A INFIDELIDADE DE PENÉLOPE

 
          Argos moveu a cabeça, levantou as orelhas como nos tempos em que caçava gamos e lebres e, na figura do velho mendigo, descobriu o seu dono. Era Ulisses, que todos julgavam morto em longes terras. Ainda mexeu com a cauda, acrescentando um sinal de alegria ao seu reconhecimento, mas não teve forças para se erguer do chão.
          Ulisses também reconheceu imediatamente o cachorro sarnento e coberto de publas e carrapatos, deitado sobre imundíces, e uma lágrima furtiva resvalou-lhe pelo rosto ao entrar na sala do palácio onde os pretendentes à mão de Penélope se digladiavam.
          Pela voz do porqueiro Eumeu, Homero atriui ao desleixo das escravas o abandono a que fora relegado o valioso cão de caça logo após a partida de Ulisses.
          Para mim, a culpa é de Penélope. Cuidar de Argos fazia parte de seus deveres domésticos. Assim, como se explica que, durante vinte anos, ela não tenha atentado para o crescente desamparo do cachorro cirado pelo marido e famoso pelo faro com que perseguia as cabras montesas nas florestas?
          Na raiz dessa imperdoável falta de zelo está a prova evidente da traição de Penélope.
          A fidelidade das mulheres começa no carinho com que elas tratam os cães de seus maridos e amantes.
          A morte de Argos, no momento exato em que Ulisses penetra no palácio, não deixa dúvidas de que se trata de uma alusão sibilina dos deuses ao censurável comportamento dessa Penélope que, mais astuciosa do que o próprio Ulisses, há mais de dois mil anos engana os escoliastas e a opinião pública mundial com a sua dissimulação.

Lêdo Ivo

Do livro: "O aluno relapso", Nemar - Masao Ohno/Editores, 1991, SP

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