TEATRO MUNDI
PAULA VALÉRIA ANDRADE
Paula Valéria é escritora e designer, produtora e publicitária em design gráfico, diretora de arte, cenógrafa & figurinista em cinema, teatro, TV, com prêmios APCA, Mambembe e APETESP. Realizou 30 espetáculos em 15 anos de teatro, alguns inclusive no estrangeiro. Viveu em Londres, estudando História do Vestuário no Victoria & Albert Museum e, em Berlin e Bradenburg, trabalhou com cenografia para 1ATV. Reside atualmente em S. Francisco/Estados Unidos.
Coluna de 14/4
(próxima coluna: 28/4)
Gianfrancesco Guarnieri, um autor, ator de seus personagens
Para falar de Gianfrancesco Guarnieri, precisamos lembrar, antes de mais nada, que ele foi um ator e dramaturgo totalmente engajado com as questões políticas e sociais de sua geração aqui no Brasil. Gianfrancesco Sigfrido Benedetto Marinenghi de Guarnieri, nasceu em Milão, Itália, em 1934, tornou-se um dos mais importantes autores teatrais brasileiros dos anos 60, apesar de ser italiano. Filho de imigrantes, chegou ao Brasil aos dois anos de idade e viveu no Rio de Janeiro. Mudou-se para São Paulo em 1954 e como ator integrou, em 1955, o Teatro Paulista do Estudante, grupo amador que mais tarde se fundiu com o Teatro de Arena, em 1956. Foi ali, nos elencos de Escola de Maridos e Dias Felizes , em 1956, e em Ratos e Homens, em 1957 que o ator se projetou como bom intérprete e ganhou espaço intelectual no grupo.
Suas peças transmitem genuína emoção e uma lúcida critica à realidade nacional e foram participativas do processo de renovação do teatro brasileiro promovido pelo Teatro de Arena de São Paulo. Até este momento, o rigor formal era a dominante tendência no teatro, uma tradição quase solene. O então conhecido e que se tinha acesso, era uma dramaturgia apenas voltada para a forma dramática, com base no modelo artistico francês. Politica tambem não era assunto para os palcos nacionais. Mas foi através de Glauber Rocha, Guarnieri e Augusto Boal, entre tantos outros nomes que faziam teatro com o vigor e a visão de quem busca (e pode) transformar o (seu) mundo, que esse círculo elitista e hermético imposto anteriormente foi deliberadamente quebrado e superado. A partir desses autores, foram implementadas novas perspectivas de personagens e temas, revelados pela arte agora atenta aos sentimentos populares. Guarnieri era filho de artistas de esquerda e sempre estava envolvido em movimentos estudantis. Esse, entre outros motivos, o levou a pensar no teatro à discussão da realidade da política nacional. Tudo isso, muito antes da queda e ruína do comunismo, hoje já comprovado como um - também - regime manipulativo das massas.
A partir da leitura e influência de Brecht e seu ponto de vista sobre a relação entre política e cultura, arte e revolução, e entre música e teatro, essa geração de autores dramaturgos, acreditando nesse conceito, simplesmente mudou a forma brasileira de se fazer teatro sem os academicismos ou imperialismos de uma dramaturgia convencional. Porém, na época em que escreveu Black-tie, Guarnieri não conhecia o teatro épico de Bertold Brecht. Como algo novíssimo na ocasião, o dramaturgo alemão era quase desconhecido entre nós, salvo alguns críticos mais antenados e duas apresentações de grupos amadores. Entre os anos 60 e 70, também emergiram para a vida política e cultural novas gerações de estudantes e de trabalhadores, gente jovem, gente simples, gente que reformatou o pensamento vigente e fez com que o teatro desempenha-se um papel tão importante quanto a música e o cinema nacional. Dessa forma, o público era convidado a compreender, interagir e ate mesmo a protagonizar a nossa história brasileira. Esse momento criativo e libertario só foi interrompido à força de armas, pela ditadura militar, como já vimos no artigo anterior.
Seu trabalho em particular introduziu nova perspectiva temática com a peça Eles não usam black-tie (1958), levando aos palco conflitos modernos e urbanos em seus problemas sociais originados pela era industrial, a luta pela sobrevivencia no emprego e por melhores salários. O famoso texto retratou o conflito de gerações entre duas pessoas de uma mesma família do ABC paulista (zona industrial): um jovem operário e seu pai, líder sindical. Embora, na convencional teoria de dramaturgia teatral nao se enquadre essa abordagem, pois segundo Peter Szondi - que é categórico em afirmar - vemos que: "o drama social é de natureza épica e por isso mesmo uma contradição em si mesma." Aqui, novamente Guarnieri quebrou também outra regra essencial, presente nos manuais do "bom drama": ao inves de trazer personagens "superiores" como protagonistas, ele se utilize de gente humilde, trabalhadores comuns, para conduzir sua história. Mesmo as mais simples metáforas foram pinçadas nos mais básicos valores de nossa cultura popular, como por exemplo, na metáfora do amor, o feijão - prato massivo na America do Sul - teria um "coração de mãe". Aqui no caso, faz sentido na cena final de Eles Não Usam Black-Tie, que o casal interpretado por Gianfrancesco Guarnieri e Fernanda Montenegro celebrem seu amor - e cumplicidade - de anos de vida em comum, reconfortando-se de suas dores e frustações, no ato de catar feijão juntos na cozinha. Típica leitura/imagem do cotidiano de um casal brasileiro de baixa ou media classe que batalha pela sobrevivência, e como diz o poeta Chico Buarque, "poe mais agua no feijão" pra mais um comer.
Sua segunda peça, logo a seguir, Gimba, Presidente dos Valentes (1959), trata da história de um bandido de morro, na época tema irreverente e pouco abordado. Hoje vemos em filmes como Cidade de Deus e Carandiru as mesmas abordagens ainda sendo consideradas inovadoras. Infelizmente podemos perceber que os problemas sociais é que são os mesmos - velhos - de sempre. Ainda mais agravados. Vemos aqui o que Delmiro Gonçalves escreveu como crítica na Folha da Manhã da época: "Eles não usam black-tie, ficará, por certo, na história de nosso teatro, como a primeira peça séria escrita sobre as favelas cariocas, pondo de lado seu aspecto exótico e pitoresco. Não é uma favela para turistas que o autor nos mostra, mas um conglomerado humano que luta, que sofre, que vive e que tem uma consciência clara de sua função social."
Sua terceira peça, A semente (1961), retoma a problemática do proletariado, suas lutas políticas,seus sonhos e seu lado humano em personagens de incrível densidade psicológica. Enfoca a organização do Partido Comunista e a atuação de uma de suas células num portrait do momento da greve operária. O Filho do Cão, seu próximo texto (1963), é ambientado no nordeste na busca de fundir os mitos regionais com a ultra exposição realista da miséria em que vive essa população; texto que sofre danos e reparos por parte da aguda crítica. Em seguida, o autor desenvolveu em parceria com Augusto Boal o texto Arena conta Zumbi (1965), onde aplicou o famoso método brechtiano do distanciamento. Guarnieri, Augusto Boal e Edu Lobo optaram pelo modelo dramático de um "seminário histórico", que possibilitou a inclusão do narrador contemporâneo que interliga e comenta os episódios representados, estabelecendo outro patamar - até então inovador - de comunicação com a platéia. Essas técnicas, de cunho brechtiano, dão forma ao chamado sistema coringa. Dois anos depois, renovando o mesmo texto, surge Arena Conta Tiradentes, um aperfeiçoamento dessa mesma proposta e sistema que revela o protomártir da Independência como herói. Esses dois sucessos na época promovem o Teatro de Arena à condição de liderança junto ao teatro de resistência.
Mas nada dura pra sempre e após se desligar do grupo do Arena, Guarnieri aceita a encomenda de sua amiga e atriz, Fernanda Montenegro e escreve Marta Saré, uma saga musicada sobre a vida de uma prostituta nordestina que faz fama e fortuna no Rio de Janeiro (1969).
Em 1971, ele escreve um novo musical, Castro Alves Pede Passagem, ambientado inusitadamente num programa de televisão, com passagens interessantes da vida do famoso poeta romântico, em um bem realizado jogo metalinguístico. Sob sua direção, essa montagem marcou o início da sua colaboração com a Companhia Othon Bastos que conseqüentemente encenou muitos outros textos dele, incluindo Ponto de partida (1976), escrito vinte anos depois de seu mais famoso e aclamado texto teatral que iniciou sua carreira: Black-Tie. Todos estes textos revelam pela temática e suas proposições estéticas, vínculos estreitos com o realismo socialista.
Em 198, Eles não usam black-tie foi cinematografado por Leon Hirszman, com o próprio Guarnieri atuando num dos papéis principais - Otávio -, ao lado da estrela Lelia Abramo (atriz falecida em abril de 2004). O filme saiu premiado do Festival de Veneza, levando o Leão de Ouro em 1981.
Como ator teatral, Guarnieri alcancou muito sucesso e bons prêmios, brilhando, no Teatro de Arena, na composição de alguns personagens expressivos, como em Ratos e Homens, de John Steinbeck, em 1957; ou como o jovem Tião, de seu próprio texto Eles Não usam Black-Tie , 1958; O Filho do Cão, em 1961; A Mandrágora, de Maquiavel; Tartufo, de Molière; o Coringa de Arena Conta Tiradentes, 1967; o protagonista de Arturo Ui , de Brecht, em 1971. Também atuando como ator de cinema e televisão, obteve a oportunidade de grandes interpretações, em papéis aplaudidos e reconhecidos pelo grande público. Por sua sensível interpretação dramática como Otávio, o pai de Eles Não Usam Black-Tie, na versão cinematográfica de Leon Hirzman, em 1982, ele também recebeu inúmeros prêmios nacionais.
Vemos aqui uma análise sobre o autor, nas palavras do crítico Décio de Almeida Prado: "Guarnieri escreveu com facilidade e fecundidade tanto na década de 60 quanto na de 70, antes e depois de 1964, porque tinha durante esse tempo todo um claro projeto político em vista. Sabia a favor do que ou contra o que manifestar-se. (...) Se na qualidade de escritor engajado Guarnieri nunca se recusou a tomar partido, na de poeta dramático equilibrou sempre a sua obra entre dois pólos: a sedutora simplicidade das grandes explicações históricas - no caso, o marxismo - e a extrema complexidade do mundo real e dos homens. Daí o paradoxo (comum a toda boa literatura) desse teatro: não é preciso partir de suas premissas ideológicas para admirá-lo enquanto lição humana e realização estética."
Em homenagem a Lelia Abramo, sua amiga e co-star do espetáculo mais aclamado de sua carreira, ele escreveu na ocasião de sua morte:
Lélia Abramo foi minha estrela
Artigo publicado no jornal Folha de S.Paulo em 12/4/04 por Gianfrancesco Guarnieri
Pela manhã, recebi a notícia. Vanya, minha
mulher, contou-me da forma mais simples,
procurando abrandar o choque: Lélia Abramo
morreu. Nós sempre a admiramos e respeitamos muito.
Naquele instante percebi com toda a clareza o
quanto Lélia representou, representa e sempre
representará para mim. O ponto de referência
sólido, absolutamente confiável, apontando o rumo
exato de uma vida elaborada sobre princípios
inegociáveis. Considero meu encontro com Lélia
Abramo um desses momentos decisivos de uma
vida.
Ao retornar de uma excursão com os
companheiros do Teatro de Arena, fomos assistir
ao espetáculo que ficara em cartaz em São Paulo,
aguardando a nossa volta. "A Mulher do Outro" era
o título da peça. Embora tenha gostado do
espetáculo, o que me impressionou mesmo foi a
interpretação de uma atriz, em um pequeno papel,
que roubava a cena.
Mais tarde, quando o diretor José Renato
escolheu minha peça "Eles Não Usam Black-Tie"
como a próxima encenação do Arena, fiquei
contentíssimo e curioso com a sugestão dele de
dar dois dos principais papéis a um grande ator -
Eugênio Kusnet - e a uma atriz ainda desconhecida
do grande público - Lélia Abramo.
Qualquer dúvida que pudéssemos ter sobre o
acerto na distribuição dos papéis foi reparada logo
nos primeiros ensaios, tal a adequação de ambos
aos personagens. Lélia foi uma Romana magistral e
um dos motivos que fizeram com que a peça
alcançasse o êxito que alcançou.
Sou grato a Lélia não só pela Romana que
interpretou com um enorme conhecimento de
vida, profundidade e amor, mas por sua postura
diante da realidade, pelo seu espírito de luta, sua
sede de justiça.
Juntos enfrentamos momentos críticos de
nossas vidas, sem esmorecer. Lélia, batalhadora
até os últimos instantes. Cheia de afeto até nos
momentos de raiva e aparente ceticismo. Lélia,
que sofreu perseguições por sua postura à frente
do Sindicato de Atores. Lélia, que lutou junto ao
movimento operário. Que presidiu assembléias da
classe teatral nos momentos mais duros da
repressão. Lélia, uma grande, enorme atriz que
amava o teatro, a arte e as coisas mais sublimes.
Às vezes carrancuda, soturna, mas esplêndida em
toda sua pujança. Lélia, exemplo para as mulheres
lutadoras que descobrem seu papel na sociedade.
Lélia, minha estrela!
Um pouco sobre o Teatro de Arena: fundado em 1953, o grupo foi o pioneiro na América do Sul a usar a cena circular envolvida pelo público. Sem a necessidade ou o uso de cenários, atuando em locais improvisados, podiam eliminar muitas despesas, trabalhavam sem a necessidade de grandes patrocinadores, o que lhes dava bastante independência política. O Arena, sob o comando de Augusto Boal, empenhou-se na procura de um estilo brasileiro próprio de encenação. Em 1958, o primeiro grande sucesso veio com a montagem de Eles não Usam Black-Tie, de Gianfrancesco Guarnieri. A partir daí, buscou sempre trabalhar textos ligados a aspectos da realidade do país.