OS POEMAS CANINOS DE GLAUCO MATTOSO


SONETO 318 CANINO

O mais fiel amigo e companheiro,
do cego o guia e ágil caçador,
tem raças variadas, desde o amor
até a ferocidade do açougueiro.

O dálmata, o pastor, o perdigueiro,
o fila, o pequinês, o labrador...
Conhecem nossos pés pelo sabor.
Nossas cabeças sacam pelo cheiro.

Mais longa que do cocker uma orelha
é a forma do bassê: uma salsicha.
Nenhuma raça em graça lhe é parelha.

A pata é curta e torta, o corpo espicha.
O olhar ao da tristeza se assemelha.
Sim, perto do bassê fofura é ficha!



SONETO 614 ESTUPEFATO

Passeia um bassê solto pela trilha
do bosque, e comparado ao tronco grosso
do altíssimo eucalipto ou ao colosso
copado da paineira, ele se humilha.

Patinhas curtas, mal se desvencilha
do arbusto mais rasteiro e já o pescoço
se enrosca no cipó; mas eis que um osso
humano, um fino dedo o maravilha!

Vestígio do cadáver dalgum crime,
a mão inteira, à boca do cãozinho,
desfila pelo parque e glória exprime!

Casais e solteironas, no caminho,
lhe fazem festa, até que se aproxime
e exiba seu troféu fresco e escarninho!



SONETO 624 FAREJADO

Bassê no apartamento fuça em tudo!
Passeia pela sala e faz lambança
no pé dos móveis, máximo que alcança
um corpo tão comprido e salsichudo...

Já li de especialistas um estudo
provando que o bassê, mais que a criança,
precisa bagunçar, e só se amansa
com beijo. Então, do meu nunca desgrudo.

Comigo no sofá, também cochila;
só falta, à mesa, usar o mesmo prato;
na cama nossa noite é bem tranqüila.

Estranham que ao cão como gente trato?
Pois saibam que até cocker, collie e fila
me latem dos vizinhos! E eu lhes lato!




SONETO 626 DESCASADO

Separa-se a Madame. O ex-marido
se muda e deixa tudo em nome dela:
a casa, o carro, a conta, e até a cadela
bassê, cujas saudades tem sentido.

Madame está feliz, mas o latido
contente da bassê, tão tagarela,
agora não se escuta. A casa gela.
À pobre cadelinha falta um Fido...

Com pena da coitada, a dona adota
um macho, em cuja alegre companhia
a fêmea esquece a quem era devota.

O dono, por sua vez, se divorcia
da nova esposa, e a lágrima lhe brota
se lembra como a Chicha lhe latia...





SONETO 627 APEGADO

Não sou, como parece, tão estranho,
pois, como todo mundo, sei que morro
um dia, e dos bichinhos me socorro
a fim que a solidão perca o tamanho.

De amigos um bassê, certa vez, ganho,
em cuja certidão se lê: Chichorro
da Gama; e se um "salsicho" é meu cachorro,
de Chicho o chamo, à rua, ao rango, ao banho.

Aquele é que era amigo! Não me troca
sequer por certa Chicha, que lhe late
da casa da vizinha, uma dondoca!

Embora a história doutros tempos date,
ainda esta saudade o Chicho evoca...
Revê-lo é o que me vale a voz de vate!



SONETO 628 ACOMPANHADO

Bassês não são eternos, nem são nossa
melhor ou mais completa companhia...
mas unem gênio, graça e raça à esguia
salsicha, à pata torta, curta e grossa.

Do Chicho, meu bassê, não há quem possa
dizer que outro mais fofo e vivo havia.
Dá dó seu triste olhar, que o meu copia.
Tem charme e classe até quando se coça.

Depois dalgum convívio, conversamos
na mesma língua, e a bom entendedor
bastava um "au", sem teimas nem reclamos.

Sabia estar nos olhos minha dor,
e sei que os dois estávamos e estamos
no mesmo barco, e irei pronde ele for.



SONETO 629 ACOMODADO

Chichão, meu bassê "hound", orelha longa,
olhar manso e tristonho, pata torta
e curta, que me espera ao pé da porta
e chora quando a ausência se prolonga...

Chichão, que cheira e rói meu pé de Conga
a sós, mas a meu lado se comporta;
que minha insônia vela em hora morta
e que meu canto, ao banho, corta e gonga...

No quieto apartamento, só nós dois.
Se alguém liga e propõe novo programa,
a gente deixa sempre pra depois...

Amigos não merecem quem os ama,
nem valem que eu lhes vá dar nome aos bois...
Dei nome ao cão. Chichão de "amor" me chama.



SONETO 630 CONDICIONADO

A hora do passeio é, para o Chicho,
momento de lazer e compromisso.
Quem leva quem? Dos dois, qual o submisso?
O bicho puxa, e o dono puxa o bicho.

Portões, muros, degraus, latas de lixo,
além dos postes, claro, onde o roliço
bassê faz ponto e perde um tempo nisso,
maior que o necessário ao mijo mixo.

Coberto o itinerário, a dupla volta
ao quieto apartamento. Noutro dia,
de novo um sai e o outro faz-lhe escolta.

Quem acha que meu Chicho, em poesia,
não vale ser cantado, é quem mais solta
cachorros, sem ter um por companhia.



SONETO 631 DEDICADO

Algum provocador me desafia
dizendo: "Se o bassê reina de fato,
por que nenhum rockeiro, como ao gato,
jamais uma canção feito teria?"

Respondo-lhe que o Elvis já fazia:
"Hound Dog" é dum bassê conceito nato;
também "Walking the Dog" um bom retrato
seria a quem na minha fé se fia.

"Se o Elvis nem compunha...!", insiste o mala.
"Escolhe! E escolhe bem!", retruco em cima.
Normal, que só de gato um chato fala!

A letra de "Hound Dog" em nada mima
meu bicho predileto, mas o iguala
ao menos ao vilão duma obra-prima...



SONETO 632 APARENTADO

Traduza-se "basset" como "baixote",
"baixinho", pois rasteiro é seu aspecto.
Também de "texugueiro" é bem correto
chamá-lo, já que a caça tem por dote.

Não há melhor amigo nem mascote,
Nem quem mereça mais carinho e afeto.
Dos bardos é o cachorro predileto,
embora haja quem gato ou cobra adote.

O meu se chama Chicho, e tão afeito
aos hábitos domésticos se julga
que segue-me à poltrona, à mesa, ao leito.

Enquanto nova lei ninguém promulga
que como "filho afim" o tenha aceito,
com ele até partilho a mesma pulga!


SONETO 759 DA BASSEZINHA

Gostava de jujubas, a danada!
Ficava rodeando quando, à mesa
do almoço eu me servia e, à sobremesa,
filava seu nacão de goiabada.

Andava até nas unhas esmaltada!
Seu passo tinha a classe da princesa,
embora nem viesse da nobreza.
Foi minha, ela, a primeira namorada.

As grossas sobrancelhas amarelas
no preto pêlo expunham seu contraste.
E as patas dianteiras? Tortas, belas!

Caminha rente ao chão, sem que se arraste.
Vaidosa, nada tem de outras cadelas.
"Bassê", me dizes tu, e adivinhaste!


Leilamenu