Textos veiculados na lista "Amigos de Blocos" em
fevereiro de 2002
Amanhã vai ser outro dia
Caro poeta, você tinha razão, tem dias que a gente
se sente como quem partiu ou morreu.
Tive um pesadelo daqueles! Sonhei que um cabra-retirante tinha
batido aqui em uma cidade pertinho da minha, com mulher e seis
filhos pequenos a tiracolo.
Esfomeados e sem emprego, o sujeito subiu no topo do único
prédio existente na pequena cidade e encenou o suicídio
com um dos filhos no colo.
Foi um espetáculo! A televisão enviou sua melhor
repórter, a imprensa escrita retratou em letras garrafais
e os políticos de ocasião apareceram aos montes
com promessas humanas, fenomenais.
Dia seguinte nem uma linha no jornal. E o pobre casal com seis
filhos na rua da amargura procurando cova rasa para mostrar ao
mundo mais um trágico funeral.
E os políticos? Ah! Desapareceram todos. Nada mais natural.
Eis que o homem, mulher e seus rebentos num lance genial invadiram
um casebre caindo aos pedaços e se postaram como moradores
em residência fixa, tirando o ponto de fumo de algum marginal.
Nessa hora fui contratado, apareceu o advogado como "solucionador
de casos",
sem falsa modéstia, um bom profissional. Poeta e contador
de estórias, aquele do crédito final.
A cliente, gente séria, dona do casebre elaborou um boletim
de ocorrência junto à delegacia da cidade preservando
seu direito, já que a rudimentar construção
poderia cair na cabeça daqueles miseráveis.
E no dia combinado, acompanhado pela cliente, lá fui com
dois policiais conscientes e cheios de razão, com dor no
coração e tentando resolver da melhor maneira a
quixotesca situação.
Lá chegando fomos recebidos pela mulher e seus filhos,
que ficaram à margem da oficial destruição.
Era tão necessária que ao tocar numa ripa que escorava
uma parede, parte da casa veio ao chão. Lembrei-me de Saudosa
Maloca e todos passamos a apreciar a triste demolição.
Não contentes com o desfecho profissional, solicitamos
do Poder Público Municipal um cantinho para a família
morar, comida e um pouco de ilusão. Sem violão,
que canto triste é coisa de carcará que pega, mata
e come lá no fundo do sertão.
Conversamos com a assistente social, com o vice-prefeito, com
o secretário, e levamos um simples despacho no coração:
"Aqui não cabe vagabundo, isso é coisa de bêbado
sem profissão!"
Pedi ao promotor, ao juiz, ao santo de ocasião e todos
interferiram sem qualquer solução. E ele beijou
sua mulher como se fosse a última. E cada filho seu como
se fosse o único e se acabou no chão feito um pacote
tímido, feito verso do poeta da construção.
De repente, não mais que de repente, uma Kombi rasga a
avenida em plena acareação e um menino pálido
estende a mão num aceno trágico, a prefeitura resolvera
a questão.
Levou a mulher e seus filhos para São Paulo, a um passeio
sem volta, num aceno sem riso, como ferida social extirpada sem
anestesia a arrancar um dente de siso.
E o homem só ficou. Espetado ao chão. Sem mulher
nem filhos, como um pacote flácido morto na contramão.
E nesse instante acordei, soluçando que nem criança
que acabara de fazer xixi no colchão.
Era um sonho, apenas, a atravessar minha vida como um barco deslizando
pelo rio da amarga solidão.
Que felicidade! Que felicidade! Garçom, por favor, manda
um chopes e dois pastel. Que ninguém é de ferro!
Douglas Mondo
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