meupai@ceu
Oi, pai!
Sua filha vai bem - "sempre en la punta", respondendo à pergunta que você faria por telefone. Mas parece que aí em cima não há dessas coisas e, por isso, pela primeira vez, não vou ouvir-lhe a voz no seu dia. Minha esperança é de que as onipresentes ondas virtuais expandam-se até além da atmosfera, atingindo outros mundos e dimensões, e você receba este e-mail...
Desde que tirou o time, tenho pensado demais em você. Mais do que quando estava vivo, todos os dias, pelos mais diversos motivos. Uso suas palavras, penso no que diria, no seu riso irônico... Arre, você era crítico, hein?...
Foi pai tão amoroso na infância! A gente brincava de luta, ia aos filmes de Tarzan e você me levou ao Maracanãzinho para ver o Bat Masterson, lembra? Nunca vou esquecer!
Quando ia ver seus doentinhos aos domingos, levava-me e eu o esperava no carro. Se fosse agora, com toda a violência que campeia (termo seu), isso não seria possível. Houve um dia em que vi passar um vendedor de balões de gás. Nossa, como quis um! Mas você não estava ali, e nem sei se eu teria pedido caso estivesse. Quando o vi voltando ao carro, tinha na mão um balão colorido! Ei, estou chorando agora, mas não é de tristeza!
E quando tive aquela desidratação? Você estava de plantão e veio me buscar de ambulância. Fui para o hospital no banco da frente, entre o médico e o motorista... Pedi para tocar a sirene e fui atendida - que diversão louca! Tomei soro e melhorei. Você me perguntou se eu queria passar a noite no hospital ou voltar para casa. Preferi a última alternativa e me levou de volta, de ambulância outra vez. A memória mais forte que tenho daquela noite é o perfume da sua mão, mistura de sabonete com cigarro. Até hoje, lembro-me de você quando o sinto.
Depois, tornou-se um pai ranzinza! Trancou sua princesa adolescente na torre do castelo e mandava chumbo nos pretendentes que se aproximavam. Sua maior arma era desmerecê-los... (riso) Além, é claro, de controlar horários, não deixar entrar em carro de rapaz, essas chatices todas.
Mas o pior foi o distanciamento, a freqüência das broncas que eu não entendia, a sensação de fazer tudo errado. Hoje enxergo que estávamos os dois em crise ao mesmo tempo: eu adolescendo e você ficando cego, tendo que abandonar a medicina, pendurando precocemente as chuteiras - não tinha nem cinqüenta anos!
Veio a sua fase da leitura na varanda. Sempre
leu muito, lembro-me de você sentado na poltrona verde da saleta,
abajur aceso. Mas, depois que parou de trabalhar, estava sempre lendo,
com seus óculos de lentes grossas e uma
lupa - a cabeça acompanhando cada linha,
como um espectador de jogo de tênis. Faltava-lhe campo visual...
Lia de tudo: filosofia, sociologia, política, bons romances - principalmente
históricos... Adorava história, não? Discorria sobre
os Capetos, Carlos Magno, Plantagenetas... Dizia-me sempre: "tem que ler
os livros!" Argh... Não li tanto quanto gostaria de ter lido, mas
não faz tanto mal assim, porque você fazia o serviço
e nos impregnava de cultura.
Na faculdade, teve aquele meu trabalho em grupo sobre utopia, lembra? A gente tinha que resumir um livro do qual não entendeu sequer as orelhas... Mas você também custou, confesse! Acabou chegando lá, reconheço. Ditou-me o resumo, explicou ao grupo do que se tratava, escolheu os temas para debate e orientou-nos sobre como conduzi-lo. Tiramos dez!
Muitas vezes, eu tinha vontade de lhe perguntar alguma coisa, mas refreava-me porque já sabia que iria passar infindáveis horas lendo em voz alta encadeados verbetes de enciclopédia...
Aí, veio aquele revertério na minha vida, a paixão pelo ogro. Você não queria. Dizia que ele não seria bom marido e nem bom pai. Mas desde quando filhos escutam o que os pais dizem? Oh, hoje sei disso muito bem! Casei, tive filhos, penei. Agora estou livre. Um dos meus grandes orgulhos é que o ogro, acostumado a bajulações resultantes do seu poder econômico, achou que você iria estender-lhe o tapete vermelho pela honra de ter sido eu a eleita. Quebrou a cara, não foi?... Como precisava de sua admiração - coisa que nunca teve! Foi uma das grandes frustrações da vida dele, hehe... Pai, você foi grande!
Meu casamento e, depois, a vinda para Florianópolis afastaram-nos um pouco, eu acho... Melhor dizendo, eu me afastei de você. Dois anos antes de ir embora, veio-lhe aquele piripaque, do qual se recuperou fisicamente, mas sua cabeça já não era a mesma. Virou um pai-menino, com quem a gente tinha que ter paciência, que repetia tudo, esquecia o que havia dito momentos antes, recordava infindavelmente a sofrida infância, cheio de saudade... Céus, que cansaço!... Você tão carente, tão precisado de amor, monopolizando todo mundo, falando alto, brigando, dando ordens... e com o choro tão fácil...
Aí, vieram o tombo e a fratura no fêmur. Quando Clélia me avisou, você já estava no hospital e eu sabia que não ia sair mais: dois dias antes, havia sonhado com um morto querido que não consegui lembrar-me quem era ao acordar. Arrumei a trouxa e viajei para vê-lo. Você já estava inconsciente (?) na UTI, mas estremeceu quando toquei-o e falei-lhe... Seguiram-se o enterro e a missa. Senti, sim, mas não fiquei desesperada como mamãe, para quem parecia que a vida tinha se acabado. Sabe disso, pai?...
De acordo com seu desejo, sua cabeça no caixão repousava sobre a Antologia Nacional - edição antiga comprada em sebo porque seu estróina irmão - que Deus o tenha - havia vendido a sua em momento de aperto... Rindo de novo! Sobre suas mãos, a boina e a braçaceira da FEB. Quem não se aproximasse, diria que ali repousava um jovem romântico. Você era assim para mamãe, nunca deixou de ser. Mesmo quando teve um comportamento tão difícil nos últimos anos.
Aqui, na Ilha da Magia, aprendi a ser boquirrota e não consigo deixar de lhe contar que, agora, você já longe, mamãe fala de paixão e dos seus beijos... De vizinhos denunciando à Vó Aurora o namoro quente no portão. Quem diria, Dr. Orlando! Como é que me prendia daquele jeito então?! Ó, aqui vai uma queixa: se tivesse sido mais liberal, talvez eu tivesse tido a chance de escolher melhor... Mas isso a gente acerta na próxima encarnação, me aguarde!
Paizinho, não me descabelei quando você tirou o time... Eu já estava afastada e, afinal de contas, era a ordem natural das coisas... Continuo não me descabelando, mas tem estado cada vez mais presente na minha vida. Não é saudade, porque sinto-o comigo o tempo todo - nas minhas palavras, no que escrevo, lembranças que tenho, exemplos, brilhantismo, senso de humor - crítico, repito!
Percebo agora seu inestimável legado, junto com mamãe. Sou uma mulher íntegra, sensível, altruísta, de boa fala e escrita, com um certo nível cultural, amiga de meus amigos. Talvez, às vezes, seja amiga demais de quem não me merece, mas isso é culpa da sua herança!
Nossa.... Estou feliz por ter tido este papo com você! Foi como a média entre acerto de contas e reconhecimento do quanto lhe devo - de pessoa para pessoa, sem essa de pai e filha.
Sei que vai bem aí, na varanda celeste... Você é muito mais do mundo em que está agora do que daqui de baixo. É uma honra ser sua companheira de jornadas.
Beijos da sua filha
Maria Emília Berthier