Coluna de 28/5
(próxima coluna: 14/6)
Oduvaldo Vianna Filho,
o mito-existencialista dos anos 70
Oduvaldo Vianna Filho, o Vianinha - assim chamado por seus amigos e colegas para se diferenciar do pai - nasceu em 1936, filho do também escritor e dramaturgo Oduvaldo Vianna. Ele foi ator; dramaturgo de teatro, cinema e televisão; compositor-letrista e militante ativista de esquerda, filiado ao PCB. Ao lado de Gianfrancesco Guarnieri e Augusto Boal foi um dos principais nomes do Teatro de Arena, em São Paulo, no final da década de 1950. Foi autor de peças políticas de crítica a sociedade de consumo em si e à realidade brasileira. Faleceu precocemente aos 38 anos em 16 de julho de 1974. Uma grande perda para todos nós. Quatro anos após Jimmy Hendrix e Jannis Joplin, ícones da expressão da liberdade individual dessa geração. Embora jovem, deixou uma obra de grande significancia para os nossos palcos. E trabalhou até o último minuto, no seu leito de morte. Considerado um teatrólogo de grande teor político e artístico na ocasião de sua morte, seu trabalho de dramaturgia é visto, hoje em dia, como um dos mais sólidos da sua geração dentro da cena brasileira. Seu pai era dentista de formação, mas dedicou-se ao teatro e ao cinema toda a sua vida:via "a dramaturgia em si" como um todo. Mais tarde, envolveu-se com uma tal nova tecnologia: o rádio. Dirigiu três filmes, de 1936 a 1949 e antes disso estudou cinema nos Estados Unidos. E foi a partir daí que ele buscou inserir recursos cinematográficos tanto na encenação como no texto. Uma das figuras principais de sua época, situava-se entre os comediógrafos do pós-guerra, foi um dos fundadores da SBAT - Sociedade Brasileira de Autores Teatrais - e organizou com Viriato Correa, Nicola Vigiani e Abigail Maia a companhia que realizou o movimento Trianon (no espaço de mesmo nome) em São Paulo, na qual só autores brasileiros eram representados. Foi ele também que como diretor realizou a primeira excursão de uma companhia brasileira de comédia para o Exterior, visitando a região do Prata e fazendo temporada de sucesso em Buenos Aires. Ou seja, desde cedo,Vianinha teve aonde se inspirar - e muito bem - dentro de casa. E para ele, ser pioneiro em algo, era um valor a se atingir sem grandes cerimônias.
Sua estréia como autor encenado ocorreu em 1959, no então fervilhante Teatro de Arena (ver artigo sobre Guarniere) em São Paulo, com Chapetuba Futebol Clube. Ali foi reconhecido com louvor perante seus colegas militantes de esquerda. Entre seus méritos, se destacaram a sua sensibilidade e a delicadeza na abordagem, sua envergadura e a tessitura psicológica de seus personagens,alem do diálogo de bom nível literário e ideológico na análise dos problemas sociais vigentes da época. Jovem e esfuziante brilhou rapido. Vianinha havia mudado para São Paulo anos antes, para estudar arquitetura, mas abandonou a faculdade para dedicar-se definitivamente ao teatro. Em 1956 organizou um curso de teatro com Guarniere e no ano seguinte fez um seminário de dramaturgia com Augusto Boal. Algo lhe pulsava mais forte. E foi a partir daí que escrevou sua primeira peça, originando sua estréia no Arena. Vianinha, virou figura impar e colega teatral, parceiro de texto e composição, de vários artistas que ainda se encontram em plena atividade no país até hoje. Entre eles podemos citar Edu Lobo, Ferreira Gullar, Zé Ketti,Carlos Lyra, Armando Costa, Gianfrancisco Guarniere e muitos outros nomes que o acompanharam entre os vinte e três textos que deixou e as experiências que obteve ao escrever para os palcos e televisão nacional. Já no Rio de Janeiro o grupo Opinião entra em plena atividade adaptando shows musicais - MPB - para um trabalho teatral de caráter essencialmente político. Escreveu com Paulo Pontes e Armando Costa o roteiro para o show "Opinião", que estreou em fins de 1964, no Rio de Janeiro, com Nara Leão, Zé Kéti e João do Vale. O espetáculo iria tornar-se um marco da resistência cultural à ditadura militar e foi o responsável pelo lançamento da cantora Maria Bethânia, vinda da Bahia para substituir Nara Leão, e que se consagraria nesse trabalho, interpretando "Carcará", de João do Vale. Em 1965, Vianinha participaria como ator naquele teatro, ao lado de Paulo Autran, Odete Lara e Nara Leão, de "Liberdade, Liberdade", escrito por Millôr Fernandes e Flávio Rangel e dirigido por este último. Sua pega Se Correr o Bicho Pega, Se Ficar o Bicho Come, em parceria com Ferreira Gullar em 1966, conquistou o Prêmio Molière. Ativista de carteirinha, desenvolve uma densidade histórica e circunstancial em seu trabalho artístico com um fio político condutor permanentemente presente na subjetividade de suas abordagens. Seu enfretamento contra a ditadura militar foi frontal, na raça e no peito angariando obviamente muitos dramas reais com a censura por conta de sua trajetória intelectual ter sido deliberadamente de esquerda. Percebemos que através da figura do anti-herói, ele desenrola conflitos existenciais, sua marca ao longo dos anos 70 de forma sucessiva e afirmativa, onde filosofa em tom quase profético que a "impiedosa engrenagem acaba por sufocar o indivíduo". Se estivesse vivo hoje, talvez com isso pudesse justificar os atos de insanidade do governo do PT no qual nos deparamos e infelizmente nos decepcionamos. Podemos dizer que vemos presente o mesmo "fenômeno" em quatro de seus outros trabalhos: A Longa Noite de Cristal; Moço em Estado de Sítio (escrita em 1965 e encenada em 1981 por Aderbal Freire Filho); Corpo a Corpo que depois virou o texto Mão na Luva (de 1966, somente encenada em 1986, também sob a direção de Aderbal Freire Filho, com Marco Naninni no elenco); todas encenadas ao público apos sua morte, por questões de censura. Papa Highirte escrita em 1968, relata ocaso de um ditador latino-americano, no exílio, amargando suas obsessões e seus fantasmas do passado. Por mais que ele se veja como um bom homem, sua ação ou omissão causou um injusto aglomerado de vítimas. O texto se tece e constrói em torno desse ajuste de contas fatal, quando o personagem cogita o regresso ao seu País. Esse texto, assim como Rasga Coração, foram duas obras-primas de Vianinha, ambas premiadas em concursos promovidos na época, pelo Serviço Nacional de Teatro.
Vale lembrar que Vianinha também escreveu para cinema e televisão, nesse último caso a TV Tupi e a Rede Globo. Foi dele o roteiro do filme O Casal, dirigido por Daniel Filho, baseado no script que escreveu para TV, Enquanto a cegonha não vem, em 1974. Ele também participou dos seguintes filmes: Amor para três, em 1960, dirigido por Carlos H. Christensen e Os Mendigos, em 1963 dirigido por Flávio Migliaccio. No início dos anos 60, foi ator no episódio Escola de Samba Alegria de Viver, dirigido por Carlos Diegues e integrou, em 1962, um dos clássicos do CPC da UNE, o filme Cinco Vezes Favela. Ele buscou se identificar a fundo com as temáticas abordadas, desde o perfil das personagens que construía até as particularidades das locações, de modo a desenvolver uma linguagem que procurou revelar os lugares-comuns e impasses vivenciados pela classe média, propondo dessa forma, a politização do cotidiano. Na segunda metade da década de sessenta e no inicio da década seguinte, a tônica de seu trabalho televisivo, foi a de refletir as questões mais urgentes da nossa sociedade e de problematizar as vivências das pessoas comuns através dessa mesma dramaturgia. Sob esse aspecto, a teledramaturgia seria uma alternativa para driblar a censura que cerceava suas atividades teatrais e assim conseguir abrir novas possibilidades de popularização para sua arte da palavra e retratação da existência moderna e humana. Sua postura assumida de trabalhar para a TV, causou reservas e preconceitos por parte de seus colegas do PCB, partido o qual manteve-se filiado desde os tempos de estudante. Mas por coincidência ou não, um dos seus maiores (e mais duradouros) êxitos para teledramaturgia foi a comédia "A Grande Família", perfazendo uma crítica à vida da classe média brasileira e seu cotidiano surrealista e cômico, sendo um dos programas de televisão que Vianinha escreveu ao lado de Paulo Pontes e Armando Costa, na década de 1970, e que voltou a ser apresentada pela TV Globo, com muito sucesso de público em sua nova versão, em 2001.
Em 1972, ele escreveu a adaptação da tragédia grega "Medéia", de Eurípedes, interpretada por Fernanda Montenegro. A idéia serviria de base para que depois Chico Buarque e Paulo Pontes escrevessem, em 1975, "Gota d’Água", que foi grande sucesso de público e crítica, encenada magistralmente por Bibi Ferreira. Também em 1972 Antunes Filho realizou a montagem de seu texto: Em Família, com Paulo Autran, Carmen Silva, Mauro Mendonça, entre outros no elenco, em São Paulo, no Teatro Itália. Tratando o que vemos ainda hoje nos tele-jornais exibido como matérias chocantes, sobre pessoas idosas abandonadas por seus parentes, largadas em asilos com péssimas condições de acomodação, higiene, alimentação, enfim de digno tratamento. O assunto, já tratado há décadas, neste texto por Vianinha - revela o drama de um casal de velhos amorosos colocados pelos filhos em asilos diferentes - para que assim dessem menos despesas e também gerassem menos responsabilidades.
Finalmente em 1979, nossa acirrada censura deixa de ser prévia e passa a ter um caráter apenas classificatório. Com isso, liberaram o seu texto após cinco anos de sua morte e assim foi possivel encenar no Rio de Janeiro a peça Rasga Coração, premiada anteriormente no SNT e, em seguida, proibida. Ela foi seu último trabalho, cujo o final o dramaturgo ditou do seu leito de morte, como em sussurro de uma confissão política e espiritual. Esta realiza um panorama social do Brasil nas quatro décadas anteriores, sob a visão e perspectiva de um militante de esquerda anônimo. A esperança de construção de um país justo, ideal, promissor, porém sempre frustrado apos sucessivos golpes das manobras de direita. No mesmo ano, o Prêmio Moliere foi entregue para os melhores do teatro e concedeu pela primeira vez postumamente a um autor, em homenagem especial ao sr. Oduvaldo Vianna Filho, os respectivos prêmios pelas peças "Rasga Coração" e " Papa Higuirte". Em 1981, "Moço em Estado de Sítio" encenada por Aderbal Freire Filho, deu a Vianinha o segundo Molière póstumo. O autor nunca assistiu esses seus textos em cena. E muito menos pode ter a honra de receber os prêmios. Seu trabalho consistiu em mais do que uma simples escrita, uma arquitetura da palavra. Sem a esperança de glórias. Mas na busca da glória de fazer seu país acordar para se ver e se fazer melhor e mais justo. Irreverente e letrado. Apaixonado e produtivo. Não perdoou as mazelas de um sistema social injusto e pôs a boca no trombone. Influenciou vários artistas e sua atitude continua como um ícone na mente de muitos até hoje.
Vianinha viabilizou o drama nos lares, nos palcos, nas músicas e nas avenidas. Foi resistente e flexível. Foi autor e foi gente.
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Veja o texto sobre ele publicado no O Estado de São Paulo
Um artista solidário e imutável em sua essência
Entre seus companheiros foi o que tornou mais explícitas as correções de percurso.
Mariangela Alves de Lima
Especial para O Estado de São PauloOs franceses usam a expressão "homem de teatro" para designar os artistas que, além de uma atividade específica, enveredam pela teoria e para o território da produção da arte cênica. Tivemos muitos com esse perfil, a começar pela impávida figura do nosso primeiro grande ator, João Caetano dos Santos, que ainda na primeira metade do século dezenove se ocupava em cavar alicerces para um teatro nacional. Mas não foi só do nacional que se ocupou Oduvaldo Vianna Filho. No período em que viveu (1936-1974) a perspectiva do "homem de teatro" alargou-se consideravelmente. Além de ocupar a cena, os homens da sua geração desenharam uma proposta político-estética, pensaram a cultura e a transformação concreta da existência como uma unidade indissociável e acreditaram que o que estava no palco tinha força para atuar sobre o que estava fora dele.
Para essa geração a arte significou um instrumento no percurso até a felicidade coletiva e pode-se dizer que a esperança dessa redenção social não está inteiramente ausente das obras mais críticas e mais amargas do período. Vianninha, apelido carinhoso que o distinguia do pai dramaturgo, expressou-se com grandiloqüência em um os seus textos militantes: "o homem será Deus, do seu verdadeiro tamanho, com a cabeça nos céus, com os séculos nos olhos. E os deuses estarão nas ruas".
Por não ter sido um homem isolado, mas um artista solidário e representativo da sua época, o percurso intelectual de Vianinha fez dele assunto privilegiado para quem quer reconstituir a história recente do país, sobretudo o período de enfrentamento direto entre a ditadura militar e a esquerda. De mais a mais a análise de sua dramaturgia teatral e televisiva proporciona ao ensaísmo - nesse sentido é um autor único -a oportunidade de distinguir estratégias para atuar em diferentes situações conjunturais e para diferentes públicos. Entre seus companheiros é o dramaturgo que tornou mais explícitas as correções de percurso, no domínio da linguagem, necessárias para atingir um objeto que, na essência, se manteve imutável ao longo de sua vida artística.
Entre as vinte e três peças que escreveu (algumas em colaboração) há textos de circunstância, destinados a um público idealmente constituído por estudantes e operários e cujo tema é de oportunidade histórica. Nas outras peças o protagonismo é reservado à hesitante classe média que, ontem como hoje, pode ser cooptada por qualquer uma das frentes mais radicalizadas do conflito social. Nas peças militantes há uma riquíssima variação tática que vai da ironia à tragédia, do documento à farsa. Quando elege como tema a sua própria classe, a dos homens esclarecidos para quem a aliança com outra classe é uma opção de conseqüências éticas, Vianinha desenha subjetividades densas no pensamento e nas emoções, figuras que se comunicam de modo complexo com o universo concreto da história.
Lembramo-nos mais das personagens do que das situações em que o autor as coloca - estas por vezes apressadas e funcionais - mas nas personagens há um conteúdo perene convidando a uma constante reapropriação cênica. No entanto o fato de que sua obra tenha permanecido um desafiante objeto crítico quase um quarto de século após a sua morte sinaliza algo mais do que a transcendência histórica. Conheço cinco livros publicados sobre Oduvaldo Vianna filho, e vários ensaios esparsos e em todos eles está presente a admiração pela consonância entre arte e política. Através dele há quem queira como ele, "conhecer inteiramente o real e modificá-lo".
O Estado de São Paulo
Mariangela Alves de Lima
Caderno 2
Sábado, 24 de junho de 1999.
Página D-3