UMA E OUTRA

Mudou-se para a Vila Mariana aos 7 anos de idade, em frente à “Pracinha”, como era conhecida a Praça Doutor Carvalho Franco, naquele pedaço do bairro. O pai, militar autoritário, tinha idade para ser seu avô; a mãe, alcoólatra nas horas vagas e nas ocupadas também! Ela? Gordinha, triste, solitária, filha única daquele estranho casal. Logo matricularam-na em Colégio de Freiras, só para meninas, pois, filha de militar, naquela época, era criada debaixo de linha dura, educação rigorosa! A casa, alugada, tinha 3 andares: no nível da rua, a área social e a cozinha; no piso superior, 3 quartos e o banheiro; no piso inferior, abaixo da rua, lá atrás, um quartinho de empregada, um pequeno banheiro, o tanque e um quintal onde seu pai acomodou um orquidário. Em baixo da área social tinha outra casa, que não lhes pertencia: fora alugada a uma senhora que se dizia viúva, costureira, também mãe de filha única, um ou dois anos a menos. As casas eram separadas: atrás, por um alto muro e na frente, apenas por uma grade baixa que dividia o grande quintal (onde cabia até carro) da pequena entrada com escada que levava à pequena moradia do andar inferior.

As duas fizeram amizade, apesar da diferença de idades. O pai, o que dava à filha, dava, em menor tamanho ou quantidade, à amiguinha, “para não sentirem a diferença” – dizia ele. A menor logo foi matriculada também em Colégio de Freiras, quando uma tia, em melhores condições financeiras, resolveu proporcionar uma boa educação à menina.

O tempo foi passando, as duas crescendo, a amizade mudando. Uma logo começou a namorar em casa, aos 15 anos. O pai, apavorado. Porém, preferiu o namoro sob seus olhos e sua marcação cerrada. A outra “dava malhos” no portão. A mãe se matando na máquina de costura, mal tinha tempo de levantar. Lá de baixo, nada via.

As mães também foram mudando, com o passar dos anos: uma parou de beber, a outra levantava da cadeira, de vez em quando, para ver onde ia parar o mirrado dinheiro dos consertos, que de vez em quando sumia!

Aos 18, a mais velha começou a trabalhar numa elegante Loja de Decoração, nos Jardins, e já ganhara “anel de compromisso” do namorado de infância. A outra, quando completou 17, foi internada numa clínica para tratamento de dependentes de drogas. A primeira um dia virou a mesa da vida: foi morar sozinha, terminou o namoro sério; perdeu a virgindade aos 23 anos. A mais nova foi mãe aos 19 e deu a criança para adoção. Uma casou-se aos 30, largando o emprego em uma Loja de Antiguidades, também nos Jardins, no chamado “Quadrilátero das Artes”. Foi mãe aos 31, já proprietária de sua própria loja de decoração, na Alameda São Gabriel. A outra morreu, aos 29, de overdose. Foi achada em um calçadão do centro velho, perto da Praça da Sé, sem dinheiro ou documento que a identificasse. Parecia uma velha! De dar dó, a tristeza da mãe que tanto se sacrificara, ao reconhecer o corpo da filha!

A primeira abriga a mãe em sua casa. A mãe da segunda, no asilo, sem eira nem beira, sem saber o destino do neto (ou neta): única herança da filha.

A casa, ou melhor, as duas casas, estão abandonadas! Uma tristeza ver o jardim, outrora tão bem cuidado pelo militar, já falecido, transformado em mato! As vidraças quebradas, a tinta verde descascada. Um ar de abandono, naquele lugar, que nunca mais foi habitado! Na “Pracinha”, ainda se pode ouvir, ao longe, a alegria e os ecos das brincadeiras de roda e de casinha das duas meninas, vindos do passado.

Thaty Marcondes