INTERNET


Coisa de português

Vão nos proibir de usar palavras em Inglês e Internet (ops!) vai virar Interteia

MAX GEHRINGER

E não é que um glorioso deputado cismou que nós, só porque somos brasileiros, agora temos que falar português? Não que eu seja contra o patriotismo gramatical, mas é que eu não consigo nem imaginar um futuro em que as pessoas vão poder usar impunemente palavras como empreendedorismo ou empregabilidade, achando que isso é português, e serão proibidas de dizer Internet — ops, a lei já entrou em vigor? Corro o risco de ser processado? Então corrijo: o que eu quis dizer foi "Interteia", que é muito mais coisa nossa — Brazil-zil-zil. Aliás, o pessoal aqui do interior até vai gostar dessa mudança, inté porque hoje já fala: "Nóis só acessa o que dá na teia".

Eu sei que, dia mais, dia menos, isso passa. Só que naquele período entre o começo da febre e o fim da convalescença todo mundo vai ser obrigado a conviver com a gripe portuguesa. É quando aquela legião de vírus do patrulhamento gramatical vai nos pegar sem anticorpos xenófobos e nos atacar com tudo:

     — Arrá! Eu escutei, você falou RAM. Teje preso!
     — Mas não dá pra falar RAM de outro jeito. É um acrônimo!
     — Não interessa! É inglês. Tá proibido. Se falar de novo, eu multo.
     — E eu falo como?
     — Peraí, deixa eu consultar o livrinho... Ah, taqui. Quando qualquer um podia falar o que bem quisesse, isso aí queria dizer Random Access Memory, que eu não tenho a mínima idéia do que seja. Mas agora a lei manda falar Memória Randômica de Acesso. Ou seja, MERDA.
     — Eu só posso concordar.
     — Ótimo. E tem mais uma coisa.
     — O quê?
     — Acrônimo é a tua mãe, seu malcriado. Eu sou otoridade, tá sabendo?

Durante algum tempo, vamos ter que enfrentar situações assim, pelo menos até que o Congresso ache alguma coisa mais interessante para fazer, como obrigar o povo a comprar outro estojo de primeiros socorros com tesoura e esparadrapo para levar no carro. Então o negócio é ir se acostumando...

     — Quanto custa esse browser?
     — Shhh! Fala baixo! Você não pode falar browser assim, em público. É palavrão.
     — Mesmo?
     — É. Browser, em inglês, quer dizer comer aos bocadinhos ou petiscar. É assim que o governo andou a gente falar agora. O que você está procurando, então, é um "petisco".
     — Hummm, sei. Outra coisa, eu ontem tentei fazer um download...
     — Não diga isso! É crime ficar fazendo download por aí. Porque são duas palavrinhas, load, que quer dizer peso, e down, que quer dizer embaixo. Pela lei, você tem que falar "baixar o peso".
     — Olha, isso tá meio confuso. Se eu ficar petiscando, como é que vou poder baixar o peso?
     — Sinto muito, não é culpa minha, eu só cumpro ordens. Olha, vamos fazer o seguinte: você não quer levar um "troço duro"?
     — Que é isso, cara? Tá me estranhando?
     — Não, não, troço duro é o que a gente antigamente chamava de hardware.

Mas tudo tem seu lado positivo, e, neste caso, será a queda do nível de desemprego com o surgimento de uma nova profissão, o personal translator. Epa, desculpem, o tradutor pessoal. Muito internauta vai ter que contratar um deles para revisar seus e-mails — digo, suas e-correspondências —, porque é bom ficar prevenido. E se de repente o Congresso resolve formar uma Comissão Parlamentar de Investigação Léxica para flagrar quem estiver desrespeitando a Lei do Vernáculo? Oblitere esse escanear que você compôs no parágrafo derradeiro. Ué, mas escanear parece português. Parecer é uma coisa e ser é outra. Scan é inglês. A tradução escorreita é "esquadrinhamento". Esquá... e isso lá é português??? Pode parecer incrível para os obtusos, mas é.

Tá legal, faço isso aí e depois atacho e dou um send. Send? Você dá um remetimento. E não atacha, faz uma anexação. Esquadrinhamento, anexação e remetimento? Correto... e substitua esse O.K. estapafúrdio. É expressão condenável. O idiomaticamente correto é finalizar qualquer missiva com PORRA.

Ahnnn??? PORRA... Português Ortograficamente Rutilante, Revisado e Aprovado.

Para quem não sabe, essa moda de sair defendendo o idioma não é coisa nova. Lá por 1920, quando o futebol se consolidou como paixão nacional, os puristas de plantão também começaram a se sentir ofendidos pela profusão de termos ingleses que vinha invadindo os nossos primeiros rapadões. Como é que um barnabé qualquer, que nem sabia o que era "hermenêutica", ousava ficar berrando coisas como "Referee, tua mãe tá na zona!" ou fazendo comentários do tipo "Esse nosso center forward é um perna-de-pau!" Então, os defensores da pátria fizeram o quê? Isso mesmo, um dicionário de palavras brasileiras para substituir os estrangeirismos. Aí, em vez de "football", o povo ia ter que falar "ludopédio". Claro que todos os termos sugeridos foram para o vinagre, menos um, e justamente o mais improvável de todos eles: em vez de corner, foi inventada a palavra escanteio, uma aberração gramatical (seria o mesmo se hoje alguém sugerisse que, em vez de "digitação", a gente dissesse "esteclamento"). Mas não é que o escanteio caiu no gosto do povão e pegou? E por uma razão muito simples: é uma palavra gostosa de pronunciar.

A lição que ficou daquele episódio de 1920, e que provavelmente ficará deste de 2000, é até meio óbvia: apesar dos louváveis esforços do Congresso e dos lingüistas, a decisão sobre o que se fala e como se fala sempre virá da voz do povo. Ou, como sabiamente diria um conhecido meu, o Juvêncio, vulgo Margô: "Vox populi, vox dei. E dei, tá dado".

Fonte: Artigo publicado na revista Revista da Web de Outubro/2000 - Ano 2, Edição 13, pág. 136/137 - Editora Abril
Enviado por: Maria da Conceição C. Oliveira

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