima que ela me parece ter sido a única avó a substituir a tradicional canja dos convalescentes por arroz-doce. Confesso que na infância fui seduzida pela magia de Virgínia e que muitas vezes inventei dores em troca do seu famoso pudim de pão, ou de uma farta fatia de pudim do céu.
Embora poderosas e eficazes, as magias não eram iguais. A magia de Vitalina, pagã por natureza e coração, era mais explícita e desprovida de qualquer culpa cristã ( o seu famoso vinho de Eros que o diga...). Já a de Virgínia, católica e fervorosa devota de Maria, era menos envolvida com a gula da carne e mais voltada para as transcendências ( ela dizia que "as santas, os santos e os anjos não gostam de muitas intimidades"). Apesar de tão diferentes, o engraçado é que as duas formavam um perfeito equilíbrio que só entendi muitos anos mais tarde, quando estudei o maravilhoso sincretismo religioso que acontece no Brasil...
Marcia Frazão
Texto extraído do meu livro "A Casa da Bruxa", publicado pela Editora Planeta
Enviado pela própria autora