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Fonte: Caderno Prosa e Verso de O Globo (RJ), 1 de dezembro 2001
Acabar com a Literatura?

É difícil de acreditar. Mas parece que estão querendo acabar com a Literatura no ensino médio. Recebi um e-mail assinado por vários professores, onde está escrito: “que a disciplina Literatura foi cortada da grade curricular do Ensino Médio pela Secretaria de Estado de Educação do Rio de Janeiro. Isso faz parte de um pacote de reformas para o Ensino Médio, que estão pretendendo colocar em prática dentro de alguns anos”. Outro e-mail começa dizendo que “quem trabalha no Ensino Médio (antigo 2º grau) e já leu os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) sabe que o MEC não listou na Área de Linguagens, Códigos e suas Tecnologias a disciplina Literatura”. Ali os reformadores do ensino referem-se apenas a uma coisa geral chamada Arte.

Não só como professor, como escritor, há muito estava já ressabiado com outra coisa que o atual Ministério da Educação criou, chamada “temas transversais”, que corre o risco de confundir literatura com escritura programada.

Essa revelação torna-se ainda mais perturbadora porque nos colégios comenta-se que tal “medida não é gratuita: a bancada ligada às escolas particulares e a bancada evangélica estão bastante empenhadas em ver essa medida aprovada, pois para o primeiro significa economia e, para o segundo, os alunos não são mais instruídos para pensar”. O texto, depois de lembrar a “canetada” do presidente-sociólogo, que abortou a proposta de pôr a Sociologia e a Filosofia na grade curricular, convoca os professores de Letras a organizarem um fórum de debates sobre o alarmante problema.

Será que querem mesmo acabar com a Literatura no segundo grau? Será que todas as instituições evangélicas, algumas com larga tradição no ensino, estão pactuando com isto?

Leio esses e-mails na mesma semana em que, contrastivamente, recebo da Bertrand Brasil um livro estupendo: “A religação dos saberes — O desafio do século XXI” — quase 600 páginas das “jornadas temáticas idealizadas e dirigidas por Edgar Morin” a partir de uma questão levantada pelo governo francês: “que saberes ensinar nas escolas?”.

É um precioso volume, onde sábios de dezenas de disciplinas — de físicos e biólogos a astrônomos e escritores — expõem porque é necessário dar ao estudante uma visão de conjunto na sua formação. No setor literário, o primeiro texto de Marc Fumarolli traz já no título uma verdade essencial: “A Literatura: preparação para tornar-se pessoa”. Ele começa questionando esse modelo utilitarista da escola que anda por aí contrariando a idéia de que a escola secundária deve servir para a adaptação precoce dos alunos ao mercado de trabalho. Primeiramente, porque “a escola para o emprego está exposta a uma constante defasagem com relação à evolução rápida do mercado” e, em segundo lugar, porque a literatura, com sua magia, supre o que nenhuma disciplina lógica e objetiva pode dar. É um modo de se penetrar na complexidade da própria existência.

Tenho as mais agradáveis lembranças de quando lecionei para o antigo clássico e científico no Colégio Estadual de Belo Horizonte. Fazia questão de dar praticamente as mesmas aulas que dava na Faculdade, apenas dosando um pouco. E a participação e o rendimento daquela garotada eram muitas vezes superiores aos dos universitários. Passados uns 40 anos, até hoje encontro alunos, que falam de como a Literatura foi importante na visão de mundo deles, embora se destinassem à engenharia ou às ciências políticas. Cito isto, homenageando inúmeros mestres que têm histórias semelhantemente comoventes. Os alunos liam de seis a oito romances por ano e eram capazes de analisar poemas situando-os dentro de seu respectivo estilo de época. Mais que isto: pré-viviam na literatura o mundo que amanhã conheceriam. Pela Literatura formava-se uma consciência esteticamente crítica da realidade.

Todo governo acha que tem que fazer reformas. Estão sempre reinventando a roda, que às vezes fica quadrada.
 

Reincido num saudável saudosismo, sou do tempo em que, por exemplo, estudávamos línguas neolatinas e não essa coisa pobre trazida com a reforma do final dos anos 60, onde só se estuda o português e uma literatura. Estudava-se língua e literatura espanhola, língua e literatura francesa, língua e literatura italiana, as literaturas de Portugal e da América Hispânica, isto, além de latim, filologia românica, etc. Saía-se da faculdade com uma visão geral dessas literaturas. Fazendo a tal reforma dos anos 60, o país queria modernizar-se, largar o modelo europeu e imitar os Estados Unidos com o sistema de créditos. Assim como se fala hoje em desastre ecológico, aquilo foi um cataclisma cultural. Certas reformas me fazem repetir o sarcástico ditado italiano: “estávamos melhor quando estávamos pior”. Ser “moderno”, às vezes, é um modo de ser apenas raso e superficial.

Os e-mails têm razão: é necessário um amplo debate sobre este assunto antes que se efetive mais uma empobrecedora reforma do ensino.

O acadêmico Josué Montello assim se manifestou:

“— Na literatura, você leciona a língua na sua beleza e na sua forma. O escritor utiliza a linguagem sabendo estar aproveitando as qualidades artísticas, com individualidade e estilo. É sempre preciso saber a diferença entre escrever um recado e uma concepção artística”.

Vamos ficar atentos para mais esta ameaça de deterioração do ensino médio.

Affonso Romano de Sant'Anna

Enviado por: Cláudia Cordeiro

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