Os olhos azuis límpidos de Uriel me olharam durante toda a viagem.
Há mais de um mês eles me seguiam e me acordavam, no meio da noite.
Agora me perguntavam, por que fizeram isso comigo? O que está acontecendo?
A estrada nunca chegava ao fim. Havia túneis e viadutos. E os olhos de Uriel, cheios de lágrimas, indagavam.
Agarrado a mim, como se fosse a única ponte com a seu pequeno mundo que desmoronara há um mês, quando Marcelo se fora, com móveis, mesas, cadeiras, camas, plantas, panelas, fogão, geladeira, televisão, casa. Ficara na sala apenas uma velha almofada e Idelma, que pouco se importou com o que estava acontecendo em suas vidas e continuava a comer e dormir.
O mundo de Uriel desmoronara e eu era sua única chance de sobrevivência.
Porque só eu sabia o que ele estava sentindo, enquanto as luzes e as árvores corriam pelas janelas do carro e ganhávamos a estrada desconhecida rumo ao seu novo lar.
Na longa viagem, pude costurar os pedacinhos da história de Uriel que, é lógico, recebeu esse nome por causa do anjo.
Não era a primeira vez que Uriel atravessava a ponte. Nascera
do outro lado da baia e, como muitos gatinhos, foi vendido, com documentos,
pedigri, caixinhas e coleiras, para morar numa grande casa, com jardins
e pátios ensolarados, grandes almofadas e sofás convidativos.
Uriel era um presente de amor.
De Marcelo para Fátima
com paixão
para sempre
1993
E lá estava Uriel, olhos azuis cheios de confiança no mundo, nos amigos, dentro de uma caixinha toda forrada de papéis coloridos, laços de fita vermelha, cercado de cheiros novos que ele analisava e arquivava para sempre.
A sala onde o soltaram era imensa, com altas paredes repletas de quadros.
Marcelo e Fátima se abraçaram, se beijaram, rolaram para o sofá e Uriel ficou andando por ali, catalogando cada objeto: o pufe, vermelho de veludo, a arca colonial, os castiçais, o sofá menor - que seria seu refúgio nos primeiros meses de solidão - a grande janela de vidro através do qual podia ver os pássaros no jardim e, além do jardim, o alto muro que o separava de outro mundo. Mediu os tapetes, as cortinas, aventurou-se pela cozinha, em busca de água.
Por duas vezes tentou chegar ao tampo da pia, mas ainda não tinha impulso suficiente para o salto. E gastou algum tempo afiando as pequenas unhas nos pés da mesa. Até que conseguiu subir e tirar proveito, aqui e ali, dos restos do café da manhã: lascas de presunto, um bom pedaço de queijo e leite derramado no pires.
Dormiu muitas horas enrolado dentro da cestinha de pão até ser encontrado, à noite, na hora do jantar.
Agora, no meu colo, enrolado num velho pedaço de vestido, Uriel rememorava o aconchego daquele cesto, mas todas as referências tão cuidadosamente catalogadas haviam desaparecido.
Dois anos depois de ter chegado àquela casa, Fátima, sua dona se foi. Uriel nunca entendeu a razão da sua partida. Na casa grande demais, Marcelo e ele vagavam de um lado para o outro, durante a noite. Uriel, como sempre, instalado nos ombros de Marcelo como se fosse um cachecol. De manhã, insones, Uriel se recolhia ao sofá menor para dormir. Marcelo saia para trabalhar e só voltava à noite. Eram longas horas de silêncio, solidão, frio e fome.
Mas à noite, quando Marcelo chegava para mais uma caminhada, Uriel ganhava comida e bacia limpa. Era tudo na sua vida. Seu desejo mais profundo, sua fonte de felicidade e energia, sua razão de estar vivo. A hora da chegada de Marcelo, a refeição farta, a água limpa, a bacia limpa e o ombro para caminhar pela casa. O mundo era assim.
Alguns meses depois, Marcelo resolveu fazer uma coisa para Uriel ficar mais feliz: comprou uma gatinha. Idelma, sabe-se lá o porquê. Era parecida com Uriel, mas os olhos eram redondos demais, agudos demais, sobreviventes com certeza e Uriel teve medo da força de Idelma. Ela cresceu muito rápido e mais rápido ainda estava disposta ao casamento. Uriel, no entanto, tinha outros planos para si mesmo e se recusou assumir o papel do procriador. Queria seu mundo de volta. Queria Fátima e Marcelo no sofá e ele no cesto de pão. Queria, pelo menos, andar noite após noite no ombro de Marcelo. E nem isso tinha mais, porque agora Marcelo sai todas as noites, e ia sabe-se lá para onde. Restava a Uriel esconder-se de Idelma, sempre voraz, sempre cheia de vontades pela vida.
Com o tempo, Uriel acostumou-se à rotina. Encontrou vários refúgios na casa e Idelma descobriu que podia sair pelos telhados vizinhos. Cada um seguia seu caminho. Tudo era calmo, no seu lugar.
Tudo como deve ser na vida de um gato.
Até que aconteceu a grande tragédia.
Uma avalanche de fatos passou por cima de Uriel, a partir daquela visita.
Saída não se sabe de onde, uma mulher chegou certo
dia abraçada com Marcelo, trazendo uma bolsa grande com algumas
roupas e livros. Abriu a casa toda, mandou levar todas as plantas para
o jardim, arrancou as roupas da cama, mandou embora o pequeno sofá
de dormir e a mesa de afiar unhas, jogou no lixo o cesto de pão
de dormir à tarde, fez o mesmo com a cortina de apoio para olhar
a janela, colocou a bacia no distante quintal dos fundos, sumiu com toda
comida só porque tinha cheiro de biscoito e mandou passar uma coisa
malcheirosa na casa toda. Uma faxineira ia fazendo isso tudo, enquanto
Uriel, perplexo, tentava salvar uma coisa aqui, outra ali, esquivando-se
das vassouradas.
Depois de alguns dias, perdido na imensidão da casa limpa,
enquanto Idelma pensava apenas em comer, fosse o que fosse, Uriel viu o
portão da rua se abrir, uma traseira de caminhão imbicar
no jardim e três homens, em pouco tempo, levarem tudo que restara
do mundo de Uriel.
A faxineira voltou. Varreu tudo, lavou tudo, colocou uma almofada no chão da sala, a bacia no quintal, um prato com carne ao lado, fechou janelas e portas e se foi.
Nem um adeus, nem uma palavra amiga, nem um sinal de Marcelo. Como Fátima, ele desaparecera além muro do jardim. Para sempre.
A partir daí, a cada final de dia, um homem alto, moreno, abria o portão da rua, a garagem, entrava no quintal dos fundos, raspava a comida velha e ressecada - quando havia sol - e encharcada - quando chovia - e colocava nova refeição. Resmungava alguma coisa sobre cheiros e moscas e desaparecia.
Idelma não podia mais passear no telhado, porque a porta de acesso ao segundo andar estava fechada. Se não, com certeza, teria caído no mundo lá fora e seguido seu destino de sobrevivente.
Uriel apenas dormia durante o dia, na almofada velha que ficara no chão da sala e vagava pela parte livre da casa, noite afora, buscando nas sombras o ombro de Marcelo. Comer, só o suficiente para estar de olhos abertos na noite seguinte - quem sabe? ele voltaria e eles pudessem retomar a vidinha simples e cúmplice que haviam construído depois da partida de Fátima.
Às vezes, no final do dia, Uriel ouvia uma voz que falava com ele do outro lado do muro do jardim. Era uma voz amiga, mas ele mal podia distinguir o que diziam. Tinha certeza, porém, que era com ele, embora não dissesse seu nome.
Um dia, quando a comida chegou, Uriel aproveitou-se da situação
para ganhar a calçada e esperar pela voz.
Foi assim que nos conhecemos. Eu, vindo do trabalho, Uriel, à
procura de salvação.
Por dois meses o olhar límpido, azul, de Uriel me seguiu e me acordou pedindo ajuda, indagando, querendo respostas e aconchego.
Até que um dia, que é hoje, conseguimos fazer esta viagem, rumo a um lar desconhecido, onde Uriel vai morar, dividindo seu mundo com quatro cachorros, três gatos, duas gatas, cinco filhotes, quatro crianças, dois adultos, muita gente chegando e saindo e voltando, sempre voltando. E nem sinal de Marcelo, que se casa agora, estes dias. Rezo por você, Uriel.
Uriel morreu cinco dias depois de se mudar para Itaboraí. De saudade.
Ana Lagoa