Textos veiculados na lista "Amigos de Blocos" em
abril de 2002
A Santa da Praça
Infeliz vai sentida, pois mal sabe o papel que desempenha na
vida: dar prazer e guarida e do amor ser sossego de quem sempre
foi ferida. É tampão estancando o sangue, sob medida!
Ela do suor é o tempero e da flor nunca teve um afago,
ao receber outro corpo que exala um forte cheiro e do prazer recebe
apenas um naco.
Solitária, sorri adormecida e pela paga oferece a gruta
santa para a forte cuspida. É Maria rasgada que vende milagres
em troca do alimento para pobres almas abandonadas.
É Santa Maria! É Santa da Putaria! É a Irene
de Manuel Bandeira entrando no céu: Licença,
meu branco! E São Pedro Bonachão: Entra Irene.
Você não precisa pedir licença.
Outro dia, o programa Provocações da
TV Cultura de São Paulo, apresentado por Antônio
Abujamra, entrevistou a santa da praça.
A prostituta que vende seu corpo por 30 dinheiros e com as férias
do dia compra alimentos que matam a fome dos mendigos que perambulam
pela praça do povo.
Uma linda mulher, chamada de mãe por homens sofridos e
de puta por homens hipócritas. É a filha do pecado!
Na noite, é a amante do tarado!
Está escrito, é a mulher que se sentará
aos pés de Cristo e untará seu corpo com o presente
dos Reis Magos.
O sorriso daquela mulher, ao ter seu cabelo penteado pelo cabeleireiro
de profissão, emoldurou o milagre dos pães em multiplicação.
É a doação do corpo em oração.
É a mãe mostrando à humanidade que a santidade
de Maria está nos olhos de todas as mulheres que alimentam
seus filhos incertos perdidos pelo salão.
Ó Maria, Santa da Putaria, em sua homenagem são
os cânticos de amor que elevam súplicas abençoadas
pelos sonhos de ocasião, pois seus feitiços são
divinos aos olhos da criação.
Vai mulher, carrega em seu ventre o desejo da sedução
carnal. Permita-me Maria, deixa de lado seus filhos e
vai levar amor aos pobres, cunhados como solitários da
capital.
Erguem edifícios e moram em barracos jogados nos quintais
da maldição. São espectros de homens chamados
peões de construção. Nada valem, custam menos
que um tostão.
Vai Maria, leva seu corpo de prazer em prato de marmita sobre
um ovo frito estalado no fundo falso da alimentação.
Desculpe-me, mas talvez seja trocada por um pedaço de marmelada
e um cafezinho requentado em fogo de solidão.
É a vida, Maria! Mas não se preocupe, no quinto
dia a lei garante uma clientela que saberá gastar toda
a promessa feita à família que a espera no Nordeste
com uma carta de alforria.
É a saga da miséria cantada em prosa e verso pela
administração da fome em 500 anos de fantasia. Nunca
foi ordem do dia!
O salário se perderá entre suas pernas. Agora é
Maria bandida, aquela que rouba a liberdade dos filhos dos coronéis
que se deitaram nas camas das escravas da ignorância dizendo
que queriam somente seu bem estar.
É a safadeza do poder sobre a pobreza que me faz lutar!
Bendito Zumbi! Ainda será herói num país
que chora pela liberdade que existiu um dia aqui. Será?
Ó Maria, chamada de virgem um dia, leva seus encantos
a todos os santos que constroem essa nação. São
Antônios. São Pedros. São Paulos.
São brasileiros sufragando votos em eleição.
São vítimas de políticos que trazem a maldade
no coração.
Talvez um dia, sentiremos orgulho em saber que seu corpo matou
a fome dos filhos esquecidos em bancos de estação.
Nem há mais trem, Maria!
Foi-se a luz. Ficou a escuridão! Perdeu-se o encanto do
bonde que desapareceu por entre buzinas de lotação.
Morreu o oxigênio apunhalado pelas partículas de
poluição.
Chegou o fim, Maria. Acabou a bonança. Ventos do norte
precedem o temporal. Tempos tristes chorarão sua ausência.
Os mendigos, num último adeus beijam sua fronte, mulher
que viveu cantando ao horizonte.
Adeus Maria! Bendita entre as mulheres! Foi um prazer saber de
sua existência. Aos céus rogo um lugar para seus
encantos. Tantos! Entre todos os santos!
Douglas Mondo
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