Erorci SantanaXXXIII
Soava o badalo do sino
quando notei a cachorra inerte.
Chamei-a. Estava surda, vítima
de enfarte, sem um ganido audível.
Pousei nela uma mão de afago, trêmula,
acendi uma vela tardia, tomei um trago.
“Para tão grande amiga,
vida tão pouca”, murmurei
com voz rouca. Era de noite...Fiz para ela uma mortalha de trapos,
nesgas de cânhamo, fiapos de lã.
Fazia frio e tingiu-se de cinza a manhã.
Desenterrei do quintal um osso antigo
e completei seu féretro de trastes
ouvindo além da névoa os ecos
do seu ladrido, lembrando
os orgulhosos gestos de sua ética vigília.
O pulso do dia adstringia já
os nervos de seu estômago convulso,
a língua presa entre os dentes
compondo a cena trágica, quase risível.
Num terreno baldio, improvisei
um epitáfio entre ratos,
sacos plásticos, frascos de vidro.
Cavei cinco palmos de buraco
(dois nacos de orvalho caindo da face).
Nesse cenário kitsch,
dei por dizer frases de Nietzsche,
rematei com um verso de Salomão.
Baixei na cova o meu cão:
fardo triste, inflável balão.
Do livro: "Maravilta e Outros Cantares, 37 cantos inéditos"