Haicai: fugacidade e saturação
de sentidos
Carlos Eduardo Bione e Sherry Morgana
Alunos da
Universidade Federal de Pernambuco
Centro de Artes e Comunicação
Departamento de Letras
Disciplina: Literatura Brasileira 4
Professora: Graça Graúna
O que faz do haicai uma forma poética tão encantadora? Sabemos
que tal questionamento – suscitado pela leitura de alguns haicais presentes
no livro Sangue cenográfico de Leila Míccolis – não
é facilmente respondido, pois, assim como todas as outras perguntas
que rondam a Literatura, ele não nos encaminha para “a resposta”
única, mas sim para um trabalho de reflexão. Peçamos,
então, ajuda ao texto literário, melhor ponto de partida
para qualquer discussão sobre Literatura.
O peixe no aquário
na varanda em frente ao mar
desdenha: está verde... 1
A partir de uma imagem aparentemente banal, um aquário com um peixe
na varanda, é desenvolvido em “apenas” três versos um texto
pleno de sentidos, saturado de significação, acerca da alma
humana. Humana sim, pois, ao atribuir ao peixe a capacidade de contemplação
(do mar) e desdém, a poeta fala ao homem sobre a essência
que o distingue dos outros seres vivos, como o peixe, a reflexão.
Usa da simbolização para adquirir a condição
de analista, observa no outro (o peixe) o comportamento humano: diante
de algo desejado e inacessível, desdenha-se.
A temática nos reporta à fábula de Esopo, A raposa
e as uvas, a raposa na impossibilidade de alcançar as uvas no
alto da videira, orgulhosa, tenta convencer-se de que elas não “prestam”
porque estão verdes. Repete-se, portanto, no haicai a moral esopiana
de que “quem desdenha deseja”: o peixe, não podendo estar no mar,
dele desdenha (está verde). Porém, nesse retorno ao mote
esopiano, não há uma mera repetição; a poeta
“brinca” com a polissemia da palavra verde e com o conhecimento prévio
da fábula: cor verde, verde que se opõe a maduro. Isto nos
permite uma segunda leitura: quem está verde o mar ou o peixe? Do
desdém do peixe entendemos uma imaturidade ante à vida, ele
não está “pronto” para viver sob as ondas do mar.
Esse diálogo com ditos anteriores, que é uma das razões
da existência da arte literária, torna-se ainda mais fascinante
quando disposto neste “exagero” de minimalismo formal que é o haicai.
Leila não remete a Esopo, ela o evoca. Isto é, dá
ao seu texto o que os japoneses chamam de “sabor de haicai”2,
um estímulo à sensibilidade a partir da precisão e
concisão expressivas.
Talvez tenhamos chegado ao motivo do encantamento: o haicai parece retirar
sua vitalidade na maneira com a qual se relaciona com o nosso imaginário,
estando sempre no limiar entre a recusa do dizer e o fascínio do
sugerir/sentir. Constitui-se como um desafio ao virtuosismo do poeta que
deve mostrar-se capaz de “equilibrar” emoção e razão
em três versos que, juntos, somam 17 sílabas, sem que nenhum
desses versos se torne mais importante que o todo. Este desafio formal
pode ser tomado como a característica mais experimentalista do haicai.
Originalidade e revolução: um momento de palavras que se
faz arte.
O que nos faz transpor a leitura reducionista de ver no haicai um mero
exotismo sentimental é perceber, como fizemos com o texto de Leila
Míccolis, o seu diálogo com o que não está
dito, a sua relação significativa com o não-poema-mundo,
matéria de poesia, que o rodeia. Uma relação
marcada pela perspicácia intelectual e ludismo, num misto de inocência
e deslumbramento. Isso significa permitir-se ler o haicai como uma experiência
sensória que é fruto do labor com a palavra. Daí a
filosofia zen, caminho de vida em que a poesia é cotidiana.
Sentimos que estamos lendo um haicai quando reconhecemos num texto não
apenas coerência de idéias e proposta estética,
mas também uma certa disposição de espírito.
Leitura “ampliada” do mundo, o haicai perpetua a fugacidade de uma sensação
do aqui e agora em que “o peixe desdenha do mar”, em que a realidade
é poesia.
__________
1 MÍCCOLIS, Leila. Sangue
cenográfico. Rio de Janeiro: Blocos, 1997.
2 FRANCHETTI, Paulo. Notas sobre a
história do haicai no Brasil. In: Revista de Letras. São
Paulo, n.34, 1994, 191-196.