Textos veiculados na lista "Amigos de Blocos" em  fevereiro de 2002

A justiça de meu avô

Muitas vezes a vida nos leva a recordações que nos lembram aspectos do momento presente. Não que esse episódio se enquadre em nada que estamos vendo no mundo atual, mas não deixa de ser uma digressão do mesmo assunto: Violência

Um dos momentos que gostava de viver quando era pequena e no começo da minha adolescência eram aqueles passados na casa de meus avós. Lá encontrava um mundo propício a sonhos e prazeres porque a animação, visitas e pessoas que freqüentavam eram realmente interessantes, embora bem mais velhas.

Meu avô era advogado, jornalista, político e escritor e por isso uma roda agradável se formava facilitando as conversas saltitantes e curiosas. Gostava de ficar por lá ouvindo as histórias diferentes e eletrizantes que o escritor narrava enquanto o diálogo se improvisava. Líder por excelência fazia do ambiente e dos almoços em sua casa, sempre uma fonte de prazer inominável. E também quando, sem as visitas, se dispunha a conversar comigo, eu me sentia um adulto podendo emitir e ouvir opiniões versáteis e agradáveis.

Sabia de alguma biografia de meu avô, que me surpreendia aqui e ali entre uma brincadeira e outra, e ficava parada ouvindo, até que um adulto me convidada a ir para fora brincar com as outras crianças.

Fiquei muito impressionada quando um dia pude perceber que o pai de meu avô que era político havia sido assassinado em disputas políticas e rivalidades de partidos. Perguntava a um e outro para que pudesse juntar pedaços da história, e ele, embora tendo muito orgulho de minha mania de escrever, dessa vez não me satisfez integralmente. Disse-me que um dia eu saberia.. E teria discernimento para compreender. Ficou realmente muito zangado quando percebeu que eu ouvira algo a respeito.

Eu já tinha pelo menos onze anos quando percebi uma discussão entre ele, minha mãe e minha tia e o modo como falava, usando uma autoridade que dificilmente gostaria de manter. Mas dessa vez parece que estava firme e extremamente severo.

Parei quando vi que eles discutiam, muito preocupada porque jamais havia visto qualquer tipo de discussão naquele ambiente. Se havia, tinha estado sempre muito longe do ouvidos atentos das crianças que freqüentavam a casa, justamente seus netos.

E surpresa e atônita, ouvi meu avô falando:

— Ele virá. A casa é minha e não abro mão disso.

Minha tia parecia ainda mais obcecada em contestar meu avô, porque seu rosto tão bonito estava amarelado de susto e mágoa.

— Papai, como pode imaginar em trazer para essa casa o assassino de seu pai?

Dessa vez quem levou susto fui eu, e na minha concepção não tinha entendido o que ela dizia, e parecia que, tão sensata sempre, dessa vez não estava em seu juízo normal.

Meu avô acrescentava:

— Virá sim, ele não tem culpa dos erros do pai. Claro, conheci-o casualmente e conversando entendi de quem se tratava. Não estou feliz que tenha sabido só depois quem era ele. Entretanto pertence ao mesmo grupo de políticos aliados. E não vou culpá-lo por um erro que não cometeu.

Fiquei parada ali, sem que minha percepção pudesse captar imediatamente o que ouvira. O choque fora grande demais.

Sabia o quanto o advogado era diferente de todo mundo que eu conhecera na minha vida, surpreendente mesmo, e por isso o admirava tanto. Mas aquelas palavras me abateram.

Os três continuavam a discussão, mas meu pai entrando resolveu intervir e pedir à minha mãe que visse o estado do pai. Foi aí que meu avô percebeu que eu estava ali. Nada falou, apenas chegando até perto de mim abraçou-me e pediu-me que sentasse ao seu lado.

E enquanto o silêncio começou a imperar, meu rosto assustado preocupou-o.

Contou-me então que ele tinha quatorze anos quando seu pai morrera e fora muito difícil encarar uma realidade tão violenta. Não lhe pedi que entrasse em detalhes e nem ele o fez. Explicou-me apenas que conhecera sem saber o filho desse homem, e que a justiça deveria prevalecer. Ninguém podia culpar alguém pelos atos de outros, mesmo que fosse o próprio pai. Esse era o senso de justiça que ele queria me incutir.

Minha mãe então falou:

— Não precisa culpar, apenas queremos que não seja amigo de tal pessoa.

— Não sou amigo, também não sou inimigo. Ele pertence à roda de políticos que convidei para almoçar amanhã e não vou excluí-lo.

Muitos anos se passaram desde então. Mas compreendi o que meu avô quis dizer. Compreendi e apoei do fundo do meu coração. Talvez o filho nem fosse nascido quando tudo aconteceu, não sei. Mas uma coisa era certa: Ele não tinha culpa.

Via meu avô extraordinariamente alto e forte, ombros largos e físico potente, inteligente, escritor consagrado, respeitado por quantos o conheciam, e nada tinha conseguido mudar a suavidade de sua alma.

Olhei para ele apreciando-o mais ainda, e perguntando como apesar da vida, dos sofrimentos, da severidade que às vezes ostentava, conseguia sentir aquela doçura que me fazia olhá-lo com tanto amor.

Vânia Moreira Diniz