SETE VIDAS

Quando a velhice nela se hospedou de vez com face de doença terminal, subjugando-a, anunciando a morte, Joana retornou à casa abandonada. Retirou a placa de vende-se, mandou capinar o outrora vicejante jardim, consertar e pintar a cerca de madeira, reparar as vigas de sustentação da varanda tomadas por cupim ou broca. Ah, quem dera pudéssemos fazer o mesmo com a gente, suspira enquanto vê o técnico trabalhando: tomara tantas injeções quanto, sem resultado. Acabara desistindo, apesar das súplicas de seus médicos e familiares; largara tudo sob protestos de todos. Sozinha de volta a casa mandou trocar lajotas do piso que o alto tráfego irremediavelmente arranhara. Raspar e pintar as bases das paredes perto do chão, tomadas pelo mofo proveniente da umidade do solo muito próximo à lagoa. Abriu para arejar todos os armários. Colchões e travesseiros expostos ao sol. A roupa quarando no varal, cheirando a limpeza. Ligou a geladeira e a abasteceu. As quatro bocas do fogão acesas: tant a! comida, parecia que receberia convidados além dos que já trouxera: a saudade e as boas lembranças.

Mirando-se no espelho do fundo do corredor se viu décadas atrás, jovem, feliz, saudável e rodeada de gente. Áureos tempos tinham aí vivido. Quanto alvoroço. Quanta balbúrdia. No silêncio da noite que avança, entre um grilo e outro quase pode ouvir o passado feito ouvirá daqui a pouco sua oitava Bachiana, posando de maestrina como sempre gostou de fazer, desde menina. Insana evocação, real como uma alucinação, praticamente podia vê-la, tocá-la. A casa tão cheia, constantemente algo faltando: uma almofada do sofá da sala passando por travesseiro, uma colcha servindo de coberta, toalhas de rosto enxugando o banho de uma visita extra, bem-vinda em qualquer ocasião. Quantas noites dormira lá fora enrolada na rede protegendo-se daquele ar frio que só aparecia na madrugada e despedia-se assim que o dia clareava, para dar lugar ao soberano calor. Quantas trilhas de formiga, displicentemente, sonolenta, acompanhara, nas raras silenciosas tardes quentes. Flores que as crianças semearam ! (e vira ambas crescidas). Árvores frutificadas. Quanto acordar com piados de filhotes de passarinho no ninho, no telhado logo acima do seu quarto. Quantas vezes deitada na grama quieta, o livro deixado de lado, só observando o vôo baixo do gavião, o saltitar do bem-te-vi na beirada do muro, os rasantes do nervoso beija-flor.

Se um gênio da lâmpada aparecesse agora talvez se espantasse com o seu pedido: voltar atrás no tempo, igual a um filme que se rebobina, viver tudo de novo, a mesma vida. Até os episódios dramáticos, como o susto daquele dia, Luísa com o pé sangrando, levada às pressas para o hospital para dar ponto. Ganharam novos amigos, o vizinho que acudiu era médico e passou a freqüentar com a família, assiduamente, seus churrascos de domingo. Ou quando Leandro, o caçula, se perdera andando de bicicleta nas imediações e fora trazido são e salvo pelo filho do vigia do condomínio vizinho, daí em diante seu inseparável companheiro de folguedos. Mesmo o assalto à mão armada que num fim de tarde de domingo sofrera, o único na antes e depois calma região, praticado por gente de fora que ali viera para um amistoso jogo de futebol. Levaram o carro com as malas dentro e lhe deixaram só o peso das horas de tensão pelo episódio vivido e a compaixão por gente capaz de tal barbaridade. Escapou ilesa, n! enhum arranhão a não ser na alma: por muitos meses tivera pesadelos de repetição com os bandidos, tentando elaborar o trauma. Daí em diante começou a espaçar as idas, só viria acompanhada.


Seria sua última viagem. Sem volta. Sua última morada antes da derradeira. Refletiria – se o tempo, generoso, permitisse – sobre sua vida plena, suas atuais mazelas, seu envelhecimento. Fizera pela casa o que não mais podia fazer por si mesma. Consertada, reformada, bem cuidada assim, outras sete vidas viveria. Seus alicerces eram bons, sólidos, sobrevivera às intempéries, à violência. Joana não, encaminhava-se para a demolição interna espontânea, apesar de que foram dias (e noites) suntuosos de linguagem. A divina, musical, e a dos homens: falando pelos cotovelos, pelos quatro cantos, da calçada ao quintal dos fundos, do nascer ao por do sol. A casa escutando, acolhendo. Herdeira de sons, de energia, e finalmente de seu corpo, servindo-lhe de pré-epitáfio.

Encontraram-na caída, serena, um leve sorriso esboçado. Ao seu lado, olhar triste e zeloso de quem entendia e sentia mais do que ninguém, seu velho gato, incrivelmente rouco de tanto miar.

Ana Guimarães