A POESIA DE LEILA MÍCCOLIS
TRANSPONDO CATEGORIAS
Kátia da Costa Bezerra
Universidade Federal de Minas Gerais
Publicado na “Revista de Crítica
Literária Latinoamericana”, nº 52, Dartmouth College (Hanover)
EUA, 2º semestre de 2000, pp. 267-268.
Nova Inquisição
Minha fama é negra,
sou mau elemento:
censurarão meus versos
pra servir de exemplo?
O que se percebe nas últimas décadas
no Brasil é que, apesar do surgimento de diversos movimentos sociais
principalmente a partir do final dos anos setenta e nos anos oitenta, ainda
persiste a censura a posicionamentos que tentem retratar a homossexualidade
masculina e feminina como algo normal 1.
Neste sentido, a forma violenta como os homossexuais têm sido assassinados
(Mott, 1996) pode ser percebida como um indício da forte homofobia
que domina a sociedade brasileira. Não é por acaso
que, apesar da existência de diversos grupos espalhados por diversos
estados que procuram servir de suporte e discutir a questão da homossexualidade,
a grande maioria das “lésbicas” 2 ainda prefere
permanecer anônima por medo das conseqüências a uma maior
exposição pública muitas confessam que se sentem
compelidas a manter uma aparência de “normalidade” nos locais de
trabalho por medo de perderem o emprego.
Logo, dados como esses deixam patente a existência
de diferentes graus e formas de violência presentes no dia-a-dia
das pessoas, uma percepção que atesta o papel crucial que
a sexualidade ocupa no processo de estruturação da sociedade
brasileira. Por causa disso, o presente trabalho propõe-se a recolher
exemplares de diferentes discursos que circularam nos anos oitenta para
verificar não só a forma como determinados setores da população
têm reagido à questão da homossexualidade, mas também
para observar o papel da censura no processo de controle e legitimação
do paradigma heterossexual. Da mesma forma, o estudo voltar-se-á
para a análise da poesia produzida por Leila Míccolis nessa
mesma década para verificar a forma como seus versos procuram articular
novas formas de ser, num processo em que a ironia, a ambigüidade e
o humor tornam-se peças chaves.
Assim, num primeiro momento, a pesquisa em revistas
como Nova, Cláudia e Manchete publicadas ao longo dos anos oitenta
confirma a persistência de um forte sentimento de homofobia, uma
vez que são poucas as reportagens que se referem ou mesmo tentam
construir uma imagem mais realista das “lésbicas”. Um dos poucos
exemplos encontrados foi uma reportagem na revista Nova publicada logo
no início dos anos oitenta que procura mostrar as pressões
e os preconceitos a que estas mulheres estão sujeitas no seu dia-a-dia3.
A reportagem aponta o homossexualismo (assim como o heterossexualismo)
como um comportamento apreendido em função do relacionamento
entre a criança e os adultos, rejeitando, por conseguinte, sua caracterização
como uma anormalidade. Verifica-se também, por parte da repórter,
a preocupação de perceber as “lésbicas” na sua pluralidade
(rejeitando uma visão simplista), uma vez que a reportagem se refere
às “sapatilhas” e “minas” e àquelas que rejeitam a adoção
de qualquer papel heterossexual4
. Um outro exemplo pode ser encontrado na revista Manchete. Em “Homoeróticos/
Eles já são 13 milhões no Brasil”, a reportagem denuncia
que, apesar da existência no Brasil de algumas associações
de “gays” e “lésbicas”, estes ainda têm de permanecer escondidos
por causa do forte preconceito presente na sociedade5.
Por outro lado, depara-se com inúmeras
reportagens que ajudam a comprovar a carga de preconceito a que estas mulheres
estão sujeitas. Um exemplo é a pesquisa promovida pela própria
Nova em 1987 6. As 4944 leitoras
entrevistadas são, na sua maioria, mulheres solteiras com curso
superior completo ou incompleto, morando nos grandes centros urbanos, ganhando
de 5 a 20 salários mínimos e que estão compreendidas
numa faixa etária que varia dos 19 aos 40 anos. Assim, entre os
muitos dados analisados pelos pesquisadores, alguns contribuem para uma
melhor percepção das transformações por que
passava a sociedade no final da década. Por exemplo, ao comparar
os dados obtidos em 1987 com os de uma pesquisa semelhante feita em 1981,
a reportagem conclui que as leitoras de 1987 têm um relacionamento
sexual mais aberto, uma vez que as mulheres mais jovens demonstram ter
uma maior preocupação com sua própria satisfação
sexual7.
A pesquisa revela também que o sexo
começa mais cedo na vida do segmento mais jovem (em 1981, 35% das
entrevistadas disseram ter tido sua primeira relação sexual
entre os 29 e 24 anos de idade; em 1987, 55.3% tiveram-na entre os 16 e
20 anos de idade). Acrescente-se a isso o fato de a pesquisa apontar para
a existência de um diálogo mais aberto entre mães e
filhas, como pode ser comprovado em vista de muitas das jovens entre 15
e 24 anos de idade terem sabido do sexo por suas mães. Todavia,
a rejeição a um relacionamento homossexual ainda é
muito forte, uma vez que ao serem inquiridas sobre suas fantasias sexuais,
somente uma leitora admitiu ter tido fantasias sexuais (não se perguntou
sobre um relacionamento real) com outras mulheres. Todas as outras 4943
leitoras restringiram-se ao modelo tradicional – o heterossexual.
Finalmente, pode-se citar uma pesquisa
organizada pelo IBOPE em 1985 com jovens do Rio de Janeiro e de São
Paulo (os maiores centros urbanos do Brasil) em que, embora os jovens afirmem
que o prazer sexual é independente do amor (posicionamento que se
contrapõe ao que é veiculado pela mídia da época),
estes são enfáticos em afirmar que o bissexualismo não
é algo natural e que o sexo entre homens causa repugnância8.
Já no âmbito das novelas de
televisão, pode-se também detectar a presença de um
sentimento de rejeição pela forma como a censura corta cenas
e diálogos que fogem ao padrão sexual considerado “normal”9.
Nesse sentido, a novela “Vale Tudo” (1988) da Rede Globo de Televisão,
por exemplo, teve um diálogo cortado por fazer uma clara alusão
ao relacionamento sexual entre duas mulheres que se queixavam do preconceito
que sofriam. Estas reclamavam de serem vistas como uma “doença,
um vício” que “merece castigo”. O diretor da Censura Federal considerou
uma “aberração” e imprópria para o horário
(20h) “a abordagem natural com que o homossexualismo era tratado na cena”
o que, segundo ele, poderia induzir os jovens a terem esse tipo de relacionamento.
Dessa forma, sua única preocupação ao censurar o diálogo
foi em “resguardar o público menor de idade”10.
Assim, esses poucos exemplos aqui arrolados
permitem compreender porque teóricas como Judith Butler e Teresa
de Lauretis têm se preocupado em entender a origem do sentimento
de repugnância que pode ser detectado tanto nas pessoas pesquisadas
quanto nos telespectadores de um modo geral. Em seus estudos, Butler reporta-se
ao caráter punitivo da lei como um fator que impele à aceitação
de categorias como masculino e feminino. Desse modo, seguindo a linha de
pensamento de Freud, que via os indivíduos num primeiro momento
como bissexuais, Butler adverte que o caráter homossexual de todos
os indivíduos precisa ser rejeitado para que o modelo binário
homem/mulher heterossexual seja implantado. Para tanto, torna-se necessária
a construção no domínio do simbólico das figuras
do “sapatão” e da “sapatilha” que assumem uma dupla função.
Primeiro, desenvolvem um sentimento de horror que compele à aceitação
de uma posição sexual (heterossexual) e, segundo, impedem
a emergência de outras identidades e desejos que poderiam colocar
em xeque o modelo binário proposto — modelo construído a
partir de oposições e exclusões.
Entretanto, como alerta Butler, as identificações
são posições temporárias, uma vez que a criação
de um espaço de estabilidade para a constituição da
identidade deriva da íntima inter-dependência que se estabelece
entre o que é prescrito pela lei (o espaço de inteligibilidade)
e o que é desprezado e excluído por essa mesma lei e que
permanece nas suas fronteiras. Nesse contexto, assumir uma identidade significa
aceitar uma série de normas e regras que foram estabelecidas anteriormente
e às quais os indivíduos devem se ajustar; todavia, a impossibilidade
de uma total identificação gera um sentimento de frustração
e instabilidade que pode ocasionar a abertura de espaços de contestação
e negociação11. Espaços,
na verdade, que permitem a emergência de vozes como a de Leila Míccolis
que tentam não só questionar os modelos vigentes, mas articular
novas e mais plurais formas de ser como se verá mais adiante.
Teresa de Lauretis, por sua vez, defende
que a identidade deriva de um processo de interpretação e
reconstrução histórica empreendido pelo próprio
indivíduo e mediado pelo contexto cultural em que este se insere.
Em outras palavras, trata-se de um trabalho de construção
que se consubstancia a partir de um sistema de significados ao qual o indivíduo
tem acesso num dado momento histórico. Neste contexto, a ficção
é apontada pela teórica como um elemento crucial no processo
de construção da identidade, uma vez que propicia o entrecruzamento
tenso entre o domínio social e o particular, sendo responsável
pelo estabelecimento de um vínculo de reciprocidade entre discursos,
representações e práticas sociais e as contingências
pessoais de cada indivíduo. Nessa perspectiva, a ficção
pode transmudar-se num espaço que pode propiciar modificações
de hábitos, na medida em que, problematizando os modelos vigentes,
possibilita a veiculação de novas práticas e identidades
que podem ocasionar alterações na formas de representação
do desejo no espaço público. Uma dinâmica vislumbrada
e desde cedo perseguida pela própria Leila Míccolis, como
fica evidente pela forma como se posiciona perante a polêmica criada
quando da publicação de uma antologia de poesias, Mulheres
da Vida, em 1978. Míccolis afirma que a escolha dos poemas deveu-se
à certeza de que “o peso dos rótulos, (que) precisam ser
sacudidos para que sejam transcendidos...” (Míccolis, 1983, 87).
Leila Míccolis nasceu na cidade
do Rio de Janeiro. Filha única, Míccolis confessa que o fato
de ter tido uma criação rígida, não a impediu
de questionar desde cedo padrões morais que têm coibido as
pessoas de procurarem alterntativas que lhes tragam mais prazer. Graduando-se
em direito em 1969, exerceu a profissão até 1977, quando
passou a dedicar-se integralmente à literatura. Contista, dramaturga
e roteirista de cinema e de novela de televisão, Míccolis
tem participado de debates e palestras, tornando-se mais recentemente redatora
da Blocos on line e editora da Blocos12.
Em entrevista concedida, Míccolis conta
que o fato de ler suas poesias em performances fez com que percebesse o
humor como a arma mais eficaz para atingir o público, por permitir
que poeta e leitor/ouvinte abordassem questões críticas sem
tanto medo de repressão. Nesse sentido, o humor torna-se um elemento
desestabilizador, uma vez que este passa a ser percebido como “a arte das
superfícies e das dobras, das singularidades nômades e do
ponto aleatório sempre deslocado, a arte da gênese estética,
o saber fazer do acontecimento puro ou a ‘quarta pessoa do singular’ suspendendo-se
toda significação, designação e manifestação,
abolindo-se toda profundidade e altura” (Deleuze 1994,143).
Neste sentido, o que se percebe na poesia de
Leila Míccolis é a presença de uma linguagem ambígua
e de uma ironia cortante que, mescladas com um toque de humor, transmudam-se
em armas por excelência para a problematização de categorias
como como gênero, sexualidade e raça, por exemplo, numa dinâmica
que possibilita o desencadear de um processo de revitalização
de “certezas” e “verdades”. Em outras palavras, seus versos insurgem-se
contra categorias que, se por um lado, agindo ao nível do psíquico
do indivíduo, procuram determinar a forma como ele deve apreender
a si próprio e se relacionar com os outros; por outro lado, agindo
ao nível da estrutura social, estão presentes na forma como
se constituem as identidades coletivas e, conseqüentemente, a metáfora
da nação, numa dinâmica que tem implicado a delimitação
do espaço de atuação dos diferentes segmentos sociais.
Assim, nesse contexto, a ironia, o humor e a ambigüidade devem ser
percebidos como mecanismos que propiciam o desencadear de um processo desestabilizador,
problematizando formas de representações cristalizadas e
tão presentes no dia-a-ida das pessoas como vai ser discutido nos
poemas que se seguem.
Assim, em “Nu masculino” (68), por exemplo, incluído
na seção “Dois poemas para o namorado”, a voz poética
rompe com as fronteiras do inteligível ao declarar:
Teu lado feminino me erotiza.
São belos, sensuais e muito caros
certos momentos gostosos, em que te encaro
menos como homem e mais como menina:
quando passas teus cremes para a pele,
ou pões o avental pra cozinhar,
ou quando em mim te esfregas
até gozar
os teus gozos sem fim,
ou quando tuas mãos, leves e lésbicas
desabam como plumas sobre mim.
Aqui, é importante observar a forma como o
poema retrabalha a questão da identidade que passa a ser percebida
em toda sua complexidade, uma vez que pondera uma linguagem ambígua
que rompe com as fronteiras do que se entende tradicionalmente como masculino
e feminino. Nesse sentido, ao rejeitar a interconexão entre sexo,
gênero e desejo, seus versos abrem-se para novas possibilidades de
construção identitária, rejeitando, por conseguinte,
uma dinâmica normatizadora que se impõe a partir da delimitação
de práticas/identidades classificadas como normais e anormais. Seus
versos obedecem, portanto, a uma sistemática que remete para o posicionamento
de teóricas como Teresa de Lauretis que advogam a necessidade de
desatrelar o desejo do modelo binário heterossexual — uma dinâmica
apontada como crucial em qualquer processo que procure articular novas
formas de sexualidade, ou seja, que esteja preocupada com a construção
de novos significados para o desejo na esfera individual e pública.
Deste modo, ao enfatizar o caráter fluido da identidade a partir
de articulações em excesso, isto é, articulações
não prescritas pelo domínio do inteligível, a voz
poética possibilita a materialização de novos corpos
e desejos que colocam em questionamento o padrão simbólico
vigente.
Em “Superheróticos” (103), por outro lado,
a voz poética ironiza a figura dos super-heróis (símbolos
de masculinidade) ao aludir à ausência de qualquer forma de
sexualidade e eroticidade em suas figuras13.
Assim, a voz poética brinca admoestando que o Incrível Hulk
quando se transforma “não rasga nem a cueca” (6), o Homem Invisível
“tem um troço tão encolhido / que ganhou este apelido” (8-9),
o Homem Tocha é um “brocha”, enquanto o Homem Aranha “deve ter teias
no pau.” (17). Critica-os, então, pelas “estreitas mentalidades”,
acusando-os de “gagás”, num trocadilho com o agá do homem:
Homens com maiúsculos agás,/ “gagás”” (23-24), propondo
ironicamente no final: “Se afinal é preciso mudar tudo, / que se
tire então do homem, o H mudo” (27-28).
“Em bons lençóis” (104), por sua
vez, o eu-poético reporta-se à critica a que ela própria
está sujeita em decorrência da forma como vivencia seus diferentes
amores:
me apaixonei por um gay,
depois por um pajeú,
um xin-lin, um kung fu,
um poeta marginal,
e a filha do general...
Só por isso, sou devassa,
Messalina, uma ameaça
às mulheres de respeito;mas quem fala
tem despeito
do meu viver divertido.
Não quero amor comedido,
nem ser a isca do anzol
que vai fisgar um marido
a ser mantido em formol.
Nesse poema, a voz poética contrapõe
seu viver “divertido” ao comportamento padrão da mulher, sendo a
segunda caracterizada por possuir um “amor comedido” e por ter de se tornar
uma “isca” para atrair (“fisgar”) o futuro marido — imagem muito presente
no imaginário brasileiro. De mais a mais, o propósito de
contrapor-se aos valores tradicionais, acha-se presente no próprio
título do poema que inverte a expressão popular — estar em
maus lençóis, deixando clara sua posição em
relação a opinião dos que a criticam. Além
disso, o uso de reticências depois de se referir à filha do
general serve para real;car talvez o dado em sua história amorosa
mais criticado. Por último, deve-se acrescentar que o fato do poema
ser composto por rimas que não obedecem a um único padrão
(há rimas emparelhadas, encadeadas, coroadas e alternadas) contribui
não só para reforçar sua impossibilidade de se ajustar
a padrões (mesmo os estéticos), mas também ajuda a
construir um tipo de musicalidade que contribui para o tom lúdico
do poema.
Todavia, não são só
os papéis tradicionais que são criticados, mas também
as novas propostas que surgem e que tentam construir a imagem da mulher
“moderna”. Visões, no entanto, que persistem em impor um comportamento
à mulher como fica evidente em “Concessões” (59).
Pra ser livre
e ser moderna
será sempre preciso
abrir as pernas?
Trata-se, na verdade, de um poema curto que critica
de forma veemente a falsa noção de liberdade que veio atrelada
à ideologia da liberação sexual da mulher a partir
da década de setenta.
Ora, não é por acaso que
Foucault (1980) alerta para a existência de uma íntima interconexão
entre a produção discursiva, a produção do
poder e a propagação do conhecimento. O discurso, nesse sentido,
passa a ser visto como o local onde a interligação entre
poder e conhecimento pode ser melhor detectado, um veículo que impulsiona
o deslocamento, a intensificação, a reorientação
e a modificação do desejo (Foucault). Posto isto, pode-se
compreender porque o eu-poético não só critica a nova
versão da mulher “moderna”, mas também se preocupa em ironizar
ditados e provérbios presentes no dia-a-dia das pessoas, refletindo
todo o preconceito e opressão a que estão sujeitas as mulheres.
Provérbios, mitos e máximas que permeiam a via dos indivíduos
e que agem como estruturas normatizadoras como fica claro no poema
“Referencial” (90):
“Solteira de aceso facho
precisa logo de macho;
se é nervosinha a casada
só pode ser mal trepada;
viúva cheia de enfado
tem saudade do finado;
puta metida a valente
quer cafetão que a esquente”.
Mulher não vive sem homem.
A prova mais certa disso
é que até as castas freiras
são as esposas de Cristo.
Tal regra é tão extremista
que não contém exceção:
quem sai dela é feminista,
fria, velha ou sapatão.” (1-16).
Aqui, a ironia se faz presente de forma cortante.
Novamente, o efeito lúdico do poema está atrelado à
alternância do padrão de rimas — rimas paralelas, alternadas
e internas. Além disso, o poema, montado a partir de dizeres populares
(escritos entre aspas), critica de maneira mordaz o fato dos diferentes
papéis possíveis para as mulheres terem sempre o homem como
ponto de referência.
Diante disso, pode-se asseverar que seus poemas
estão marcados pela preocupação em desenvolver uma
atitude reflexiva em relação a hábitos, disposições
e associações tido como “naturais” na tentativa de problematizar
os modelos pertencentes a um discurso hegemônico — uma atitude tida
como crucial em qualquer processo de transformação como alertam
teóricas como De Lauretis e Butler. Todavia, a possibilidade de
articular novas leituras do que é ser “lésbica”, “negra”,
pobre e mulher (e uma infinidade de outros elementos) no Brasil dos anos
oitenta mostra-se um processo muitas vezes doloroso e tenso, marcado pela
revolta e pelo medo de punições, como pode ser percebida
ora pela freqüência de verbos e substantivos ligados ao campo
semântico de gritar (como no caso da poesia produzida por mulheres
marcadas pelo estigma da cor), ora pelo uso do humor, da ambigüidade
e da ironia (como no caso de Míccolis). Contudo, é importante
ressaltar a presença cada vez mais efetiva de mulheres a partir
dos anos setenta. Uma escrita que, marcada por um mecanismo de descentramento,
procura colocar em evidência o que permanecia nas margens, propiciando
a emergência de modos alternativos e diferenciados de ver e ler o
mundo.
Assim, a maneira como os versos de Leila Míccolis
brincam, reescrevem e subvertem a forma como determinadas categorias têm
sido tradicionalmente concebidas, permite que se caracterize sua poesia
como uma poética esquizofrênica (Deleuze e Guattari), ou seja,
uma escrita que promove uma total dissolução das categorias
tradicionais com que se percebe o indivíduo. Em outros termos, depara-se
com uma escrita que se caracteriza pela percepção do sujeito
em sua multiplicidade e singularidade e do desejo como um elemento livre
para criar diferentes e inusitadas possibilidades de produção.
Nesse sentido, pode-se afirmar que seus versos guiam-se por uma dinâmica
que permite que se transcenda as bordas do que é inteligível,
provocando, conseqüentemente, o surgimento de infinitas maneiras de
organização. Com efeito, a forma original como Míccolis
organiza os poemas nas folhas, sempre voltados para o espaço de
dentro da folha, numa sistemática que rompe com os padrões
normais de organização, constitui-se num elemento a mais
ao processo de contestação e de busca por novas alternativas.
Um último ponto que deve ser observado,
no entanto, é que ao privilegiar uma poética marcada pela
ambigüidade, ironia e humor, Leila Míccolis parece querer convidar
o leitor/ouvinte a participar do seu processo de questionamento e construção.
Não se pode esquecer que esses três mecanismos remontam a
um ler que se alimenta do que está sugerido nas entrelinhas e nos
silêncios, caracterizando-se, conseqüentemente, como uma forma
de escrita/leitura que pressupõe a instauração de
uma atmosfera de cumplicidade entre Poeta e leitor/ouvinte, uma vez que
o último vai estar intimamente implicado no processo de significação.
Em outras palavras, trata-se de um tipo de escrita que pressupõe
a criação de elos de solidariedade entre o poeta e seu leitor/ouvinte
que passam a participar juntos de um remapear que tem como princípio
básico a problematização de categorias e padrões
que tentam fixar as possibilidades de interpretação e de
construção de identidades sociais.
Mas, por que o desejo de ter o leitor/ouvinte
como interlocutor intrinsecamente envolvido no processo de significação?
Ora, não se pode negar que essa dinâmica permite que se abordem
temas considerados tabus, desencadeando um processo de conscientização
das diferentes formas de violência presentes no dia-a-dia das pessoas.
Entretanto, esse remapear em conjunto pode provocar respostas mais contundentes.
Nesse sentido, essa estratégia vai de encontro ao desejo de tornar
mais visível e dar um conteúdo mais humano a segmentos e
desejos mantidos em guetos (ou mesmo mantidos invisíveis)
até agora, ajudando a destruir estereótipos e permitindo,
conseqüentemente, a emergência de novas possibilidades de leitura
de formas de sexualidade (e desejos) marginalizados até aqui. Por
outro lado, não se pode negar que o processo de relativização
de certezas torna cada vez mais fluida e complexa a forma como os indivíduos
percebem a si mesmos e no mundo ao seu redor. Assim, esse remapear em conjunto
se coaduna com uma postura que procura combater o sentimento de culpa e
de anormalidade que tem impedido muitas mulheres de vivenciarem outras
formas de prazer. Enfim, concluindo, pode-se afirmar que a faceta dialética
da poesia de Leila Míccolis, na verdade, convida o leitor/ouvinte
a empreender uma viagem de dessacralização e reconstrução
que objetiva desencadear um processo de transformação social
que tem como ponto de partida a esfera do indivíduo.
____________
NOTAS
1. Movimentos
como os feministas e os negros que tentavam conquistar novos espaços
de atuação, colocando em questionamento a forma como têm
sido construídos determinados significados.
2. A decisão
em colocar as palavras lésbica e negra sempre entre aspas implica
no desejo de alertar o leitor para o caráter plural de qualquer
identidade, ou seja, pretende-se evitar que percebam essas mulheres essencialmente,
ou melhor, unicamente em função de sua opção
sexual ou pela cor de sua pele. Da mesma forma, a opção por
sua grafia sempre no plural objetiva deixar evidente a singularidade de
cada indivíduo, evitando assim sua percepção através
de categorias essencializadoras e, por conseguinte, restringentes.
3. O fato de
ter como uma de suas editoras Marina Colassanti — uma das precursoras do
feminismo no Brasil — talvez explique os posicionamentos mais questionadores
de determinadas reportagens.
4. Julieta Rímini
“Lesbianismo: uma realidade feminina,”, Nova, setembro 1980: 74-77.
5. “Homoeróticos
/ Eles já são 13 milhões no Brasil” (Manchete, 5 novembro,
1985).
6. “A grande
pesquisa do sexo de Nova” Nova outubro/novembro 1987: 114-119.
7. É importante
ressaltar que a pesquisa envolve um segmento bem específico da população,
o que implica afirmar que as conclusões não podem ser percebidas
como referentes às mulheres brasileiras de um modo geral. Não
se pode esquecer que mesmo dentro de um grande centro como o Rio de Janeiro,
os valores e padrões de comportamento vão variar tendo em
vista a classe social, raça e espaço geográfico em
que as mulheres vivem.
8. Marco Bendetson,
“O sexo no Brasil na Nova República II: o que pensam (e fazem) os
jovens,” Manchete 30 agosto de 1985: 28-31.
9. A reportagem
de Artur Xexeo, “Saga dos vencedores,” (Veja, 17 junho 1981: 73-74), refere-se
à novela “Ciranda de Pedra” da Rede Globo. No caso, a novela é
uma adaptação de um romance de Lygia Fagundes Telles em que,
no entanto, a questão do homossexualismo e da impotência sexual
do principal personagem masculino no romance estão ausentes da novela
devido, segundo a reportagem, à “impropriedade (do tema) para o
quase infantil horário das 6 da tarde” (74). Uma atitude que reflete
a ideologia que norteava a ação da Censura Federal que considerava
a veiculação de imagens sobre a homossexualidade como algo
“pernicioso” para o crescimento “normal” de uma criança. Todavia,
muitas vezes a censura ocorre em função da pressão
dos próprios telespectadores como no caso na novela das 19 h da
Rede Globo de Televisão em 1985. Neste caso, os personagens travestis
foram retirados do ar porque os telespectadores estavam revoltados com
as cenas de beijos, as discussões sobre seus problemas sexuais e
o casamento de um dos travestis. Novamente, a alegação para
a censura foi de que o horário não comportava esta temática,
pois tinha um público infantil que poderia ser mal influenciado.
10. Mais recentemente
na novela Torre de Babel, exibida às 20 h, pela Rede Globo de Televisão
e lançada no final de maio de 1998, pode-se detectar a presença
de um forte sentimento de homofobia, uma vez que a reação
do público fez com que as personagens “lésbicas” desaparecessem
da novela. Após uma pesquisa feita junto ao público telespectador,
verificou-se que parte da queda no IBOPE era decorrência da exibição
de cenas que retratavam um relacionamento feliz e prazeroso entre Leila
(Sílvia Pfeiffer) e Rafaela (Christinae Torloni).
11. Butler alerta
que a lacuna se cria, dada a impossibilidade do indivíduo adequar-se
ao modelo fantasmático, implica a necessidade da existência
de um processo reiterativo que objetiva assegurar e legitimar as normas
estabelecidas pela lei. Assim, a repetição de performances
torna-se uma prática essencial para legitimar e reforçar
significados já estabelecidos e aceitos socialmente.
12. Trata-se
de um jornal de literatura alternativa com uma tiragem mensal de 1000 exemplares
criado há oito anos em decorrência da insatisfação
do poeta em relação à má qualidade na impressão
de seus livros.
13. A presença
de um h no título do poema já alerta para a ironia que estará
presente na correlação que vai se estabelecer entre os super-heróis
e a sua ausência de eroticidade.
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