A POESIA DE LEILA MÍCCOLIS TRANSPONDO CATEGORIAS
Kátia da Costa Bezerra
Universidade Federal de Minas Gerais


Publicado na “Revista de Crítica Literária Latinoamericana”, nº 52, Dartmouth College (Hanover) EUA,  2º semestre de 2000, pp. 267-268.

 
Nova Inquisição

Minha fama é negra,
sou mau elemento:
censurarão meus versos
pra servir de exemplo?

O que se percebe nas últimas décadas no Brasil é que, apesar do surgimento de diversos movimentos sociais principalmente a partir do final dos anos setenta e nos anos oitenta, ainda persiste a censura a posicionamentos que tentem retratar a homossexualidade masculina e feminina como algo normal 1. Neste sentido, a forma violenta como os homossexuais têm sido assassinados (Mott, 1996) pode ser percebida como um indício da forte homofobia que domina a sociedade brasileira.  Não é por acaso que, apesar da existência de diversos grupos espalhados por diversos estados que procuram servir de suporte e discutir a questão da homossexualidade, a grande maioria das “lésbicas” 2 ainda prefere permanecer anônima por medo das conseqüências a uma maior exposição pública  muitas confessam que se sentem compelidas a manter uma aparência de “normalidade” nos locais de trabalho por medo de perderem o emprego.
Logo, dados como esses deixam patente a existência de diferentes graus e formas de violência presentes no dia-a-dia das pessoas, uma percepção que atesta o papel crucial que a sexualidade ocupa no processo de estruturação da sociedade brasileira. Por causa disso, o presente trabalho propõe-se a recolher exemplares de diferentes discursos que circularam nos anos oitenta para verificar não só a forma como determinados setores da população têm reagido à questão da homossexualidade, mas também para observar o papel da censura no processo de controle e legitimação do paradigma heterossexual. Da mesma forma, o estudo voltar-se-á para a análise da poesia produzida por Leila Míccolis nessa mesma década para verificar a forma como seus versos procuram articular novas formas de ser, num processo em que a ironia, a ambigüidade e o humor tornam-se peças chaves.
Assim, num primeiro momento, a pesquisa em revistas como Nova, Cláudia e Manchete publicadas ao longo dos anos oitenta confirma a persistência de um forte sentimento de homofobia, uma vez que são poucas as reportagens que se referem ou mesmo tentam construir uma imagem mais realista das “lésbicas”. Um dos poucos exemplos encontrados foi uma reportagem na revista Nova publicada logo no início dos anos oitenta que procura mostrar as pressões e os preconceitos a que estas mulheres estão sujeitas no seu dia-a-dia3. A reportagem aponta o homossexualismo (assim como o heterossexualismo) como um comportamento apreendido em função do relacionamento entre a criança e os adultos, rejeitando, por conseguinte, sua caracterização como uma anormalidade. Verifica-se também, por parte da repórter, a preocupação de perceber as “lésbicas” na sua pluralidade (rejeitando uma visão simplista), uma vez que a reportagem se refere às “sapatilhas” e “minas” e àquelas que rejeitam a adoção de qualquer papel heterossexual4 . Um outro exemplo pode ser encontrado na revista Manchete. Em “Homoeróticos/ Eles já são 13 milhões no Brasil”, a reportagem denuncia que, apesar da existência no Brasil de algumas associações de “gays” e “lésbicas”, estes ainda têm de permanecer escondidos por causa do forte preconceito presente na sociedade5.
Por outro lado, depara-se com inúmeras reportagens que ajudam a comprovar a carga de preconceito a que estas mulheres estão sujeitas. Um exemplo é a pesquisa promovida pela própria Nova em 1987 6. As 4944 leitoras entrevistadas são, na sua maioria, mulheres solteiras com curso superior completo ou incompleto, morando nos grandes centros urbanos, ganhando de 5 a 20 salários mínimos e que estão compreendidas numa faixa etária que varia dos 19 aos 40 anos. Assim, entre os muitos dados analisados pelos pesquisadores, alguns contribuem para uma melhor percepção das transformações por que passava a sociedade no final da década. Por exemplo, ao comparar os dados obtidos em 1987 com os de uma pesquisa semelhante feita em 1981, a reportagem conclui que as leitoras de 1987 têm um relacionamento sexual mais aberto, uma vez que as mulheres mais jovens demonstram ter uma maior preocupação com sua própria satisfação sexual7.
 A pesquisa revela também que o sexo começa mais cedo na vida do segmento mais jovem (em 1981, 35% das entrevistadas disseram ter tido sua primeira relação sexual entre os 29 e 24 anos de idade; em 1987, 55.3% tiveram-na entre os 16 e 20 anos de idade). Acrescente-se a isso o fato de a pesquisa apontar para a existência de um diálogo mais aberto entre mães e filhas, como pode ser comprovado em vista de muitas das jovens entre 15 e 24 anos de idade terem sabido do sexo por suas mães. Todavia, a rejeição a um relacionamento homossexual ainda é muito forte, uma vez que ao serem inquiridas sobre suas fantasias sexuais, somente uma leitora admitiu ter tido fantasias sexuais (não se perguntou sobre um relacionamento real) com outras mulheres. Todas as outras 4943 leitoras restringiram-se ao modelo tradicional – o heterossexual.
 Finalmente, pode-se citar uma pesquisa organizada pelo IBOPE em 1985 com jovens do Rio de Janeiro e de São Paulo (os maiores centros urbanos do Brasil) em que, embora os jovens afirmem que o prazer sexual é independente do amor (posicionamento que se contrapõe ao que é veiculado pela mídia da época), estes são enfáticos em afirmar que o bissexualismo não é algo natural e que o sexo entre homens causa repugnância8.
 Já no âmbito das novelas de televisão, pode-se também detectar a presença de um sentimento de rejeição pela forma como a censura corta cenas e diálogos que fogem ao padrão sexual considerado “normal”9. Nesse sentido, a novela “Vale Tudo” (1988) da Rede Globo de Televisão, por exemplo, teve um diálogo cortado por fazer uma clara alusão ao relacionamento sexual entre duas mulheres que se queixavam do preconceito que sofriam. Estas reclamavam de serem vistas como uma “doença, um vício” que “merece castigo”. O diretor da Censura Federal considerou uma “aberração” e imprópria para o horário (20h) “a abordagem natural com que o homossexualismo era tratado na cena” o que, segundo ele, poderia induzir os jovens a terem esse tipo de relacionamento. Dessa forma, sua única preocupação ao censurar o diálogo foi em “resguardar o público menor de idade”10.
 Assim, esses poucos exemplos aqui arrolados permitem compreender porque teóricas como Judith Butler e Teresa de Lauretis têm se preocupado em entender a origem do sentimento de repugnância que pode ser detectado tanto nas pessoas pesquisadas quanto nos telespectadores de um modo geral. Em seus estudos, Butler reporta-se ao caráter punitivo da lei como um fator que impele à aceitação de categorias como masculino e feminino. Desse modo, seguindo a linha de pensamento de Freud, que via os indivíduos num primeiro momento como bissexuais, Butler adverte que o caráter homossexual de todos os indivíduos precisa ser rejeitado para que o modelo binário homem/mulher heterossexual seja implantado. Para tanto, torna-se necessária a construção no domínio do simbólico das figuras do “sapatão” e da “sapatilha” que assumem uma dupla função. Primeiro, desenvolvem um sentimento de horror que compele à aceitação de uma posição sexual (heterossexual) e, segundo, impedem a emergência de outras identidades e desejos que poderiam colocar em xeque o modelo binário proposto — modelo construído a partir de oposições e exclusões.
 Entretanto, como alerta Butler, as identificações são posições temporárias, uma vez que a criação de um espaço de estabilidade para a constituição da identidade deriva da íntima inter-dependência que se estabelece entre o que é prescrito pela lei (o espaço de inteligibilidade) e o que é desprezado e excluído por essa mesma lei e que permanece nas suas fronteiras. Nesse contexto, assumir uma identidade significa aceitar uma série de normas e regras que foram estabelecidas anteriormente e às quais os indivíduos devem se ajustar; todavia, a impossibilidade de uma total identificação gera um sentimento de frustração e instabilidade que pode ocasionar a abertura de espaços de contestação e negociação11. Espaços, na verdade, que permitem a emergência de vozes como a de Leila Míccolis que tentam não só questionar os modelos vigentes, mas articular novas e mais plurais formas de ser como se verá mais adiante.
 Teresa de Lauretis, por sua vez, defende que a identidade deriva de um processo de interpretação e reconstrução histórica empreendido pelo próprio indivíduo e mediado pelo contexto cultural em que este se insere. Em outras palavras, trata-se de um trabalho de construção que se consubstancia a partir de um sistema de significados ao qual o indivíduo tem acesso num dado momento histórico. Neste contexto, a ficção é apontada pela teórica como um elemento crucial no processo de construção da identidade, uma vez que propicia o entrecruzamento tenso entre o domínio social e o particular, sendo responsável pelo estabelecimento de um vínculo de reciprocidade entre discursos, representações e práticas sociais e as contingências pessoais de cada indivíduo. Nessa perspectiva, a ficção pode transmudar-se num espaço que pode propiciar modificações de hábitos, na medida em que, problematizando os modelos vigentes, possibilita a veiculação de novas práticas e identidades que podem ocasionar alterações na formas de representação do desejo no espaço público. Uma dinâmica vislumbrada e desde cedo perseguida pela própria Leila Míccolis, como fica evidente pela forma como se posiciona perante a polêmica criada quando da publicação de uma antologia de poesias, Mulheres da Vida, em 1978. Míccolis afirma que a escolha dos poemas deveu-se à certeza de que “o peso dos rótulos, (que) precisam ser sacudidos para que sejam transcendidos...” (Míccolis, 1983, 87).
 Leila Míccolis nasceu na cidade do Rio de Janeiro. Filha única, Míccolis confessa que o fato de ter tido uma criação rígida, não a impediu de questionar desde cedo padrões morais que têm coibido as pessoas de procurarem alterntativas que lhes tragam mais prazer. Graduando-se em direito em 1969, exerceu a profissão até 1977, quando passou a dedicar-se integralmente à literatura. Contista, dramaturga e roteirista de cinema e de novela de televisão, Míccolis tem participado de debates e palestras, tornando-se mais recentemente redatora da Blocos on line e editora da Blocos12.
Em entrevista concedida, Míccolis conta que o fato de ler suas poesias em performances fez com que percebesse o humor como a arma mais eficaz para atingir o público, por permitir que poeta e leitor/ouvinte abordassem questões críticas sem tanto medo de repressão. Nesse sentido, o humor torna-se um elemento desestabilizador, uma vez que este passa a ser percebido como “a arte das superfícies e das dobras, das singularidades nômades e do ponto aleatório sempre deslocado, a arte da gênese estética, o saber fazer do acontecimento puro ou a ‘quarta pessoa do singular’ suspendendo-se toda significação, designação e manifestação, abolindo-se toda profundidade e altura” (Deleuze 1994,143).
Neste sentido, o que se percebe na poesia de Leila Míccolis é a presença de uma linguagem ambígua e de uma ironia cortante que, mescladas com um toque de humor, transmudam-se em armas por excelência para a problematização de categorias como como gênero, sexualidade e raça, por exemplo, numa dinâmica que possibilita o desencadear de um processo de revitalização de “certezas” e “verdades”. Em outras palavras, seus versos insurgem-se contra categorias que, se por um lado, agindo ao nível do psíquico do indivíduo, procuram determinar a forma como ele deve apreender a si próprio e se relacionar com os outros; por outro lado, agindo ao nível da estrutura social, estão presentes na forma como se constituem as identidades coletivas e, conseqüentemente, a metáfora da nação, numa dinâmica que tem implicado a delimitação do espaço de atuação dos diferentes segmentos sociais. Assim, nesse contexto, a ironia, o humor e a ambigüidade devem ser percebidos como mecanismos que propiciam o desencadear de um processo desestabilizador, problematizando formas de representações cristalizadas e tão presentes no dia-a-ida das pessoas como vai ser discutido nos poemas que se seguem.
Assim, em “Nu masculino” (68), por exemplo, incluído na seção “Dois poemas para o namorado”, a voz poética rompe com as fronteiras do inteligível ao declarar:
Teu lado feminino me erotiza.
São belos, sensuais e muito caros
certos momentos gostosos, em que te encaro
menos como homem e mais como menina:
quando passas teus cremes para a pele,
ou pões o avental pra cozinhar,
ou quando em mim te esfregas
até gozar
os teus gozos sem fim,
ou quando tuas mãos, leves e lésbicas
desabam como plumas sobre mim.
Aqui, é importante observar a forma como o poema retrabalha a questão da identidade que passa a ser percebida em toda sua complexidade, uma vez que pondera uma linguagem ambígua que rompe com as fronteiras do que se entende tradicionalmente como masculino e feminino. Nesse sentido, ao rejeitar a interconexão entre sexo, gênero e desejo, seus versos abrem-se para novas possibilidades de construção identitária, rejeitando, por conseguinte, uma dinâmica normatizadora que se impõe a partir da delimitação de práticas/identidades classificadas como normais e anormais. Seus versos obedecem, portanto, a uma sistemática que remete para o posicionamento de teóricas como Teresa de Lauretis que advogam a necessidade de desatrelar o desejo do modelo binário heterossexual — uma dinâmica apontada como crucial em qualquer processo que procure articular novas formas de sexualidade, ou seja, que esteja preocupada com a construção de novos significados para o desejo na esfera individual e pública. Deste modo, ao enfatizar o caráter fluido da identidade a partir de articulações em excesso, isto é, articulações não prescritas pelo domínio do inteligível, a voz poética possibilita a materialização de novos corpos e desejos que colocam em questionamento o padrão simbólico vigente.
Em “Superheróticos” (103), por outro lado, a voz poética ironiza a figura dos super-heróis (símbolos de masculinidade) ao aludir à ausência de qualquer forma de sexualidade e eroticidade em suas figuras13. Assim, a voz poética brinca admoestando que o Incrível Hulk quando se transforma “não rasga nem a cueca” (6), o Homem Invisível “tem um troço tão encolhido / que ganhou este apelido” (8-9), o Homem Tocha é um “brocha”, enquanto o Homem Aranha “deve ter teias no pau.” (17). Critica-os, então, pelas “estreitas mentalidades”, acusando-os de “gagás”, num trocadilho com o agá do homem: Homens com maiúsculos agás,/ “gagás”” (23-24), propondo ironicamente no final: “Se afinal é preciso mudar tudo, / que se tire então do homem, o H mudo” (27-28).
“Em bons lençóis” (104), por sua vez, o eu-poético reporta-se à critica a que ela própria está sujeita em decorrência da forma como vivencia seus diferentes amores:
me apaixonei por um gay,
depois por um pajeú,
um xin-lin, um kung fu,
um poeta marginal,
e a filha do general...
Só por isso, sou devassa,
Messalina, uma ameaça
às mulheres de respeito;mas quem fala tem despeito
do meu viver divertido.
Não quero amor comedido,
nem ser a isca do anzol
que vai fisgar um marido
a ser mantido em formol.
Nesse poema, a voz poética contrapõe seu viver “divertido” ao comportamento padrão da mulher, sendo a segunda caracterizada por possuir um “amor comedido” e por ter de se tornar uma “isca” para atrair (“fisgar”) o futuro marido — imagem muito presente no imaginário brasileiro. De mais a mais, o propósito de contrapor-se aos valores tradicionais,  acha-se presente no próprio título do poema que inverte a expressão popular — estar em maus lençóis, deixando clara sua posição em relação a opinião dos que a criticam. Além disso, o uso de reticências depois de se referir à filha do general serve para real;car talvez o dado em sua história amorosa mais criticado. Por último, deve-se acrescentar que o fato do poema ser composto por rimas que não obedecem a um único padrão (há rimas emparelhadas, encadeadas, coroadas e alternadas) contribui não só para reforçar sua impossibilidade de se ajustar a padrões (mesmo os estéticos), mas também ajuda a construir um tipo de musicalidade que contribui para o tom lúdico do poema.
 Todavia, não são só os papéis tradicionais que são criticados, mas também as novas propostas que surgem e que tentam construir a imagem da mulher “moderna”. Visões, no entanto, que persistem em impor um comportamento à mulher como fica evidente em “Concessões” (59).
Pra ser livre
e ser moderna
será sempre preciso
abrir as pernas?
Trata-se, na verdade, de um poema curto que critica de forma veemente a falsa noção de liberdade que veio atrelada à ideologia da liberação sexual da mulher a partir da década de setenta.
 Ora, não é por acaso que Foucault (1980) alerta para a existência de uma íntima interconexão entre a produção discursiva, a produção do poder e a propagação do conhecimento. O discurso, nesse sentido, passa a ser visto como o local onde a interligação entre poder e conhecimento pode ser melhor detectado, um veículo que impulsiona o deslocamento, a intensificação, a reorientação e a modificação do desejo (Foucault). Posto isto, pode-se compreender porque o eu-poético não só critica a nova versão da mulher “moderna”, mas também se preocupa em ironizar ditados e provérbios presentes no dia-a-dia das pessoas, refletindo todo o preconceito e opressão a que estão sujeitas as mulheres. Provérbios, mitos e máximas que permeiam a via dos indivíduos e que agem como  estruturas normatizadoras como fica claro no poema “Referencial” (90):
“Solteira de aceso facho
precisa logo de macho;
se é nervosinha a casada
só pode ser mal trepada;
viúva cheia de enfado
tem saudade do finado;
puta metida a valente
quer cafetão que a esquente”.
Mulher não vive sem homem.
A prova mais certa disso
é que até as castas freiras
são as esposas de Cristo.
Tal regra é tão extremista
que não contém exceção:
quem sai dela é feminista,
fria, velha ou sapatão.” (1-16).
Aqui, a ironia se faz presente de forma cortante. Novamente, o efeito lúdico do poema está atrelado à alternância do padrão de rimas — rimas paralelas, alternadas e internas. Além disso, o poema, montado a partir de dizeres populares (escritos entre aspas), critica de maneira mordaz o fato dos diferentes papéis possíveis para as mulheres terem sempre o homem como ponto de referência.
Diante disso, pode-se asseverar que seus poemas estão marcados pela preocupação em desenvolver uma atitude reflexiva em relação a hábitos, disposições e associações tido como “naturais” na tentativa de problematizar os modelos pertencentes a um discurso hegemônico — uma atitude tida como crucial em qualquer processo de transformação como alertam teóricas como De Lauretis e Butler. Todavia, a possibilidade de articular novas leituras do que é ser “lésbica”, “negra”, pobre e mulher (e uma infinidade de outros elementos) no Brasil dos anos oitenta mostra-se um processo muitas vezes doloroso e tenso, marcado pela revolta e pelo medo de punições, como pode ser percebida ora pela freqüência de verbos e substantivos ligados ao campo semântico de gritar (como no caso da poesia produzida por mulheres marcadas pelo estigma da cor), ora pelo uso do humor, da ambigüidade e da ironia (como no caso de Míccolis). Contudo, é importante ressaltar a presença cada vez mais efetiva de mulheres a partir dos anos setenta. Uma escrita que, marcada por um mecanismo de descentramento, procura colocar em evidência o que permanecia nas margens, propiciando a emergência de modos alternativos e diferenciados de ver e ler o mundo.
Assim, a maneira como os versos de Leila Míccolis brincam, reescrevem e subvertem a forma como determinadas categorias têm sido tradicionalmente concebidas, permite que se caracterize sua poesia como uma poética esquizofrênica (Deleuze e Guattari), ou seja, uma escrita que promove uma total dissolução das categorias tradicionais com que se percebe o indivíduo. Em outros termos, depara-se com uma escrita que se caracteriza pela percepção do sujeito em sua multiplicidade e singularidade e do desejo como um elemento livre para criar diferentes e inusitadas possibilidades de produção. Nesse sentido, pode-se afirmar que seus versos guiam-se por uma dinâmica que permite que se transcenda as bordas do que é inteligível, provocando, conseqüentemente, o surgimento de infinitas maneiras de organização. Com efeito, a forma original como Míccolis organiza os poemas nas folhas, sempre voltados para o espaço de dentro da folha, numa sistemática que rompe com os padrões normais de organização, constitui-se num elemento a mais ao processo de contestação e de busca por novas alternativas.
Um último ponto que deve ser observado, no entanto, é que ao privilegiar uma poética marcada pela ambigüidade, ironia e humor, Leila Míccolis parece querer convidar o leitor/ouvinte a participar do seu processo de questionamento e construção. Não se pode esquecer que esses três mecanismos remontam a um ler que se alimenta do que está sugerido nas entrelinhas e nos silêncios, caracterizando-se, conseqüentemente, como uma forma de escrita/leitura que pressupõe a instauração de uma atmosfera de cumplicidade entre Poeta e leitor/ouvinte, uma vez que o último vai estar intimamente implicado no processo de significação. Em outras palavras, trata-se de um tipo de escrita que pressupõe a criação de elos de solidariedade entre o poeta e seu leitor/ouvinte que passam a participar juntos de um remapear que tem como princípio básico a problematização de categorias e padrões que tentam fixar as possibilidades de interpretação e de construção de identidades sociais.
Mas, por que o desejo de ter o leitor/ouvinte como interlocutor intrinsecamente envolvido no processo de significação? Ora, não se pode negar que essa dinâmica permite que se abordem temas considerados tabus, desencadeando um processo de conscientização das diferentes formas de violência presentes no dia-a-dia das pessoas. Entretanto, esse remapear em conjunto pode provocar respostas mais contundentes. Nesse sentido, essa estratégia vai de encontro ao desejo de tornar mais visível e dar um conteúdo mais humano a segmentos e desejos mantidos em guetos (ou mesmo mantidos invisíveis)  até agora, ajudando a destruir estereótipos e permitindo, conseqüentemente, a emergência de novas possibilidades de leitura de formas de sexualidade (e desejos) marginalizados até aqui. Por outro lado, não se pode negar que o processo de relativização de certezas torna cada vez mais fluida e complexa a forma como os indivíduos percebem a si mesmos e no mundo ao seu redor. Assim, esse remapear em conjunto se coaduna com uma postura que procura combater o sentimento de culpa e de anormalidade que tem impedido muitas mulheres de vivenciarem outras formas de prazer. Enfim, concluindo, pode-se afirmar que a faceta dialética da poesia de Leila Míccolis, na verdade, convida o leitor/ouvinte a empreender uma viagem de dessacralização e reconstrução que objetiva desencadear um processo de transformação social que tem como ponto de partida a esfera do indivíduo.

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NOTAS

1. Movimentos como os feministas e os negros que tentavam conquistar novos espaços de atuação, colocando em questionamento a forma como têm sido construídos determinados significados.
2. A decisão em colocar as palavras lésbica e negra sempre entre aspas implica no desejo de alertar o leitor para o caráter plural de qualquer identidade, ou seja, pretende-se evitar que percebam essas mulheres essencialmente, ou melhor, unicamente em função de sua opção sexual ou pela cor de sua pele. Da mesma forma, a opção por sua grafia sempre no plural objetiva deixar evidente a singularidade de cada indivíduo, evitando assim sua percepção através de categorias essencializadoras e, por conseguinte, restringentes.
3. O fato de ter como uma de suas editoras Marina Colassanti — uma das precursoras do feminismo no Brasil — talvez explique os posicionamentos  mais questionadores de determinadas reportagens.
4. Julieta Rímini “Lesbianismo: uma realidade feminina,”, Nova, setembro 1980: 74-77.
5. “Homoeróticos / Eles já são 13 milhões no Brasil” (Manchete, 5 novembro, 1985).
6. “A grande pesquisa do sexo de Nova” Nova outubro/novembro 1987: 114-119.
7. É importante ressaltar que a pesquisa envolve um segmento bem específico da população, o que implica afirmar que as conclusões não podem ser percebidas como referentes às mulheres brasileiras de um modo geral. Não se pode esquecer que mesmo dentro de um grande centro como o Rio de Janeiro, os valores e padrões de comportamento vão variar tendo em vista a classe social, raça e espaço geográfico em que as mulheres vivem.
8. Marco Bendetson, “O sexo no Brasil na Nova República II: o que pensam (e fazem) os jovens,” Manchete 30 agosto de 1985: 28-31.
9. A reportagem de Artur Xexeo, “Saga dos vencedores,” (Veja, 17 junho 1981: 73-74), refere-se à novela “Ciranda de Pedra” da Rede Globo. No caso, a novela é uma adaptação de um romance de Lygia Fagundes Telles em que, no entanto, a questão do homossexualismo e da impotência sexual do principal personagem masculino no romance estão ausentes da novela devido, segundo a reportagem, à “impropriedade (do tema) para o quase infantil horário das 6 da tarde” (74). Uma atitude que reflete a ideologia que norteava a ação da Censura Federal que considerava a veiculação de imagens sobre a homossexualidade como algo “pernicioso” para o crescimento “normal” de uma criança.  Todavia, muitas vezes a censura ocorre em função da pressão dos próprios telespectadores como no caso na novela das 19 h da Rede Globo de Televisão em 1985. Neste caso, os personagens travestis foram retirados do ar porque os telespectadores estavam revoltados com as cenas de beijos, as discussões sobre seus problemas sexuais e o casamento de um dos travestis. Novamente, a alegação para a censura foi de que o horário não comportava esta temática, pois tinha um público infantil que poderia ser mal influenciado.
10. Mais recentemente na novela Torre de Babel, exibida às 20 h, pela Rede Globo de Televisão e lançada no final de maio de 1998, pode-se detectar a presença de um forte sentimento de homofobia, uma vez que a reação do público fez com que as personagens “lésbicas” desaparecessem da novela. Após uma pesquisa feita junto ao público telespectador, verificou-se que parte da queda no IBOPE era decorrência da exibição de cenas que retratavam um relacionamento feliz e prazeroso entre Leila (Sílvia Pfeiffer) e Rafaela (Christinae Torloni).
11. Butler alerta que a lacuna se cria, dada a impossibilidade do indivíduo adequar-se ao modelo fantasmático, implica a necessidade da existência de um processo reiterativo que objetiva assegurar e legitimar as normas estabelecidas pela lei. Assim, a repetição de performances torna-se uma prática essencial para legitimar e reforçar significados já estabelecidos e aceitos socialmente.
12. Trata-se de um jornal de literatura alternativa com uma tiragem mensal de 1000 exemplares criado há oito anos em decorrência da insatisfação do poeta em relação à má qualidade na impressão de seus livros.
13. A presença de um h no título do poema já alerta para a ironia que estará presente na correlação que vai se estabelecer entre os super-heróis e a sua ausência de eroticidade.

BIBLIOGRAFIA

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_._._._._.      E-mail para a autora, 30 setembro 1998.
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