CHICHO, UM VIVO MIMO (*)

 
Meu nome é Chicho. Este perfil tem um espaço reservado para a minha melhor photo, que ainda não ficou prompta. Enquanto isso, vão sendo postadas as photos dos meus irmãos de raça, meus primos, amigos, vizinhos, emfim, da nossa communidade salsichuda.

Tenho dois donos que me chamam quasi que só de Chicho. Moro com elles num apartamento na Villa Mariana, um bairro desta São Paulo, cidade onde somos um milhão, si sommarmos os dachshunds aos hounds, segundo um vizinho nosso. Assim que batterem e escolherem as minhas photos, mais espaços estarão preenchidos nestes albuns virtuaes. Acho que fica difficil de escolher porque sou inteirinho cor de chocolate, da poncta das pattolas até a poncta das orelhonas, do focinho até o rabo. Muita gente acha que a minha raça tem que ter duas ou mais cores, naquellas manchas irregulares, sem symmetria nenhuma, que parecem jogadas com balde em cyma do nosso corpo emquanto tentavamos excappar do banho de tincta. Essas pessoas não acreditariam si vissem uma photo minha de corpo inteiro, todinho achocolatado. Diriam que é montagem. Talvez por isso meus donos estão demorando para collocar minha cara tristonha neste perfil.

Meu nome é Chicho, mas na verdade esse é um appellido. Tem gente que me chama de Chichão porque me acham maior que os outros cachorros do quarteirão, que são na maioria salsichinhas. Quem pronuncia "salchichinha" diz que sou um "salchichão", por isso abbreviam para Chichão. Mas não é por esse motivo que meu nome é Chicho.

Meu nome é Chicho por ser abbreviação de Chichorro da Gama, como consta do meu documento de identidade, uma especie de certificado ou attestado de pureza racial. Meus donos ja commentaram que tenho nome de gente famosa e até de rua. Mas nem me importo com isso. O que importa é ser chamado de Chicho, menos complicado e mais bonito que Chichorro.

Um de meus donos é cego, o mais velho. O outro é japonez. O cego usa oculos escuros, de vez em quando, e tem barba branca, si estiver crescida. O japonez usa sempre oculos transparentes e tem barba preta. Eu não preciso de oculos, pois enxergo até phantasma e leio o pensamento dos meus donos. Todo mundo diz que tenho olhar triste, mas eu acho que o olhar do meu dono cego deve ser bem mais triste e o do meu dono japonez menos arregalado.

Meu dono cego vive se lamentando do seu defeito physico. Tanto que eu ja nem me lamento do meu, que são as pattas da frente muito curtas e tortas, alem do corpo muito comprido, que me dá dor na columna. O engraçado é que meus donos dizem que sou lindão justamente por causa do corpo comprido e das pattas tortas. E eu digo commigo que meu dono cego tem mais "cara de coitado" que a minha e que, talvez por isso, me parece mais bonito, mais fofo, mais dengoso, mais chorão e mais pidão que eu, embora todos digam o contrario.

Outro defeito meu é o detalhe desproporcional das orelhas, longas demais, que até se arrastam no chão. Por causa dellas é que eu tenho de usar touca quando me levam para passear. A touca prende minhas orelhas e me deixa com cara de doente enfaixado, mas... Fazer o que? Elles teem medo de que minhas orelhas se sujem, se molhem, ou se machuquem, sei la. O facto é que só saio si estiver de touca. São varias toucas, mas, como todas teem cor vermelha, parece que uso sempre a mesma. As pessoas me aponctam na rua e exclamam: "Olha la! Que cachorro differente! Todinho marron e de touca vermelha!" Não sei si devo entender como elogio ou como zombaria, mas, como meus donos vivem me chamando de fofo e de lindo, para mim é o que basta. A touca eu acceito porque sem ella não tem passeio. Mas usar collete, nem pensar! Principalmente aquelles colletes ridiculos onde está escripto "segurança". Alem do descomforto, querem nos phantasiar de palhaços? Antes dormir de touca que sahir naquella camisa de força!

Ja reparei que nem todos os outros cachorros orelhudos andam de touca. Quando dou a volta ao quarteirão, avisto na calçada opposta um cocker chamado Bobby, que sae de touca azul. Da minha raça às vezes cruzo com um chamado Bartholomeu, conhecido como Barthô, que cada vez está de touca differente. Em compensação, outras vezes avisto um que meus donos chamam de Bertholdo mas que tem appellido de Snoopy. Esse não quer saber de touca. Si a dona puzer, elle chora. Foi ella mesma quem disse isso aos meus donos quando fomos todos apresentados durante um passeio. Notei que o Bertholdo tinha os olhos muito vermelhões, com remellas amarellas nos canthos. Parecia falta de cuidado. Pensei: "Será que aquillo não incommoda?" Tambem notei que o Bertholdo ia cheirando tudo quanto era sacco de lixo pelo caminho. E a dona deixava. Eu não posso ficar cheirando lixo, não. Meus donos ralham: "Coisa feia! Parece um viralatta! Não tem vergonha? Quem tem pedigree não se rebaixa desse jeito!" Não vejo motivo para tanta implicancia. Eu ja sou naturalmente rebaixado, rasteiro de nascença... Outros da minha raça que moram na vizinhança e não usam touca são o Orpheu e o Balthazar, mas com esses raramente me encontrei e não sei si teem liberdades ou obrigações como as minhas. Só sei delles pelo cheiro que deixam nas mãos do meu dono cego ao chegar da rua, coisa que acho desleal da parte delle e me põe magoado. Em todo caso, a magoa vae passando quando o cego me chama para brincar ou me offerece um biscoito de cachorro, um bombon de cachorro, um bolinho de cachorro... Eu nem imaginava que existisse tanta coisa para cachorro, mas o cego diz que tudo de comer é "de cachorro" na hora de me offerecer. Eu não discuto: aboccanho, e está acabado.

Outra coisa com a qual meus donos implicam é minha mania de sahir correndo na frente delles durante o passeio. Acabo me distanciando muito, às vezes dobro a esquina e desappareço da vista delles, ou melhor, da vista do japonez, ja que o cego caminha apoiando a mão no hombro delle. Si percebo que me adeantei demais, olho para traz e vejo os dois vindo, naquelle passo mais vagaroso que meu proprio trote. Então fico parado até que se approximem e ja sei que vem bronca. Mas os dois sabem que eu nunca vou longe a poncto de me perder delles. Minhas corridinhas não passam duma tactica para poder cheirar tudo em volta emquanto espero que me alcancem. Aproveito para fazer um xixizinho aqui, um cocozinho alli e, de lambugem, trocar uns lattidos com a cachorrada da vizinhança. Si eu caminhasse o tempo todo ao lado delles, não teria tempo de fazer o reconhecimento do territorio: ficaria para traz e elles teriam que parar a todo momento para me chamar, o que seria mais chato para nós trez...

Elles ralham commigo mas, no fundo, sabem que sou exemplo de bom comportamento: não preciso de colleira, nunca atravesso a rua nem avanço nas outras pessoas ou nos outros cachorros. Si elles querem entrar na padaria da esquina, fico esperando na porta, sem necessidade de ser amarrado. Tem gente que até extranha um cachorro solto, tão quieto e ensinado, perto de tantos irrequietos e maleducados.

Isso não quer dizer que eu seja covarde e que não reaja si alguem vier tomar liberdades, tanto da parte da gentarada quanto da cachorrada. Passar a mão na cabeça ou nas costas eu deixo, ja que meus donos vivem repetindo que sou manso quando alguem pergunta. Ficar pegando nas orelhas ou nas pattas eu não deixo qualquer um, não. Só meus donos e pessoas bem conhecidas. Nem sei por que o cego gosta tanto de apalpar minhas pattolas tortas. Acho que elle fica na duvida si são mesmo tão curtas e grossas. Mas, na porta da padoca, si alguem quizer me agarrar emquanto os dois estão la dentro, eu latto mais grosso, rosno alto e arreganho os dentes: tenho medo que me raptem, mas finjo que sou feroz. Peor é o Kiko, um pirralho de orelha curta, bem menor que eu mas tambem salsichudo e todinho caramellado. Kiko morre de medo que alguem chegue perto e encoste a mão. Mesmo quando está com a dona, recua e quer sahir correndo. Si a dona entra na padoca, elle espera escondido atraz da roda duma bicycleta juncto à parede, como si estivesse atraz duma grade. Kiko é medroso demais, dá até raiva. Elle envergonha os outros salsichudos do seu tamanho, alguns bravos (como o Arbex ou o Chouriço), outros até mansos, como a Dorothéa (conhecida como Dodô) ou a Buma. Eu mesmo, que me acho pacato e calmo, sinto vontade de dar um avanço no Kiko, para elle deixar de ser besta.

Outros cachorros do quarteirão eu conheço só de vista ou de ouvido. O Ringo é um beagle de lattido mais grosso e rouco que o meu, que gasta o tempo na sacada do edificio vizinho e puxa conversa (o cego diz "cãoversa") com todo cachorro que passa na calçada. O Churchill é um bulldog que mora aqui no nosso predio, com quem cruzo de vez em quando no elevador e com quem troco lattidos pelas janellas. Parece que todos os donos reprovam qualquer "cãoversa", pois só escuto "Parou! Parou! Chega! Quieto!" sempre que um de nós tenta responder a outro que nos chama de fora a participar dum debatte de predio para predio. Quanta repressão! Faz mal batter um pappo assim gostoso com alguem? Dentro de casa meus lattidos estão cada vez mais laconicos (o cego ainda não disse "lacãonicos") e cochichados, soando como um "ueuf" meio tossido, meio pigarreado... Menos na hora de fazer festa, claro! Quem resiste a uma barulhenta festa para saudar a chegada dum dono ou duma visita?

Na volta do passeio, eu corro na frente e entro no predio antes dos meus donos, pelo portão principal. Só eu faço assim: os outros cachorros entram e saem todos pela garagem. Mas ninguem me barra, parece que nem reparam em mim. Talvez pensem que sou guia do meu dono cego... Mal entro no apê, corro para a lavanderia, onde fica a minha agua, juncto com a vasilha de ração, ao lado do meu caixote forrado, typo casinha, mas sem telhado. Só depois de mactar a sede deixo que meu dono japa tire minha touca, que fica pendurada na parede. Basta que alguem se prepare para sahir ou toque no assumpto "passeio" para que eu corra a buscar a touca, que trago na bocca até a porta de serviço. Às vezes dou uma de Miguel e pego a touca, mesmo quando sei que o japa vae sahir a trabalho e não pode me levar. Só para que ninguem se esqueça de que preciso dar minha voltinha...

Em dias quentes, o cego desce até o jardim ao lado do predio para "tomar uma fresquinha" e me leva juncto. Os outros cachorros do predio nunca vão alli, não sei por que, mas eu ainda não fui barrado nem meus donos foram alvo de reclamação. Talvez os moradores façam vista grossa porque sou cachorro dum cego. Então, elle fica sentado num banco do jardim, ouvindo o seu radinho de pilha nos audiophones, emquanto eu percorro toda a area e vou farejando cada cantho, até o cheirinho dos brinquedos do playground que fica no fundo do pateo, atraz do jardim. Aproveito para deixar meu xixizinho (e meu cocozinho tambem) naquella grama fofa, juncto ao muro onde sobe uma trepadeira, ou ao pé duma palmeira, que me lembra um poste. Entre uma corridinha para la e outra para ca (como si estivesse perseguindo um coelho), faço questão de afugentar algum pombo mettido a invasor do nosso quintal. Quando me canso de correr e cheirar, volto para perto do cego e fico repousando no piso lageado, aguardando que elle suba de volta ao apê. A essa altura, estou com a lingua de fora e, depois de mactar a sede, me pergunto por que não puzeram um pote d'agua no jardim, para uso dos cachorros do condominio...

Em casa, passo um tempão no mesmo logar, escarrapachado no tapete da sala ou dos quartos, fazendo companhia ao meu dono cego, ja que o dono japa pouco fica, e sae em differentes horarios para dar aulas de inglez. O cego só sae accompanhado e, em casa, fica quasi sempre sentado ou deitado, o que facilita a minha vida de companheiro fiel. Quando não está morgando, elle fica ouvindo o radinho de pilha nos audiophones miudos ou CDs de musica naquelles outros phones, quasi tão grandes quanto as minhas orelhas. No computador, é o contrario: o japa é quem usa phones e o cego usa uma machina fallante. Em geral não sou enxotado quando faço companhia, mas saio logo de perto quando alguem espirra, pois me soa como si dissesse "Passa!", coisa que só me dizem ao fechar a porta do quarto e só me aguça a vontade de ficar fungando por debaixo da porta, tentando farejar o que se passa la dentro...

Quando um de meus donos está na sala, me deito no tapete aos pés delle. O japonez costuma apoiar os pés nas minhas costas, o que me faz effeito de massagem, por isso não me incommodo. O cego às vezes tenta fazer "sanduiche de pé" na minha pattola, apoiando um pé sobre ella e pondo a outra pattola sobre seu pé, ou então pondo um pé debaixo e outro em cyma da minha pattola. Essa brincadeira nunca dá certo, porque eu puxo a patta antes que elle complete o ensanduichamento. Meu instincto me diz que é melhor não deixar que segurem nem prendam minhas pattas, mas o cego entende isso como scisma minha e não se conforma. Diz que ainda vou apprender a brincar de sanduiche de corpo inteiro, nem que elle tenha que se fazer de pão e me agarrar firme como si eu fosse o recheio. Assim fico ainda mais prevenido e evito dar-lhe a patta de bandeja... Mas deixo que elle coce minha barriga e viro de costas como si me fingisse de morto quando elle pega na pattola. Assim elle se toca que prefiro ser coçado na barriga e não apalpado na patta.

Quando o japa está em casa eu não posso ir ao dormitorio, muito menos subir na cama delle, mas si o cego fica sozinho eu tenho liberdade para pullar de cama em cama e de tirar minha pestaninha juncto com elle. Acho essas camas tão espaçosas que dá vontade de rolar, virar de barriga, mudar de posição sem precisar me enrodilhar como faço no meu caixote. Si o japa descobre que dormi em sua cama, levo um puxão de orelha e recebo até ameaças de chinelada: esse dono implicante diz que eu deixo cheiro, pellos e até pulgas. Mentira! Eu não tenho pulgas nem solto pellos! Quanto ao cheiro... Bem... Mas, affinal, que é que ha de errado com este meu delicioso cheiro de cachorro? Aliaz, esse é o typo de cheiro que eu sinto nos dois, quando elles voltam da rua sem terem me levado a passear! Assim fico sabendo em quaes manos elles andaram mexendo pelo caminho... É verdade que às vezes isso me deixa enciumado, mas o cego sempre me offerece as mãos ao entrar, dizendo: "Chicho, juro que não mexi noutro bassê! Quer conferir? Então cheire!" Ou falla: "Chicho, encontrei com aquella sua namoradinha, a Dodô, e ella lhe mandou lembranças! Quer ver? Cheire!"

Quando meus donos saem, tenho liberdade para ficar onde quizer, até para subir no sofá. Mas si demoram para voltar, fico ansioso e preoccupado. Então, o unico logar onde quero ficar é ao pé da porta, farejando pela fresta do capacho. Fico tão collado ao chão que eu mesmo pareço um capacho, alli, arrasado. Mas de longe ja percebo quando elles voltam e, antes que abram a porta, sou tomado de tal contentamento, que demoro a parar de lattir e gannir, de pullar e correr. Faço tanta festa que elles teem que me mandar parar. Mesmo quando só um delles está fora, me vem aquella sensação de medo, que só passa no momento de preparar a festa. Esse typo de medo não é o unico que me assalta, não...

Sim, claro que eu tenho um medinho de tomar banho, como tenho medinho de rojões e trovões. Dizem as más linguas que meu idolo é um tal de Escubidu, que, alem de medroso, é guloso. Querem me diffamar! Qual cachorro não se assusta com uma trovoada? Mas depois da tempestade vem a bonança, depois do foguetorio vem a bemadventurança, depois do banho vem o beijo, o biscoito e o brinquedo. Tudo de bom, tudo com B de bassê, ou de "bassezudo bonitudo", que é como meus donos me chamam quando querem me papparicar... Isso quando não chamam de "bebê bobão"...

Presto muita attenção na conversa dos meus donos e immediatamente reajo ao ouvir duas palavras que me despertam sensações oppostas: "banho" e "passeio". Si ouço alguem fallar em banho, saio de perto e me escondo. Si o assumpto for passeio, corro para a porta e chamo quem tocou no assumpto. Caso elle não venha, volto para chamar e insisto até que faça menção de sahir. Mesmo que alguem mencione a palavra "passear" referindo-se a pessoas, entendo a palavra como "bassear" e visto a carapuça, digo, a touca. Difficilmente alguem me dá banho em casa. Levam-me ao pet shop que fica do outro lado da rua, de onde volto fresquinho e perfumado. Engraçado é que la não sinto medo do banho, até porque seria fazer feio na frente da cachorrada toda. Alem do mais, o sujeito que tracta de nós (um gordão capaz de me carregar debaixo do braço como si eu fosse uma mortadella) sabe como nos manter na linha. Quando estou aos cuidados do gordo, obedeço a regras que não funccionariam em casa. Até topo caminhar a passo de escoteiro, ao lado de outros cachorros, quando sahimos em grupo pela calçada. Ah, mas quando volto para casa desconto aquella disciplina militar e aprompto alguma com o sapato de alguem, o que me vale um chinelo no trazeiro. Ainda bem que isso não rola todos os dias...

Si o tempo está chuvoso, meus donos não me levam a passear porque dizem que não posso molhar a patta. Para compensar, o cego me exercita brincando com umas bolinhas de borracha que vive apalpando. Elle joga as bolinhas pelo corredor do apê e eu saio pullando, vou buscar uma por uma, devolvendo-as em suas mãos. Elle acaba se cansando antes de mim e, ahi, voltamos para a sala, eu no tapete e elle no sofá ou na poltrona. À noite, faço companhia ao cego até que lhe venha o somno. Elle soffre de insomnia e ouve musica nos phones, madrugada adentro, emquanto o japonez, que levanta cedo, vae para o quarto. Quando o cego se dispõe a ir tambem, me diz que "está na hora dum baixote ir para o caixote", e sei que não tenho escolha sinão marchar à lavanderia, até que clareie o dia. Ahi fico de ouvido attento e, mal escuto elles conversarem, corro para pullar na cama do cego. Na do japa só pullo quando elle sae para trabalhar e o cego diz que "agora pode"... Ainda assim o cego commenta "Olha só que bassê folgado!" quando me descobre esparramado na cama do japa... De manhan, quando o cego demora a levantar da cama, pullo nella e me deito ao seu lado. Mas si elle me agarra firme e o japonez se levanta primeiro, quero seguil-o à cozinha e tento me desvencilhar dos braços do cego. Si estiver difficil de me livrar, começo a chorar e me debatto até que o possessivo me solte. Não consigo ficar noutro commodo da casa emquanto sei que tem gente na cozinha. Affinal, preciso ficar attento a qualquer chance de aboccanhar algo de comer que caia no chão ou que me offereçam...

Mesmo eu sendo, como diz o japa, "easy to spoil", quer dizer, mal acostumado, ou "malacostumavel", até do cego acabo levando um puxão de orelha de vez em quando. Elle não gosta que eu puxe sua blusa da cadeira para o chão, nem que eu durma em cyma della. Não quer que eu deixe na roupa este meu caloroso cheiro, que é a prova do meu amor... Paciencia! Quem é da nossa raça tem que apprender a ter paciencia com as incomprehensões dos donos...

Alem do puxão de orelha, levo, às vezes, um tapa no trazeiro, quando um de meus donos acha que estou meio mollenga para me mexer do logar onde me refestelei, ou quando ando muito devagar no final dum passeio. Mas jamais retribuo com rosnadas ou mordidas. Só com beijos. Mesmo si ganhei apenas um secco beijo na testa eu retribuo com um molhado beijo de lingua. Não que eu seja desavergonhado: é que todos os meus beijos são de lingua, mesmo...

Não entendo muito de psychologia humana, mas acho que meus donos são contradictorios. Elles dizem que entendem de psychologia canina e que fiquei "estragado" por safadeza minha, mesmo, como si não fossem elles que me mimam. Me chamam de "interesseiro" porque vou sempre atraz de quem entra na cozinha ou porque rodeio mais o japa pela manhan, quando é elle quem sae à rua, e fico no pé do cego à tarde, quando é elle quem desce ao jardim. Mas os dois acabam me passando a mão na cabeça e até me beijando depois de me chamarem de "safado". Tambem me chamam de "abelhudo" e "bisbilhoteiro" e dizem que vivo "fuçando em tudo", mas se esquecem de que preciso mactar a curiosidade e de que é pelo faro que os da nossa raça mais collaboram com a a rotina e a vigilancia da casa. Me chamam de "guloso" e de "comilão", mas são os primeiros a comer e a perguntar si quero isso ou aquillo. O japa diz que sou "selfish" e o cego diz que sou "egocentrico", só porque quero ser o primeiro a entrar ou a sahir por qualquer porta, mas eu choramingo de dó cada vez que vejo um delles gemendo de dor quando dão cabeçadas ou cannelladas na mesma porta, principalmente o cego. Uma hora o cego diz: "Chicho, o que você tem de marron tem de teimoso!" Outra hora diz: "O que você tem de marron tem de fofo!" Affinal, tenho mais defeitos ou mais qualidades? Vae entender! Apesar de tudo, tenho de seguir uma disciplininha basica sem reclamar, para não ser chamado de "resmungão" nem de "birrento"...

À mesa, elles se sentam sem repartir nada commigo. Só depois que acabam de comer é que eu ganho alguma lasquinha. No café, o cego se serve de biscoitos crocantes e, emquanto mastiga, vira para mim, que estou no meu cantho só olhando, e diz: "Que biscoito gostoso! Este biscoito de cachorro está uma delicia!" Mas são biscoitos de gente, que elle finge serem de cachorro. No final da refeição, elle pega um biscoito de cachorro, finge que está mordendo e repete que aquillo é uma delicia. Só então me offerece o biscoito, que eu pullo para aboccanhar e saio roendo, tambem fingindo que estou feliz da vida. Vae ver que estou mesmo, porque no fundo o que eu mais gosto é de merecer attenção... Ja o japa, si eu fico olhando o que elle está comendo, aponcta na direcção da lavanderia e diz: "Cadê a sua comida? Você ainda tem comida la no seu prato, não tem?" Eu vou até la, dou uma cheirada na ração, finjo que dei umas mordidas, e volto para perto do cego, que sempre reserva algo para me dar na bocca e sabe crear suspense. Desconfio que as coisas digitadas por elle no computador fallante sejam poesia, mas não tenho certeza. Imaginação delirante eu sei que elle tem, pois vive fallando e rindo sozinho, ou dirigindo-se a mim...

Ouvindo a conversa do cego com o japonez, fico sabendo que alguns de seus amigos são tambem donos de salsichudos. Um tal de Portuguez teve um mano hound chamado Noel no documento mas Guga no convivio, que foi vendido a alguem que ja tinha uma namorada para elle, da mesma raça, chamada Yanka, que eu gostaria de conhecer. Um tal de Borba tem outro mano, chamado Tristão, que ganhou uma namorada muito mana e maneira chamada Salomé, cuja photo eu vi e por quem me apaixonei à unica vista. Um tal de Marçal Aquino tem uma dachshunda caramellada chamada Thereza (o cego ja me prometteu apresental-a) e um tal de Sergio Fantini tem outra dachshunda chamada Bah, que é cor de carvão com gravatinha branca, mas desconfio que essa ja morreu, porque ninguem mais falla della. Um ajudante do cego namorou a dona de outra dachshunda caramello, chamada Brenda. O proprio japa, cujos paes teem sitio no Paraná, conta que mais uma caramellada morreu, a Sula, dizem que mordida por cobra. E o proprio cego, quando morava com os paes ja fallecidos, conta que tiveram uma carvãozinha chamada Gypsy Lee, que, como todas as dachshundas daquella cor, tinha sobrancelhas amarellas. Fico com vontade de conhecer pessoalmente, ou de ter conhecido, cada uma dessas possiveis namoradinhas, mas nunca surgiu opportunidade, porque meus donos não teem carro para levar-me a visital-as e porque ninguem que tenha carro as traz até aqui. Serão, pelo que concluo, eternamente platonicas. Sem problema, ja que tambem são platonicas as namoradinhas que conheço pessoalmente, seja de ouvido, seja de vista, seja de cheiro...

O japa falla que o cego gosta de "fazer piadinhas" a respeito de tudo e de todos. Commigo o cego conversa quasi sempre dando risada. Às vezes elle se agacha e me pergunta: "Quem é o bassê mais marron do mundo? Quem é? Quem é?" E elle diz "Quem é? Quem é?" quasi encostando o nariz no meu focinho. Isso me deixa louco de vontade de fazer festa: me ponho a lattir, a abanar o rabo e a lamber a cara delle. Outros de seus commentarios são do typo: "Chicho, você ainda vae ganhar o premio de bassê mais marron do mundo, sabia? O bassê marron, cor de marron bassê! Vae ser cappa de revista! Não vae? Não vae?" O cego chega a cara mais perto da minha quando pergunta "Não vae? Não vae?" Sei que elle quer festa, claro, e isso é commigo mesmo. Tem vez que eu penso que elle está zangado commigo, mas elle só finge se zangar e se faz de ironico: "Chicho, minha toalha de banho está fedendo morrinha! Você não andou dormindo em cyma della, andou?" Tambem costuma fallar: "Chicho, si você não comer sua comida, eu vou dar para o passarinho, hem?" Esse passarinho é um que vem toda manhan cantar na beira da janella do quarto, sempre no mesmo horario. Tenho raiva delle e corro para espantar aquelle intruso da nossa casa. Acho que é por isso que o cego ameaça dar minha comida para o passarinho: quer me ver comendo rapido para não dar tempo de apparecer nenhum cantorzinho de asas.

Por fallar em cantores, o japa achou pelo computador uns videos que mostram varios da minha raça fazendo karaokê. Elle passa para eu ouvir. Adoro um karaokê de cachorro! Então fico com vontade de participar da festa e, sempre que o cego chega para o meu lado e começa a cantarolar, eu tento accompanhar, aponctando o focinho para o tecto e me fingindo de lobo no alto do morro, fazendo serenata para a lua. Só me sae um uivo meio roufenho, que eu considero bastante melodioso e afinado, mas meus donos (e os vizinhos) desapprovam. O que eu acho engraçado é que os dois me provocam e depois fazem careta quando eu quero apresentar o meu solo vocal... Vae entender! Posso não cantar "Hound dog" como o Elvis, mas minha cover eu garanto que é personalissima!

E por fallar em festa, o japa vive achando no computador uns videos de "basset hound party" que mostram o anniversario de algum mano americano ou um bando de manos brincando ao ar livre. O anniversariante até corta seu bolo (a dona corta juncto, segurando a faca na pattola delle) e a familia toda canta "happy birthday". Quanto a mim, faço dois anniversarios por anno, um para cada data de nascimento, do japa e do cego, ja que ninguem sabe em que dia nasci. Em compensação, ninguem sabe quantos annos faço e posso continuar sendo eternamente moleque, o que me dá mais liberdade para commetter travessuras sem culpa, mesmo quando faço "cara de arrependido", como diz o cego.

No computador do japonez apparece todo typo de video, inclusive exhibindo manos meus na praia ou na piscina. Deve ser montagem! Si tenho tanto receio dum simples banho, como é que outro hound pode gostar de nadar? Vez por outra um mano entra correndo na piscina quando o dono chama, mas sempre fica algum na borda, hesitante, que só decide cahir na agua quando outro mano foi primeiro. Eu não teria coragem, mas algo me diz que, na hora H, minhas pattolas batteriam n'agua como as nadadeiras duma phoca, e eu juraria que sou parente della. Deve ser a nossa capacidade de improvisar numa emergencia, que nos faz apprender a nadar instantaneamente, ou instinctivamente... Nosso instincto tambem nos diz que não podemos ver um gatto sem attaccal-o, mas o japa ja achou videos mostrando um gatto "amassando pão" nas costas dum hound, que fingia dormir para aproveitar a massagem! Em outro video, o bassezão provoca insistentemente um gatto no sofá! E o gatto só finge que está bravo, não arranha nem foge, fica no logar miando e dando inoffensivas pattadas no basset! Será possivel? Só si foram creados junctos! Eu nem consigo imaginar um gatto convivendo e brincando commigo. Ja pensou? O cego ia me dizer que, si eu não comesse minha ração, daria para o gatto! Ah, eu mactava esse gatto!

O japa tambem achou videos que mostram um mano egual a mim fazendo companhia a um salsichudo menor. Um video se chama "Basset hound wants what dachshund has" e outro se chama "Dachshund wants what basset hound has". No primeiro, o grandão vê o pequenino roendo um biscoito e se faz de indifferente, mas logo começa a resmungar e a lattir, pedindo um biscoito egual. No segundo, o pequenino tenta agarrar o biscoito em poder do grandão. Quando penso nisso me dá vontade de ter outro cachorro com quem possa brincar, mas depois concluo que é melhor não ter que dividir nada com ninguem e ser o unico proprietario do meu espaço.

Quem mais brinca commigo é mesmo o cego. Não que o japa seja contra brincadeiras. Elle é só mais regulado, emquanto o cego é mais relaxado. Quasi sempre é o japa quem me leva para dar uma volta, pois o cego raramente sae. Nessas horas sou eu, e não o cego, quem ganha mais attenção do japa. Não nego que sou muito carente e preciso ser notado.

Por isso mesmo é que, si o cego pisa accidentalmente no meu rabo ou na minha patta, exaggero na reacção: solto um gannido bem alto e escandaloso, mesmo que não chegue a doer muito. Assim ganho mais uns agrados, uns beijos e umas palavras carinhosas, em vez de puxões de orelha. Affinal, minhas orelhonas ja são tão compridas que nem precisam ser mais puxadas, todos hão de concordar commigo...

As visitas, quando meus donos fallam de mim, nem acreditam que ja passei dos dez annos ha mais de dez annos e que pareço nunca envelhecer, nem conseguem entender como é que nunca precisei de veterinario, mesmo si as costas estão doloridas. Para ser franco, acho que esses extranhos duvidam da minha propria existencia. Eu não estou nem ahi. Para mim o que vale é que meus donos me amam, me mimam, me escutam e me enxergam. Principalmente o cego...

Glauco Mattoso

(*) Texto in progress, permanentemente actualizado e orthographicamente correcto, de accordo com o systema etymologico. [Quaesquer textos assignados por Glauco Mattoso estarão em desaccordo com a orthographia official, pois o auctor adoptou o systema etymologico vigente desde a epocha classica até a decada de 1940.]

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