Coluna de 14/7
(próxima coluna: 28/7)
Jorge Andrade, um colecionador de ossos
Na coluna de hoje, voltaremos um pouco no tempo para falar de um dramaturgo que realizou um consistente trabalho teatral nos anos 50-60, tornando-se assim um dos maiores autores já encenados nos palcos nacionais no que diz respeito as questões sociais, de corrupção e de política brasileiras. Do urbano ao rural, do aristocrata ao proletário, da Independência Mineira ao sentimentalismo dos bandeirantes, sua verve pincelou muitos portraits tupiniquins. Ele também foi bastante envolvido com a teledramaturgia de sua época, abrindo novos horizontes de formato, temática e linguagem para a encenação eletrônica de qualidade nos anos 70. Trata-se do paulista da cidade de Barretos conhecido como Jorge Andrade, sendo de batismo Aluizio Jorge Andrade Franco, nascido a 21 de maio de 1922.
Seu mais reconhecido e renomado sucesso “Os Ossos do Barão” (1963) , continua presente ate hoje na lembrança de um grande público, tanto de espectadores, de estudiosos e artistas como da critica especializada. Este texto sacudiu os alicerces de uma sólida ideologia burguesa, de uma aristocracia alienada que foi obrigada a encarar os conflitos de uma classe urbana de emergentes em plena ascensão, rumos aos luxos do novo bourgeois. Tudo isso, durante uma época onde a qualidade dos textos e montagens era a marca registrada principal do Teatro Brasileiro de Comedia (TBC – ver artigo relacionado). Este mesmo texto foi adaptado posteriormente em 1973 vindo a ser sua estréia nas telenovelas da TV Globo. Esta adaptação compôs-se em especial de duas pecas de seu ciclo dramático: “A Escada” e “Os Ossos do Barão” fundidos em um só roteiro final.
Sua engenharia da palavra construiu o que alguns críticos já consideraram como “a mais séria e profunda meditação que se fez, em nosso teatro, sobre a História do Brasil” (Sabato Magaldi). Podemos dizer que vemos na obra dele, que o conflito de indivíduos ante um meio social em desagregação e a decadência de seus valores morais sendo ou dos barões do café no interior de São Paulo ou das classes emergentes das grandes urbes foram analisados com profundidade no desenrolar de suas tramas na dramaturgia das peças e ao longo de sua carreira de escritor.
Originalmente estudante de direito em São Paulo, Jorge – assim como alguns de seus colegas de sua época - abandonou o curso e ingressou na Escola de Arte Dramática (EAD) na década de 50. A influência da crise econômica do café na dissolução da família paulista aparece como o tema central de sua estréia oficial como dramaturgo em O Telescópio (1954). Antes disso, ele escreveu no mesmo ano a peca “O Faqueiro de Prata”, porém ambas não haviam recebido ainda, a devida atenção. Foi a partir do ano seguinte que ele se impôs perante a crítica, com “A Moratória” (1955). Aqui, o tecido artesanal de seus textos foi finalmente entendido e apreciado pelo teor de suas preocupações sociais, assim como sua absoluta recusa de fáceis concessões ao sensacionalismo. Resumindo, “A moratória” revela a historia de uma família que, humilhada na grande cidade, nos tempos de outrora havia sido por demais poderosa e arrogante, quando abastados proprietários rurais. A trama foi construída embasada nas suas reminiscências infantis - a perda da fazenda de café de seu avô no Interior de São Paulo - em conseqüência da crise internacional de 1929, e ele assim desvendou compasadamente problemas e momentos decisivos tanto do passado como do presente de sua propria familia e biografia. Por merito reconhecido a este trabalho recebeu o premio Saci.
Um pouco depois, surgiram os textos das peças “ A Escada” (1961) e “ Senhora da Boca do Lixo” (1963), esta última foi proibida pela censura em 70 sob alegação de conteúdo forte com críticas ao clero e aos militares poderosos da época. O autor também discute o fanatismo, os preconceitos e a intolerância da população rural em Vereda da Salvação (1964), texto adaptado para o cinema e filmado pelo diretor Anselmo Duarte em 1965. Esta história é baseada em um fato real, passado em 1955, na cidade de Malacacheta, norte de Minas Gerais. Retrata um homem do campo oprimido e sem perspectivas, vendo na obsessão da fé religiosa a sua única saída para os seus problemas pessoais e financeiros. A ação ocorre no terceiro dia do jejum na semana das penitências, as vésperas da reunião com o líder do clero. Tomados pelo fervor da religião, os homens acabam cometendo várias atrocidades, porem sempre em nome da fé. O texto reflete temas como distribuição de terras, proliferação de seitas, fanatismos e guerras santas, assuntos ainda tão presentes na atualidade brasileira. Nesta década, ele alcança maior sucesso de público, não somente pela qualidade destes novos textos, mas como também por novas e bem dirigidas encenações de “A Moratória”.
No texto “Pedreira das Almas”, Jorge Andrade trabalhou mais a memória grupal ao tratar da derrota dos liberais ante as forças absolutistas, na Revolução de 1842. E em “As Confrarias”, passada em fins do século XVIII, data da Inconfidência Mineira, retratou a segregação a que foram submetidos os indivíduos não-bem-enquadrados; e finalmente em “O Sumidouro” , tratou - com uma breve inspiração em Brecht - do despontar do sentimento nativista e o conflito existente entre as partes ao se empenharem na descoberta das esmeraldas, (o grande negocio) que seriam remetidas posteriormente a Europa.
Já na década de 1970, Jorge recebeu o Prêmio Molière pela publicação do ciclo das peças “Marta, A árvore e O relógio”, conjunto de dez peças que se interligam. Neste mesmo período iniciou-se como teledramaturgo e alem de “Ossos do Barão ” (1973) escreveu as telenovelas “O Grito” (1975) - esta o tornou ainda mais polemico - “As Gaivotas” (1979), “Ninho da Serpente” (1982) e colaborou na década de 80 em outros títulos para as emissoras Bandeirantes e TV Cultura. Ainda em 70, obteve duas de suas obras censuradas: “Senhora da Boca do Lixo” (citada acima) e “Milagre da cela” que, dramatizou a repressão seguida ao golpe militar de 1964. Em 1978 publicou o romance autobiográfico “Labirinto”.
Autor valorizado por seu rigor ao lidar com a metalinguagem em complexa e apurada exigência artística; ele marcou por expressar nos palcos nacionais as transições socioeconômicas do Brasil - do ouro para o café e do café para a indústria – as opressões e fraquezas morais e religiosas assim como as conquistas bandeirantes.
Jorge Andrade morreu em conseqüência de um derrame cerebral em São Paulo (SP) em 13 de março de 1984, porem nos deixou uma herança intangível com a precisão de seus textos na descrição de cada personagem – e seus ambíguos contextos – que para a nossa dramaturgia ele um dia construiu.