MILITÂNCIA E HUMOR NA “POESIA DE TESTEMUNHO” DE LEILA MÍCCOLIS (*)
Prof. Dr. Wilberth Claython Ferreira Salgueiro
(UFES)
Texto publicado na Revista Estudos de literatura brasileira contemporânea , nº 27, sob coordenação da profª Regina Dalcastagnè. UnB. 2006. ISSN: 1518-0158.
para Fernanda
lua à vista
brilhavas assim
sobre Auschwitz?
(La vie en close. Paulo Leminski)
Resumo: Exposição e problematização de alguns aspectos da categoria “literatura de testemunho”, redimensionando-a para o entendimento de parte da produção poética brasileira pós-1964. Proposição da categoria “poesia de testemunho” – adaptada do escritor português Jorge de Sena – para a obra de Leila Míccolis, paradigmática daquela produção, seja pela abordagem obsessiva do lugar das minorias, seja pelos recursos formais utilizados.
Numa carta de 21-I-1928, para Ascânio Lopes, Mário de Andrade como de costume franco e objetivo escreve: “É que hoje, muito mais que as obras de arte, são os homens que me interessam. Daí uma certa impossibilidade curiosa em que estou atualmente em considerar os defeitos dos artistas como defeitos. Mais que defeitos eles me parecem caracteres; da mesma forma que as qualidades, eles caracterizam o artista. Estou convencido que tem defeitos que o artista em vez de corrigir deve acentuar. Porque acentuam o artista também (1).” Ao falar de “defeitos artísticos”, suspendendo o juízo acerca deles, Mário está falando de valor estético. No “defeito”, desde a etimologia, algo falta – há deficit; já no “perfeito”, tudo se completa. Antes do artista e sua obra, diz ainda Mário noutra carta, agora ao jovem Drummond, vem o homem e sua vida com toda a maravilhosa e irreversível imperfeição(2).
Muitos, hoje, constituem os estudos acerca da literatura de testemunho, no mundo, e outros tantos sobre a dita Poesia Marginal, circunscrita aqui aos ditatoriais anos setenta, no Brasil. Meu intuito é o de estender certos aspectos daqueles estudos a esta poesia, tendo como parâmetro a obra-antologia O bom filho a casa torra (1992), de Leila Míccolis, aquilatando a possibilidade de nomear tal obra como uma espécie de “poesia de testemunho”, apropriando-me de especulações do escritor português Jorge de Sena. A empreitada exige, de imediato, a exposição e a problematização de alguns aspectos da categoria “literatura de testemunho”, para, após, tentar entendê-la em confronto com a produção poética brasileira pós-1964, em especial com o livro acima referido de Míccolis, autora que, a despeito da marcante (e obstinada) presença no panorama marginal, permanece preterida, sobretudo pela pecha que se lhe colou de “poesia ruim” – ou seja: defeituosa – numa “sociedade pior” (3).
Na antologia de Míccolis, com poemas de 1965 a 1991, encontramos uma como que resposta a certa crítica acadêmica, excludente e dona de verdades: “Geração inde(x)pendente”: “Foi aí que eu comecei a fazer versos / e mendigar editores, / como se eles fizessem grandes favores / em nos publicar... / Mas de tanto batalhar virei poeta / – um grande passo em minha meta / porque em poetisa todo mundo pisa. / E quando me consideraram menina prodígio, / consegui que um crítico de prestígio / analisasse minha papelada. / Ele deu uma boa folheada, / pensou, pesou e sentenciou: / ‘— É incrível... / não tem nível...’ / Juro que fiquei com muita mágoa, / porque, afinal, quem precisa de nível / é caixa d'água...”(4). Este artigo quer contribuir para que, ainda que saindo um pouco do índex, os versos de Leila continuem seu trajeto “independente”, torrando trocadilhos ao respeitável público.
Entre nós, o livro Catástrofe e representação(5) resulta uma fundamental fonte para a pesquisa sobre a literatura de testemunho. Traz dez ensaios e um apêndice com duas “ficções”, de Bernardo Carvalho e Modesto Carone. Abre a obra o longo e excelente texto “Educação e crise, ou as vicissitudes do ensinar”, de Shoshana Felman. A autora toma como estratégia “escrever” um curso que ministrara, no outono de 1984, exatamente intitulado “Literatura e testemunho”. Com isso, ao testemunhar por escrito a experiência que tivera com seus alunos, no item “A história de uma classe”, estaria ela mesma realizando “uma prática discursiva, em oposição à pura teoria. Testemunhar – prestar juramento de contar, prometer e produzir seu próprio discurso como evidência material da verdade – é realizar um ato de fala, ao invés de simplesmente formular um enunciado” (p. 18)(6). A peste, de Camus, deu a todos a dimensão do testemunho como registro de um acontecimento histórico. Com Notas do submundo, de Dostoiévski, emergiu a potência terapêutica que a narrativa do testemunho carrega. De A interpretação dos sonhos, de Freud, surge uma questão inultrapassável: “a testemunha poderá ser aquele que (de fato) testemunha, mas também aquele que gera a verdade, por meio do processo discursivo do testemunho” (p. 28-29). Em todos teríamos, cada qual a seu modo, a história de um processo. E todos, de alguma forma, também teriam a marca de que tal registro ocorre como uma quebra, uma ruptura, um acidente na própria forma de “percepção e compreensão humanas” (p. 33), que a economia metalingüística da poesia de Mallarmé colocaria em pauta: a radicalidade da violência que se impõe ao verso viria da inevitabilidade mesma de a testemunha “perseguir o acidente, para perseguir ativamente seu caminho e seu percurso através da obscuridade, através da escuridão e através da fragmentação, sem compreender exatamente toda a abrangência e significado de suas implicações, sem prever inteiramente para onde leva a jornada e qual seria a natureza precisa de seu destino final” (p. 37). Daí, dessa quebra do verso e do mundo que Mallarmé aponta, enquanto testemunha do acidente, Felman chega à testemunha da catástrofe: Paul Celan. O poeta romeno, filho de pais judeus-alemães, sobrevivente do Holocausto, se suicidaria em 1970, aos 49 anos. Sua poesia, embora ferida pela experiência do campo de concentração, se expressaria fora do tom linear, direto, explícito, confessional, mas dramática e polifonicamente por elipses, circularidades, ironias. Remetendo à célebre idéia de Adorno, Felman afirma que se pode pensar a poesia de Celan como “resistência criativa e autocrítica ao veredito de que, desde então [depois de Auschwitz], é um ato de barbárie escrever lírica e poeticamente” (p. 47). Vibra, em seus versos, um silêncio que vem de dentro da linguagem, corpo que ecoa o rastro do intraduzível: “Tua pergunta – tua resposta. / Teu canto, o que sabe ele? /// fundonaneve /// undonaeve /// U – a – e”. A derradeira etapa do curso trouxe a apresentação de dois testemunhos em fita de vídeo: “um exemplo real, chocante, vivo e extremo, da função libertadora e vital do testemunho” (p. 59). Se o nazismo queria o nivelamento, o apagamento, o aniquilamento, a indiferenciação total dos seres feitos meros números, ter sobrevivido e testemunhar significa “engajar-se no processo de reencontrar seu nome próprio, sua assinatura” (p. 64) – para si e também para singularizar o nome dos que não sobreviveram. A lição (se o nome é apropriado) do curso, e recorde-se o título do ensaio, é que ensinar deve se assemelhar ao testemunhar, no sentido de “fazer algo acontecer, e não apenas transmitir um conhecimento passivo” (p. 67), para que assim se possa perceber o dissonante e não somente o congruente. Todo esse itinerário que Shoshana Felman nos faz percorrer, com ela, possui um sentido maior: a celebração da vida em sua irredutível diferença.
Nesta mesma coletânea, Catástrofe e representação, além da organização e da apresentação conjunta com Arthur Nestrovski, há de Márcio Seligmann-Silva o ensaio “A história como trauma” (p.73-98), um dos muitos estudos que o autor vem dedicando, com verticalidade e competência, ao tema da literatura de testemunho e tudo o que isto envolve. Questiona-se, aqui, a possibilidade de “espaço para uma dicção puramente lírica [ou] uma prosa puramente realista” (p. 74), num contexto pós-Auschwitz em que a própria representação da realidade adquiriu um caráter aporético. A Shoah, termo que Seligmann prefere a Holocausto (“por não ter as conotações sacrificiais incluídas neste”(7)), não se pode “reduzir a um evento meramente discursivo” (p. 77). Retorna-se, com mediações, ao conceito kantiano de “sublime”, para apontar a complexidade entre o que deve ser descrito (de dimensão ética e histórica), mas que não se alcança (de dimensão estética e metafísica). Via Freud, a noção de trauma como “uma ferida na memória (...) problematiza a possibilidade de um acesso direto ao ‘real’” (p. 85) – mas o recurso à metáfora, mais uma vez, põe em xeque “o conflito entre a necessidade e a impossibilidade de representação” (p. 90) do evento catastrófico, dado seu excesso de realidade. Por outro lado, esse excesso passou a produzir um efeito, se não trágico, brutalmente irônico: “nos primeiros filmes-documentário sobre a Shoah onde há um predomínio de cenas extremamente violentas e insuportáveis, os espectadores simplesmente não aceitavam a realidade do terror, eles como que negavam totalmente o visto, tomando-o por mentira” (p. 94-95). A poesia de Paul Celan, dirá Seligmann, teria encontrado um tom em que essas polaridades se tensionam entre o figural e o literal – num limite que traz a experiência singular do sujeito, irrepetível, mas ao mesmo tempo modelar de um acontecimento coletivo.
De Márcio Seligmann-Silva é também o texto “Zeugnis e Testimonio: um caso de intraduzibilidade entre conceitos”(8), em que vai discorrer sobre as muitas diferenças e algumas semelhanças entre os termos alemão e hispânico, a partir de cinco características: 1) “o evento”: no âmbito germânico, a Shoah é incomparável, pela sua singularidade, e não medida “em termos numéricos, mas sim em termos qualitativos”; já na América Latina, o testimonio se faz como um “registro da história” e das atrocidades perpetradas pelos governos repressores e ditatoriais; 2) “a pessoa que testemunha”: lá, quem fala é, via de regra, o sobrevivente que elabora o trauma; aqui, há como que uma “necessidade de se fazer justiça, de se dar conta da exemplaridade do ‘herói’ e de se conquistar uma voz para o ‘subalterno’”; 3) “o testemunho”: como zeugnis, as marcas vigorosas são a literalização, a fragmentação e a tensão entre oralidade e escrita; como testimonio, ressaltam-se o realismo das obras, a fidelidade ao relato e o caráter fortemente oral; 4) “a cena do testemunho”: nesse tópico, em ambos os registros, o germânico e o latino-americano, a cena se assemelha a um tribunal, em que se busca a identificação com os leitores, sem que, no entanto, a cena se artificialize como uma “peça de publicidade”; e, 5) a “literatura de testemunho”: tem-se ampliado a noção de “Holocaust-Literatur”, agora abrangendo outras tantas guerras e catástrofes, como os gulagui russos e genocídios em geral; na América Latina, “desde os anos 60, procura-se vincular a literatura de testimonio aos gêneros da crônica, hagiografia, autobiografia, reportagem, diário e ensaio”. Seligmann não deixa de destacar que a expansão do estudo acerca do “testemunho” se vale do influxo de três movimentos: a onda de pesquisas sobre a “memória”, a abordagem culturalista e o favorável cruzamento dos “discursos da teoria da literatura, da disciplina histórica e da teoria psicanalítica”.
Amparada na boa bibliografia que já se tem em torno do tema, Valéria de Marco no artigo “A literatura de testemunho e a violência de Estado”(9)destaca a estreita fronteira estabelecida entre este estudo e os ditos estudos culturais, a partir, sobretudo, do exame da violência das ditaduras da América Latina no século XX. Faz um levantamento das principais questões teóricas e históricas, retomando as categorias de catástrofe, indizibilidade, trauma, sublime, e trazendo algumas formulações já conhecidas de Adorno, Levi e Celan. Resume uma definição de testemunho proposta pelos membros do júri do Prêmio Casa das Américas, com a criação da categoria testimonio entre os gêneros contemplados, e sistematizada por Manuel Galich: “O testemunho difere da reportagem porque ele é mais extenso, trata com mais profundidade seu tema, deve apresentar uma qualidade literária superior e não é efêmero como a reportagem, que se vincula à publicação em veículos periódicos. Distingue-se da narrativa ficcional, porque descarta a ficção em favor da manutenção da fidelidade aos fatos narrados. Afasta-se da prosa investigativa, na medida em que exige o contato direto do autor com o ambiente, fatos ou protagonistas que constituem sua narração. O testemunho é diferente da biografia porque, enquanto esta escolhe contar uma vida por seu interesse de caráter individual e singular, aquele reconstitui a história de um ou mais sujeitos escolhidos pela relevância que eles possam ter num determinado contexto social.” Ou seja, a literatura de testemunho deve ter, nessa acepção, densidade, produndidade, qualidade literária, durabilidade, fidelidade aos fatos, conhecimento do evento, relevância para o contexto. Mais à frente, de Marco reafirma que “a eleição de critérios estéticos na análise da literatura de testemunho supõe a interlocução do exercício crítico com a história literária”.
Percebe-se que a avassaladora existência da “literatura de testemunho”, na sua salutar diversidade conceitual, promove um inevitável abalo na noção de cânone e de valor literário, além de alterar o quadro dos agentes ou produtores de literatura: textos e registros de presos, torturados, crianças de rua, favelados, empregados domésticos, doentes terminais, índios, enfim, todo um grupo “subalterno” que agora depõe e se expõe não só em nome próprio, mas também em nome de muitos. Notadamente, as modalidades textuais mais recorrentes têm sido “depoimentos, cartas, diários, memórias, autobiografias, biografias, testemunhos etnográficos e historiográficos”, conforme enumera de Marco.
Ciente do atual quadro do debate, proponho uma ligeira guinada na discussão, resgatando, de modo estratégico, a categoria de “poética do testemunho”, que em 1960 o escritor português Jorge de Sena elaborou no “Prefácio” a Poesia I. Posteriormente, espero pensar a obra de Leila Míccolis como paradigmática de parte da produção poética brasileira pós-1964, seja pela abordagem obsessiva do lugar das minorias, seja pelos recursos formais utilizados, articulando, para tal empresa, a noção hegemônica (posto que múltipla) de “literatura de testemunho” e a noção menos familiar de “poética do testemunho”, que doravante, dando a voz ao próprio poeta, se explicita (10): “o ‘testemunho’ é [...] a mais alta forma de transformação do mundo, porque nele, com ele e através dele, que é antes de mais linguagem, se processa a remodelação dos esquemas feitos, das idéias aceites, dos hábitos sociais inconscientemente vividos, dos sentimentos convencionalmente aferidos. Como um processo testemunhal sempre entendi a poesia, cuja melhor arte consistirá em dar expressão ao que o mundo (o dentro e o fora) nos vai revelando, não apenas de outros mundos simultâneos e idealmente possíveis, mas, principalmente, de outros que a nossa vontade de dignidade humana deseja convocar a que o sejam de facto. Testemunhar do que, em nós e através de nós, se transforma, e por isso ser capaz de compreender tudo, de reconhecer a função positiva ou negativa (mas função) de tudo, e de sofrer na consciência ou nos afectos tudo, recusando ao mesmo tempo as disciplinas em que outros serão mais eficientes, os convívios em que alguns serão mais pródigos, ou o isolamento de que muitos serão mais ciosos – eis o que foi, e é, para mim, a poesia” (11).
O sentido que Sena dá ao “testemunho poético”, como se percebe, é bastante diverso do que temos entendido a partir dos estudos acerca da “literatura de testemunho”. Nesta, ressalta o caráter monumental da história; naquele, o cotidiano corriqueiro. Se o testemunho de Sena tem altíssima consciência de “que é antes de mais linguagem”, o outro “tipo” traz a marca de uma iniludível experiência – exemplar e coletiva – do sujeito singular. Daí, detecta-se na “literatura de testemunho” um teor inescapavelmente confessional, a despeito das distintas faturas de escrita; já na “poética do testemunho” prevalece uma vontade que, radicalmente avessa à estética do fingimento (de timbre pessoano, por exemplo), quer servir, transmitir, comunicar algo. A indizibilidade de uma experiência, por sublime, se traduz em convergência existencial noutra, por trivial.
Maria Fernanda Oliveira nos oferece uma formidável síntese acerca da concepção seniana: “a poesia de Jorge de Sena visa a uma significação social que ela só terá na condição de que o ‘mundo’ coletivo se faça presente na ‘consciência’ do poeta pela manifestação nela mesma do que seja o seu próprio ‘desejo’ de ‘superação’. (...) assumir a ‘visão coletiva’ não implica qualquer restrição ao tratamento de assuntos ditos pessoais na poesia em prol de um discurso onde apenas as questões grupais sejam tidas como dignas de atenção. O caráter socialmente engajado do processo de representação de uma ‘dialética da consciência’ tem que ver com o esforço dessa ‘consciência’ para compreender o ‘mundo’ em que vive, e do qual fazem parte o próprio sentido das oposições entre o indivíduo e grupo, ou entre um grupo e outro num determinado contexto histórico” (12).
Entre os dois “tipos” de testemunho – um “dramático”, que se desentranha dos traumas de guerra e se estende até as ditaduras latino-americanas; e outro “lírico”, que se depreende das palavras do poeta português –, entre a “literatura” e a “poética”, proponho, pois, a variante “poesia de testemunho”, expressão com que passo a designar os versos de Leila Míccolis, tão representativos de um período histórico em que, no Brasil, a repressão política foi a tônica, quanto de uma voz – da mulher – ora brutal ora sutilmente silenciada pelo “macho adulto branco sempre no comando”, como diria o poeta baiano. Para além de lê-la querendo fazer um “resgate” culturalista de (mais) uma obra (injustamente) esquecida pela crítica canonizadora, quero ler em Leila aquilo que ela me parece querer de sua poesia – aproveitando termo de Sena: uma “arte de ser”. O contexto e o modo como se dá essa arte é o que, adiante, investigaremos, atentando para o que diz Gagnebin em “Palavras para Hurbinek”: “A construção da memória, individual ou social, não depende, em primeiro lugar, nem da importância dos fatos nem do sofrimento das vítimas, mas sim de uma vontade ética que se inscreve numa luta política e histórica precisa (uma conclusão, aliás, que me parece significativa também em relação ao contexto brasileiro!)” (13).
Com um poema de um livro de 1982, intitulado MPB: muita poesia brasileira, abrimos nosso breve “inventário de cicatrizes” (retomando bela e triste expressão de Alex Polari) da obra de Leila Míccolis: “Missão impossível”: “Eles podem nos cercar, / nos encostar contra a parede, / nos assustar com suas ameaças / mordaças / seus cassetetes de borracha, / eles podem / arrancar nossos dentes pra não sorrirmos, / as mãos, pra não escrevermos, / a boca, pra não falarmos, / a cabeça, pra não pensarmos, / eles podem tudo, / menos se fazer queridos / menos se fazer amados.”(14). Neste livro de Míccolis, funcionando como que à maneira de epígrafes inspiradoras, todos os poemas dialogam com canções da música popular brasileira – no caso deste “Missão impossível”, há referências a Aldir Blanc e João Bosco, Gonzaguinha, Marcos e Paulo Sérgio Valle, e Chico Buarque (“Apesar de você / amanhã há de ser outro dia...”). Este “você” ao qual Chico se dirige espelha o “Eles” do poema de Leila, aqui tratando de modo mais direto, digamos, o inimigo político comum, que porta armas e está disposto a qualquer barbaridade para impedir a alegria, a criação, a manifestação, o pensamento. Se “eles” podem decepar dentes, mãos, boca e cabeça, o “coração” – sede universal do sentimento – não será atingido. É desse “coração” que sai, com sincera simplicidade, a “poesia de testemunho” de Leila Míccolis, sua “arte de ser”.
No entanto, não é nosso intuito mapear a produção da poeta, rastreando referências apenas aos “negros verdes anos” (Cacaso) da ditadura militar brasileira pós-64. Para isso, mais um poema, retirado de sua página da internet, bastaria: “Mau tempo”: “Coração assustado / à espreita de aparições, / temor constante, / o sobressalto até pelos estalos da madeira, / pelas sombras, pesadelos / e todas as tocaias que rondam o escuro, / e a perspectiva sombria / de não se estar vivo / no outro dia.” (15). Também não pertence aos propósitos desse estudo reinventar a Poesia Marginal brasileira a partir de Leila Míccolis, tampouco forçar a nota crítica, transformando seus poemas naquilo que, efetivamente, não são, nem quiçá queiram ser. Eles em nada – ou muito pouco – se assemelham, por exemplo, aos versos aporéticos de um Paul Celan, construídos a partir do recurso alegórico, em estilo econômico e mesmo árido, tendendo à elipse e ao silêncio. Diria que a obra de Míccolis milita escrachadamente tendo como base a defesa da mulher e do feminino e, para isso, lança mão de um discurso que se aproxima do linear-referencial, em estilo prolixo e úmido, com muito barulho – é seu modo, repito, de testemunhar-se no mundo: “Em bons lençóis”: “Desde a minha juventude eu lia o Pravda / ávida / por encontrar um camarada-amante / daqueles bem militantes... / E quase entrei em negras listas / por tais idéias comunistas. / Foi aí que eu quis ser crooner / para filmar com Yul Brunner / um romântico musical: / mas não tive capital / pra visitar Holiúde, / e descobri – golpe rude – / que cinema nacional / não tinha galã bacana; / fui então de caravana / para as terras do Oriente, / e tome dança de ventre... / Após 1001 noites, / quando o califa deixei, / me apaixonei por um gay, / depois por um pajeú, / um xin-lin, um kung fu, / um poeta marginal, / e a filha de um general... / Só por isso, sou devassa, / Messalina, uma ameaça / às mulheres de respeito; / mas quem fala tem despeito / do meu viver divertido. / Não quero amor comedido, / nem ser a isca do anzol / que vai fisgar um marido / a ser mantido em formol.” (p. 20).
Testemunhar tem sido, via de regra, uma atitude solene de exercitar a tristeza. Daí adveio, decerto, parte do mal-estar provocado pelo filme “A vida é bela”, de Benigni, que apostou no humor do “pai poeta” para driblar a crueza da barbárie bélica e na candura do olhar infantil para rasurar o mundo adulto. Com Míccolis, reiterando um traço geracional, o humor insolente prevalece, mesmo – e talvez por isso – nas piores situações de sufoco, tirania, barra pesada, vexame, angústia. Mais que a expressão do medo, típica da literatura gestada sob um imaginário do suplício físico, os versos de Leila trazem (sob a ótica, repita-se, hegemônica do tom bem-humorado) o espanto estampado: “Carreiras”: “Os que ficam lá no Norte / morrem crendo: se viessem / melhorariam de sorte. / Muitos caem pela estrada / sem enterro, sem jazigo; / mas os mais afortunados / chegam... ao posto de mendigo.” (p. 41). A expectativa do sucesso na cidade grande se esvazia sem dó no fado do fracasso: onívora, a urbe traga a todos, gerando, da própria entranha, a violência que se rebela, à revelia da ordem institucional: feios, sujos e malvados, os mendigos resistem e assustam a classe média, por sua vez, blindada em condomínios com cercas e vigias full time. Num convincente painel, Flora Süssekind mapeia o conflito que se tensiona nesse circuito: “Pois é fundamentalmente um imaginário do medo e da violência que organiza a paisagem urbana dominante na literatura brasileira contemporânea. O que é também parcialmente explicável em relação direta com o crescimento das taxas de crime violento nas grandes cidades do país nos anos 1980-1990, com o fortalecimento do crime organizado, com a ineficiência da polícia e do sistema judiciário no exercício da segurança pública e da justiça, com o aumento de visibilidade do contingente populacional em situação de pobreza absoluta que perambula pelas grandes cidades, expulso tanto das favelas, quanto dos enclaves fortificados de classe média, com uma espécie de generalização da violência, que abrange do trânsito automobilístico às relações familiares, dos estádios de futebol aos justiceiros e matadores profissionais e ao exercício privado da segurança e da vingança”(16).
Percebe-se que o procedimento alegórico, tão comum como “disfarce” para a representação literária durante a época da “musa” censura, dá lugar a uma linguagem bastante referencial, parece que aprisionada em metáforas e bricabraques setentistas. O painel que se decupa da poesia de Leila Míccolis se carrega, sem dúvida, de uma dicção proselitista, panfletária, bandeirosa – é o que ela se quer: antibeletrista, não cult, nem “poesia dita profunda” (Cabral) ou metafísica. Sobra até mesmo para os camaradas de esquerda: “Vã filosofia...”: “Falas muito de Marx, / de divisão de tarefas, / de trabalho de base, / mas quando te levantas, / nem a cama fazes...” (p. 11) Mas se a ideologia política entra em pauta é ainda para precisar as múltiplas diferenças entre os lugares do homem e da mulher, que muitas vezes se mascaram, e assim se mantêm incólumes na retórica sexista, como em “Referencial”: “‘Solteira de aceso facho / precisa logo de macho; / se é nervosinha a casada / só pode ser mal transada; / viúva cheia de enfado / tem saudade do finado; / puta metida a valente / quer cafetão que a esquente. / Mulher não vive sem homem. / A prova mais certa disto / é que até as castas freiras / são as esposas... de Cristo. / Tal regra é tão extremista / que não contém exceção: / quem sai dela é feminista, / fria, velha ou sapatão’. / E é com essa bagagem de preconceitos adquiridos / que chega-se à conclusão, / na separação de amores doloridos, / de que não houve culpados. / Só feridos.” Num lúcido artigo, Kátia da Costa Bezerra comenta este poema: “Aqui, a ironia se faz presente de forma cortante. Novamente, o efeito lúdico do poema está atrelado à alternância do padrão de rimas – rimas paralelas, alternadas e internas. Além disso, o poema, montado a partir de dizeres populares, critica de maneira mordaz o fato de os diferentes papéis possíveis para as mulheres terem sempre o homem como ponto de referência. Diante disso, pode-se asseverar que seus poemas estão marcados pela preocupação em desenvolver uma atitude reflexiva em relação a hábitos, disposições e associações tidas como ‘naturais’ na tentativa de problematizar os modelos pertencentes a um discurso hegemônico – uma atitude tida como crucial em qualquer processo de transformação”(17).
Engana-se quem crê serem os versos de Leila tão-somente uma defesa incondicional e genérica da mulher como “vítima do sistema patriarcal, machista, excludente” etc. O que seus versos “testemunham” é algo mais grave: se o “referencial” é masculino – seja na dependência, seja na negação –, é “nele” mesmo que o abalo deve se dar. Ao longo de toda a história, a falocracia modelou o imaginário da mulher, controlando-o. Transformar esse destino é tarefa de todos, a despeito de gêneros, diz Míccolis, desde que saiam do tácito silêncio e, ao cômodo belo, lancem libelos. Assim, como quis Sena, repetimos, vale o testemunho “porque nele, com ele e através dele, que é antes de mais linguagem, se processa a remodelação dos esquemas feitos, das idéias aceites, dos hábitos sociais inconscientemente vividos, dos sentimentos convencionalmente aferidos”. Leila Míccolis fala de e para mendigos, índios, crianças, velhos, prostitutas – sabendo que o modelo de “homem bem-sucedido” deve ser destronado: “Missão c(o)mprida”: “Você conseguiu tudo na vida: / uma barriga bem alimentada, / uma amante infiel / uma esposa comportada / carro do ano / filhos rebeldes ao seu jugo tirano / casa própria, emprego com crachá / um sítio em Visconde de Mauá / um ufanista amor pelo país / tudo como manda o figurino / (de Paris). / E morrerá, cumprindo a sua parte, / de tensão ou de enfarte, / de repente, / sem nem ao menos de longe perceber / que podia ter sido diferente.”(18).
Esparsos são os estudos específicos acerca da poesia de Míccolis; na verdade, ela é a principal propagadora da própria obra. Estreando em 1965, já em 1976 constava da plêiade marginal que Heloísa Buarque de Hollanda, ironicamente, canonizou, com o sucesso da antologia 26 poetas hoje – ao lado de Chico Alvim, Cacaso, Piva, Torquato, Capinan, Ana Cristina Cesar, Waly, Chacal, entre outros. Além das referências, críticas e afetivas, divulgadas em seu site, há menções a sua obra em textos que abordam a Poesia Marginal, sobretudo quanto à questão das minorias, e, ainda em particular, da situação da mulher no mundo contemporâneo(19). Nesse quadro de semi-ostracismo, o seguro artigo de Paulo César Andrade da Silva, “A política do corpo em Leila Míccolis”, presta uma excelente contribuição ao perfilar sua poesia, que se caracterizaria “pela utilização da sexualidade como arma de combate, para denunciar uma série de aspectos relativos à posição da mulher na sociedade burguesa: a sua exploração pelo homem, o falso moralismo, a castração imposta pela sociedade, através de condicionamentos de comportamento sexual”(20). O autor se ampara em idéias de Silviano Santiago, Steven Connor e Herbert Marcuse, para, respectivamente, localizar a obra de Leila num paradigma anticepecista (e, daí, engajada no prazer, e não na “causa”), pós-modernista (na margem, fora do poder e dos discursos de verdade) e contracultural (com eros, pelo ócio criativo, pelo desbunde e pela desobediência)(21).
Parece-me já claro que o interesse, aqui, é seguir as pegadas que a “poesia de testemunho” de Míccolis vai fixando, com furor, em registro direto – diria: “mimético” –, distante de qualquer cuidado com linguagens politicamente corretas. Como resultado dessa atitude, invadem seus versos naïfs um vocabulário que ora surpreende, ora afugenta pelo mau gosto, pelo grotesco, pelo kitsch: “Cartão-postal”: “Nutrem-se os subnutridos / com restos servidos / em pirex coloridos”; ou “Iniciação”: “Não há razão pra t(r)emeres: / se podias ser meu filho / aproveita por não seres...”; ou “Nostalgia”: “Ainda há marcas de nosso idílio: / pegaste doença / e eu peguei filho” (p. 61, 60 e 61). Enquanto há tempo, ela se lembra de um massacre ora perene, ora intermitente: “homenagem póstuma”: “Dói essa sensação de desconforto: / hoje, todo dia é dia de índio. / Morto. / E como ele vai continuar sendo abatido / logo erguerão um monumento – túmulo / ao índio desaparecido.” (p. 41) A sem-cerimônia de sua linguagem tinge-se de um tom verticalmente ideológico, quando o verso se confunde com um desabafo: “democracia”: “A índia enrabada, / a negra explorada, / a branca fodida, / direitos iguais.” (p. 48).
Certamente, para aquele “crítico de prestígio” tais versos não têm “nível” – daí, vão para o índex... São versos que, sem que aqui se queira forçar o termo, testemunham situações-limite (pobreza, doença, estupro, chacina etc.), mas banalizadas pelo cotidiano e parcialmente omitidas por poderosas e concretas instituições (mídia, família, Estado, igreja et caterva). Leila larga mão – é seu “defeito artístico”, diria Mário – de sofisticações e sutilezas e vai, como numa obstinada missão, soltando o verbo, privilegiando uma “visada ética” em vez de um “olhar estetizante”, como se nota, por exemplo, no traço de uma Ana Cristina Cesar (não à toa muito próxima da poética do fingimento pessoano)(22) . Já observava Heloísa Buarque de Hollanda, em 26 poetas hoje, “que o uso do baixo calão nem sempre resulta num efeito de choque, mas que, na maior parte das vezes, aparece como dialeto cotidiano naturalizado e, não raro, como desfecho lírico”(23). Avessa, então, a excessivos disfarces, Leila opta pela palavra para, não pela palavra pura (que pára nela mesma). Fora da festa intransitiva do intelecto, sua poesia põe o corpo na praça: “cativeiro”: “Sou preta. / Mas de alma branca, / cabelos lisos de henê, / rijos peitos, boas ancas, / rebolo por metiê... / Igual às mães tenho um dia / só para mim, / talvez por eu ser mais afrodisíaca / do que amendoim. / Sou produto nacional, / exportada e associada / ao café, ao carnaval, / e agüento qualquer repuxo. / Afinal, sou a mulata, / uma sucata de luxo.” (p. 31).
Em “Holocausto, testemunho, arte e trauma”, Geoffrey Hartmann, referindo-se à obra de Paul Celan, pergunta: “Como se pode fazer poesia a partir da infelicidade de falar?”(24).Mas é exatamente pela recuperação dessa voz, memória que se queria apagar, que a resistência se faz e se pode, então, produzir uma “testemunha para a testemunha”. A vulgarização da experiência traumática pode, por sua vez, gerar um risco: a dessensibilização coletiva – “Ainda que no curso da vida todos se exponham a visões de morte e sofrimento, é preocupante a exposição rotineira, uma exposição que facilita e habitua e tende a produzir sentimentos de indiferença.” (p. 208-209). Mesmo sob o custo de ser seqüestrada da festa chique do panteão literário, a poesia de Leila Míccolis não é em nada dessensibilizada. É como se mesmo falando do lugar de um teórico “eu lírico” houvesse um “nós coletivo”: “Sendas estelares”: “Eu fui um dia rainha / e o meu reino se estendia / do quarto até a cozinha, / mas depois foi restringido: / em vez de amante, o marido, / em vez de gozos, extratos. / Agora nem isso tenho. / Apenas restam-me os pratos.”(25). Se, como diz Maria Fernanda Oliveira, “na poesia de Sena há um ‘ultrapassamento do eu’ em que a própria ‘personalidade’ do poeta ‘se anula’ para dar lugar à fala do próprio ‘poema’”(26), algo semelhante ocorre com Míccolis: consciente, como cidadã, das inúmeras agruras por que passa a mulher (guardadas as evidentes diferenças ao longo da história, a opressão – em distintos graus – perdura), a poeta afia a língua para abrir a ferida, não para sublimar ou estetizar, mas para se solidarizar com a grande maioria inconsciente das escabrosas torturas que sofrem. Não se julgue com tanta pressa e pejoração, porém, o engajamento poético de Míccolis – o que traria danos incontornáveis à obra, fragilizando-a. Aqui, por exemplo, o ambíguo “estelares” do título funciona como o resumo de uma mórbida trajetória (“senda”, caminho) feminina que se inicia como “rainha” – aí supõe-se “estela” como “estrela” – e culmina no espaço exíguo da cozinha – “estela” vira, então, lápide tumular, pia onde se lavam os pratos. Os regulares heptassílabos dão conta do descontentamento reinante de parcela considerável de mulheres que, submissas, vêem seu mundo reduzido ao serviço caseiro mais comezinho: lavar pratos. Na ironia da palavra solidária, a poesia dá testemunho de um estado das coisas, cuja transformação somente a clara ação política – e todo o complexo que isso envolve, quanto a educação, trabalho, valores morais (sexuais, religiosos...) etc. – poderá levar a cabo. O tempo de certa utopia poética (em que se mudaria o mundo com as formas) passou. Mas não passou a violência ancestral que, sob sutis disfarces ou evidentes barbaridades, as instituições e os hábitos sociais falocráticos perpetram à mulher, dia após dia.
Para sistematizar as idéias aqui equacionadas, e encerrarmos este excurso, recuperemos da dispersão alguns pontos fundamentais: para Mário de Andrade, o “defeito artístico” aponta o caráter de quem cria. Com isso, o autor de Macunaíma traz à baila a noção de valor, que, como mostrou Compagnon, é deveras problemática, envolvendo várias tensões e perspectivas: “a originalidade, a riqueza, a complexidade podem ser exigidas também do ponto de vista semântico, e não apenas formal. A tensão entre sentido e forma torna-se então o critério dos critérios”(27). Para Gagnebin, a “vontade ética” parece compensar alguma fragilidade formal. Essa tensão entre irrepresentabilidade estética e necessidade ética é, a todo momento, fixada nos estudos de Seligmann sobre a literatura de testemunho, cuja existência e resistência, conforme conclui Shoshana Felman, pode modificar nossa postura diante da prática do ensino: algo deve se transformar, “acontecer”. Semelhante atitude tem o poeta português Jorge de Sena ao dizer que o poeta “sofre na consciência ou nos afectos tudo” e, com essa força, pode colocar-se como testemunho de um tempo – e também transformá-lo, dia após dia...
Seja na versão iniludivelmente dramática da experiência da Shoah e de outros genocídios, que geraram um conjunto de textos rubricados como “literatura de testemunho”, seja na versão lírica mais “suavizada” da experiência cotidiana da violência do mundo, que nos dá a possibilidade de falarmos de uma poética ou poesia de testemunho, temos um elemento absurdamente comum: a ação do homem contra o homem. Saindo da generalidade ontológica para a particularidade sexista, nesse quadro encontramos a mulher, cujo corpo foi e vem sendo historicamente castrado. Num contexto político de exceção – como a ditadura militar brasileira pós-64 –, multiplicam-se as condições adversas de sobrevivência. Toda uma geração de poetas fotografou esse tempo, com a tecnologia lírica de que, jovens em geral, dispunham: “Mesmo assim há elaboração, involuntária ou não, pois a representação dispõe formalmente seus elementos: o registro confessional e biográfico, a anotação irreverente do cotidiano, a nota bruta do sentimento, da sensação, do fortuito, são soluções poéticas que acabam impondo um padrão informal e antiliterário de estilização. Seus traços recorrentes são facilmente reconhecíveis: a coloquialidade, a despretensão temática, a relação conversacional com o leitor, o humor, a cotidianização da metáfora extravagante, a simplicidade sintática e vocabular, recursos que, por sua vez, não ignoram a simultaneidade, a colagem, a elipse, a brevidade”(28).
Dentre esses poetas, enfim, tentamos apresentar uma de suas vozes mais esquecidas, não para canonizá-la, vade retro, mas para mostrar que, sendo militante da poesia feminista, Leila Míccolis está atenta para outros pares na exclusão social: o preto, o pobre, o índio, o mendigo, a prostituta (“menos valia”: “Enquanto as roupas guardava / foi Maria quem me disse / que mais vestidos ganhava / quanto menos os vestisse...”) etc. O tom, no entanto, que constrói (sic) para seus versos é de humor e ironia (escrachados, decerto), sem tristeza absoluta nem melancolia depressiva; a sensação que se tem ao lê-los é de prazer e gozo, em que pese o drama e o sofrimento da moldura subalterna; o projeto poético, se há, não é cerebrino, mas cordial – sem, no entanto, camuflar pacificações para conflitos incontornáveis. Daí, repetimos, o riso que seus versos provocam não é “inofensivo, desarmado, desligado, ‘convivial’”, como detecta Georges Minois quanto ao riso hegemônico em tempos contemporâneos (29). À alegoria e ao silenciar-se de um Paul Celan, por exemplo, que soube, ao preço da própria vida, devolver à língua em que escrevia o enigma esfíngico da existência, Leila Míccolis “preferiu” o estardalhaço de um problema público e perene, daí a referencialidade imediata e prosaica de seus versos, aos quais não faltam, no entanto, uma “atitude reflexiva” (Kátia Bezerra) de quem escolheu a “sexualidade como arma de combate” (Paulo César Andrade).
Ao seu modo, mesmo brigando por uma coletividade – como em “mutismo”: “Esse minuto de silêncio, / tenso / que incomoda há tantos anos / feito uma íngua, / não é homenagem póstuma, / é que nos cortaram a língua...” (p. 60) –, quando assume a primeira pessoa do plural (que pode ser o silêncio do corpo da mulher, ou o silêncio da repressão generalizada), Leila Míccolis procura aquilo que a singularize, aquilo que, no meio do redemunho da vida, faça dela, poeta, “A única”: “Por mais que o rosto a cabeleira tampe / não foi meu jeito lânguido de vamp / que te marcou, foi minha boa-fé / de ser hostil, como qualquer pessoa, / de não fingir ser recatada e boa, / nem parecer aquilo que não é”(30). Leila Míccolis, quem diria, acabou em decassílabos.
REFERÊNCIAS TEXTUAIS
(01) ANDRADE, Mário de. 71 cartas de Mário de Andrade . Organização e notas por Lígia Fernandes. Rio de Janeiro, Liv. São José, 1965, p. 64.
(02)“Não bote nada de estética na vida de você, bote vida que não tem nada que ver com as atitudes artísticas e portanto desinteressadas do espírito . (...) Antes de ser artista seja homem.” In: A lição do amigo – cartas de Mário de Andrade a Carlos Drummond de Andrade. Rio de Janeiro : José Olympio, 1982, p. 35. [ Carta de 27-V-25.]
(03) Refiro-me aqui, é claro, ao artigo “ Poesia ruim, sociedade pior”, de Vinicius Dantas e Iumna Maria Simon, que retornará à frente.
(04) MÍCCOLIS, Leila. O bom filho a casa torra. Rio de Janeiro: Blocos; São Paulo: Edicon, 1992, p. 37. (Quando o poema citado pertencer a este livro, indicarei no corpo do texto apenas o número da página .)
(05) Catástrofe e representação: ensaios. Arthur Nestrovski, Márcio Seligmann-Silva (orgs.). São Paulo: Escuta, 2000. [Nas citações seguintes deste livro, indicarei no corpo do texto apenas o número da página .]
(06) Guardadas as enormes diferenças, ao decidir escrever minha tese de doutorado sobre a poesia brasileira dos anos 70 e após, fiz um gesto semelhante, pois, tendo nascido em 1964, fui cobaia e vítima de toda uma conjuntura histórica que, entre outras desastradas conseqüências, fez da minha uma geração algo ignorante em termos político-ideológicos. Reitero que o registro testemunhal de Felman é de ordem bem diversa – no entanto, reservo-me, mesmo assim, a comparação, no que ela pode guardar de reconhecimento de traumas e de fantasmas.
(07) SELIGMANN-SILVA, Márcio. “A literatura do trauma”. In: Revista Cult, junho 1999, nº 23, p. 43.
(08) SELIGMANN-SILVA, Márcio. “Zeugnis e Testimonio: um caso de intraduzibilidade entre conceitos”. In: Letras nº 22 – Literatura e autoritarismo, jan-jun/2001, p.121-130.
(09) MARCO, Valéria de. “A literatura de testemunho e a violência de Estado”. Lua Nova, 2004, nº. 62, p.45-68. ISSN 0102-6445. In: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0102 . Acesso em 22/08/2005.
(10) Sem o auxílio luxuoso dos textos de Maria Fernanda Oliveira – que fez a aproximação da “ literatura de testemunho ” com o pensamento poético de Jorge de Sena em “Literatura e filosofia em close reading” (In: Modernidades e pós-modernidades 2: perspectivas contemporâneas da teoria literária. Bernardo Oliveira, Sérgio Amaral, Wilberth Salgueiro, organizadores . Vitória : Flor & Cultura, 2003, p. 234-248), mas, sobretudo, fez antes um estudo exaustivo e preciso da reflexão seniana em “ Manda-me o tempo que cante (sobre o pensamento poético de Jorge de Sena )”, tese de doutoramento apresentada à UFRJ em 2000 –, sem este auxílio a hipótese teórica a que me lanço não seria possível .
(11) SENA, Jorge de. Poesia I. Lisboa: Edições 70, 1988, p. 25-26. Prefácio .
(12) OLIVEIRA, Maria Fernanda. “Manda-me o tempo que cante (sobre o pensamento poético de Jorge de Sena)”. Tese de doutoramento. UFRJ. 2000, p. 210.
(13) GAGNEBIN, Jeanne Marie. “Palavras para Hurbinek”. In: Catástrofe e representação: ensaios. Arthur Nestrovski, Márcio Seligmann-Silva (orgs.). São Paulo: Escuta, 2000, p. 102.
(14) MÍCCOLIS, Leila. MPB: Muita Poesia Brasileira. Prefácio de José Ramos Tinhorão. Rio de Janeiro: Ed. Trote, 1982, p. 141.
(15) MÍCCOLIS, Leila. Site oficial: http://www.blocosonline.com.br/sites_pessoais/sites/lm/index.htm .
(16) SÜSSEKIND, Flora. “Desterritorialização e forma literária – literatura brasileira contemporânea e experiência urbana”. In: http://acd.ufrj.br/pacc/z/ensaio_detalhe.php?ensaio=6 . Acesso em 22/08/2005 .
(17)BEZERRA, Kátia da Costa. “Sangue cenográfico: uma poética diluindo fronteiras”. Revista de crítica literaria latinoamericana . Año XXVI, Nº 52. Lima-Hanover, 2er. Semestre del 2000, p. 257-268.
(18)MÍCCOLIS, Leila. In: http://www.vaniadiniz.pro.br/ entrevista _leila_paparazho.htm. Acesso em 22/08/2005.
(19) Cf. MORICONI, Italo. “Pós-modernismo e volta do sublime na poesia brasileira”. In: Poesia hoje. Celia Pedrosa, Cláudia Matos, Evando Nascimento (organizadores). Niterói: EDUFF, 1998, p. 11-26. (Coleção Ensaios; 13). Sobre a poesia de Míccolis, diz o estudioso: “linguagem masculinizada de deboche bordelesco na tradição do satirista colonial Gregório de Matos” (p. 16).
Cf. PEREIRA, Carlos Alberto Messeder. “O novo network poético 80 no Rio de Janeiro”. Em busca do Brasil contemporâneo . Rio de Janeiro: Notrya, 1993. [Texto inicialmente publicado na Revista do Brazil, ano 2, nº 5, 1986.]
Cf. SALGUEIRO, Wilberth Claython F. Forças & formas: aspectos da poesia brasileira contemporânea (dos anos 70 aos 90). Vitória: Edufes, 2002, p. 90: “A entidade masculina ( seu milenar tiranismo) é a grande musa da poesia de Leila Míccolis. Contra o rancor, o humor. Panfletária – ou estrategicamente popular? Pura inversão de papéis – ou sátira do poder?”
(20) SILVA, Paulo César Andrade da. “A política do corpo em Leila Míccolis”. In: http://www.blocosonline.com.br/sites_pessoais/sites/lm/leila/leilad11a.htm . Acesso em 20/08/2005.
(21) Cf. CONNOR, Steven. Cultura pós-moderna; introdução às teorias do contemporâneo. Tradução: Adail Ubirajara Sobral, Maria Stela Gonçalves. São Paulo: Loyola, 1992.
MARCUSE, Herbert. Eros e civilização: uma interpretação filosófica do pensamento de Freud. Tradução: Álvaro Cabral. São Paulo: Círculo do Livro, s.d
SANTIAGO, Silviano. “Poder e alegria. A literatura brasileira pós-64 – reflexões”. Nas malhas da letra; ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
(22) “O que quer dizer “olhar estetizante”? Quando você estetiza, quer dizer, quando você mexe num material inicial, bruto, você já constrói alguma coisa . Então, você sai, você finge, é a questão do fingimento novamente . Aí você sai do âmbito da Verdade, com letra maiúscula . Você saca que ela nem existe, que ela nem pode ser transmitida. Na literatura, então, não há essa Verdade .” CESAR, Ana Cristina. Escritos no Rio. São Paulo: Brasiliense, 1993, p. 209.
(23) 26 poetas hoje. Seleção e introdução: Heloísa Buarque de Hollanda. Rio de Janeiro: Editorial Labor, 1976, p. 9.
(24) HARTMANN, Geoffrey . “Holocausto, testemunho, arte e trauma”. In: Catástrofe e representação: ensaios . Arthur Nestrovski, Márcio Seligmann-Silva (orgs.). São Paulo: Escuta, 2000, p. 230.
(25) MÍCCOLIS, Leila. Respeitável público. Rio de Janeiro: Edições Trote, 1981, s/n.
(26) OLIVEIRA, Maria Fernanda. “Manda-me o tempo que cante (sobre o pensamento poético de Jorge de Sena)”. Tese de doutoramento. UFRJ. 2000, p. 213.
(27) COMPAGNON, Antoine. O demônio da teoria: literatura e senso comum. Tradução: Cleonice Paes Barreto Mourão, Consuelo Fortes Santiago. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2001, p. 229.
(28) DANTAS, Vinicius & SIMON, Iumna Maria. Poesia ruim, sociedade pior. In: Remate de males. Campinas, (7): 95-108, 1987, p. 100 e 105. [Publicado anteriormente em Novos Estudos CEBRAP, nº 12, de 1985.]
(29) MINOIS, Georges. História do riso e do escárnio. Tradução: Maria Elena O. Ortiz Assunção. São Paulo: Editora Unesp, 2003, p. 624.
(30) MÍCCOLIS, Leila. MPB: Muita Poesia Brasileira. Prefácio de José Ramos Tinhorão. Rio de Janeiro: Ed. Trote, 1982, p. 60.
BIBLIOGRAFIA:
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