Críticas saídas na imprensa sobre
Tilápia Galiléia, de Mauro Salles
Diário de Pernambuco – 30.01.2004
O rio franciscano da palavra
Vital Corrêa de Araújo (Presidente da União Brasileira de Escritores - PE)
 

Entre a margem do silêncio e a da palavra, num rio que cruza a solidão do tempo e na foz da esperança lança suas águas, e no qual nunca se banha duas vezes; num rio em que se move a célere nau cuja quilha aponta ao cais da linguagem, gravita a poesia cósmica de Mauro Salles, reunida numa síntese magistral em "50 poemas escolhidos pelo autor", edições Galo Branco, 2003.

Ao lermos os poemas selecionados de cinco livros, entre eles Coisas de Crianças, O Gesto, Reisen (português e alemão), Recomeço e Tilápia Galiléia, sente-se emergir do sacro rio do silêncio poético, em cujas pausas habita a poesia, o grito da palavra, da palavra que se situa muito além dos nomes, no coração dos fatos por vir, no recesso onde os signos luzem e iluminam as sombras, quase nas íngremes margens do absoluto novalisiano.

Para Mauro, a verdade (nunca a verdade cosmética, superficial, imediata) e a realidade (jamais a aparência) são indizíveis, e, se o são, somente a poesia pode tocá-las. E ele sabe que a linguagem poética começa onde e quando outras linguagens acabam ou calam.

E é com essa funda consciência que Mauro Salles cria a poesia, em que a memória (ou o silêncio fértil onde pulsa o sentido da linhagem), a presença do amor, a virtude do ritmo, a capacidade de expressão e uso de linguagem em alta voltagem, redundam em poemas redondos, marcados por uma atitude anti-retórica, de grande economia vocabular e de capacidade intrínseca de rememoração dos traços singulares de pessoas e nuances do mundo vivido.

E é essa habilidade afetiva de reviver situação e pessoas sob ângulos inusitados, de rostos quase dinásticos, de expressivas tomadas psicológicas do passado, que habilita o autor a criar poemas cruciais como retrata a seleção.

É essa maestria e esse aprofundamento íntegro, como se olhasse a superfície, que tornam Mauro Salles um poeta da modernidade.

Mas o território, bem marcado e ilimitado, que Mauro se extasia em percorrer, é o do amor (terreno em que ele é agrimensor, lavrador e devoto da messe que lhe assalta o olhar e povoa o coração); ou seja, é o campo bem lavrado dos poemas dedicados à Amada, como: Criação do Amor Maior e Ladainha, (em que ele diz: "tudo que te dou em rosas convertes, e as renúncias, em dádivas"), Mixed, Colo, Thereza (o alicerce do coração de Mauro).
 

No poema que é sua Arte Poética: "renovar a força de fatigadas sílabas, redescobrindo-lhes o brilho", Mauro expõe seu credo lírico, sua fé na palavra.

A poesia de Mauro Salles traz o signo da diversidade, o dom da abertura, é simbolizada pela espiral, sempre em aventura crescente, nunca em rotina imobilizante, em busca de horizontes mais amplos, de novas jazidas de sentidos insuspeitados, de ângulos inusitados mas aparentemente simples, de novos campos de exploração lingüística coloquial. É uma poesia de semeadura e colheita.

Mauro é um poeta visual, daí o modo específico de revelar o mundo que o acomete; através da poesia, move o olhar do leitor para ver e reviver, o que ele já viu mas não sentiu ver, e assim aprofundar. Mauro em sua poesia busca o essencial e nunca se revolta sobre o próprio tema; assume, como princípio balisador, o amor (sem os escrúpulos do pseudo-poeta), a memória (que funda o passado e alicerça o futuro, vide Proust); e o sentimento místico ou sentimento do Divino. Esses profundos temas dão cerrada unidade à sua obra e revelam o elo primordial que subjaz no espírito poeta.

Como Juan Ramon Jimenez, Mauro mantém relação viva e amorosa com a mulher: não veneração, mas amor, o que é raro entre os poetas, cuja musa é abstrata e não tem face ou nome. A inspiração é lançar-se a ser, mas também, e sobretudo, é recordar o que se é e não se foi. O absoluto está em nós, alicerçado em nossa fé, eivado do poder da criação, de uma imagem ou do mundo.

A última produção de Mauro Salles - que acredito ser uma revolução no estado atual de poesia brasileira é admirável. Tilápia Galiléia (título bem judaico-nordestino) são poemas místicos, impregnados de uma religiosidade larga e despojada; trata-se de uma expressão em que a objetividade dá as cartas, o que não os reduz a preces: assemelham-se mais a odes. Tilápia Galiléia (livro que se encontra no prelo e a que tive acesso nos originais) reúne poemas de uma ordem estranha, entranhados de fé e dúvida, de certezas e indagações, buscando mais a forma das palavras, a expressão do olhar do que muros devocionais, edifícios de lamentos ou óbices hermenêuticos.

Mauro Salles confirma sua estirpe modernista, na vertente que desaguou nas três últimas décadas do século 20; uma mescla da essência schimdtiana com o melhor de Bandeira e Drummond; reconfirma sua trajetória de poeta crescente cada vez mais imerso no conceito (assaz complexo) de modernidade, que a ele aplica-se como luva por sua poesia desviar-se do abstrato para o memorialístico essencial, da temática metafísica para a humanística. Sua modernidade se inscreve no modo (e não no estilo retórico) de expressão aberta ao sentimento, que ele herda de uma plêiade de mestres e amigos, como Cecília Meireles, Manuel Bandeira, Drummond, Vinícius de Moraes, Augusto Frederico Schimdt e Adalgisa Nery.
 

Fonte: Diário de Pernambuco
 

Outras matérias
Release

« Voltar