DIA DE MUDANÇA

                    Vinha andando para casa, vivendo o pesadelo do calor sob o sol do meio-dia, quando descubro que estava seguindo o trajeto de um caminhão fazendo uma mudança. E eu, que já fui personagem de mudança várias vezes, só agora tive a noção exata deste verdadeiro espetáculo de intimidades.
                    As mudanças em caminhões fechados são discretas, nobres e até naturais para quem olha. Ninguém estranha um caminhão fechado com os anúncios de segurança e pontualidade, embalagens próprias, seguro contra danos morais e materiais. E tudo muito técnico e muito certo, sem perigo de revelações.
                    Mas, uma mudança em caminhão aberto, andando lentamente com todos os móveis de sobrevivência, este sim é um espetáculo. É como se de repente a rua se transformasse em teatro de arena para ser palco de uma cena que deveria ser íntima, como a vida de quem usa a cama, a mesa e as cadeiras.
                    Já repararam como a intimidade se desfaz por completo quando um caminhão anda pela rua mostrando colchões e armários de cozinha, panelas e roupas? Já imaginaram se a beleza dos grandes cenários não nao escondesse os bastidores e se dos picadeiros alguém pudesse avistar o outro lado do circo?
                    Posso dizer, sem cair no exagero e na imaginação criadora, que só quem mudou de casa várias vezes pode saber o que é uma mudança. Ninguém que nunca tenha precisado mostrar toda as suas propriedades móveis, pode saber a sensação dos armários que chegam para outros cantos, mudando os hábitos de sua vida.
                    Nas mudanças a gente reencontra objetos que imaginava perdidos e, de repente, perde outros que não esperava. Assim, há o reencontro com a roupa do casamento, agora sem o perfume que registrou a emoção, mas cheirando a guardado e tendo no cheiro de naftalina o grande sinal de abandono e coisa antiga.
                    Agora sei quantas vezes fui protagonista desse estranho espetáculo que é a mudança e foi preciso seguir, em nome da disciplina no trânsito, um caminhão aberto para ter a noção exata da cena íntima invadida por tods os olhos, desnudada de tudo e numa prova de que a forma de viver é o mais antigo de todos os traços.
                    Olhei o caminhão cheio de móveis e ainda avistei na curva as plantas agitadas com o vento. Pernas de cadeiras, bacias,panelas, colchão, geladeira amarrada na grade do caminhão, a antena de televisão exercendo a condição mágica de espectadora. Estranho e humano espetáculo que ninguém aplaudiu.

Vicente Serejo
Do livro: "Cena urbana", Editora Universitária, RN, 1982