Textos veiculados na lista "Amigos de Blocos" em
janeiro de 2002
Crônica em estado Crônico ou pequeno depoimento
contra a violência
Eram 13 horas e trinta e seis minutos, a energia acabou, o sistema
de computação do CREA - RJ saiu do ar, nada mais
a fazer. Escapei para rua Buenos Aires, e percebo que o centro
da cidade parou, elevadores parados, sinais de trânsito
em pane, portas eletrônicas que não abrem, pessoas
presas nos escritórios, a Av. Rio Branco tomada por pessoas
sem rumo e direção, informações desencontradas,
hipóteses absurdas levantadas, caminhei em direção
ao prédio da Avenida Central, nas esquinas uma luta entre
pedestres e automóveis, alguém ao meu lado resume
bem o caos: - Não dá nem para atravessar a rua.
Os Bancos eletrônicos não funcionam, aliás,
todos os Bancos não funcionam, assim nenhuma notícia,
um cara ao lado comenta: - Logo hoje que eu ia pagar todas as
minhas dívidas, e fica rindo dele mesmo. Um outro na entrada
do prédio comenta: - Foi um ataque terrorista, imagino
e se realmente tiver acontecido, ninguém sabe o que houve,
subo pelas escadas rolantes, que não funcionam, é
claro, tento encontrar uma loja com produtos de informática
aberta, encontro, mas em total escuridão, compro os equipamentos
que preciso, a nota só amanhã, avisa a moça
do balcão, e lembro de um amigo que sempre dizia quando
alguma coisa não dava para ser resolvida: - Hoje só
amanhã.
A esta altura fico sabendo que em Copacabana também não
tem energia, a estação do metrô Carioca está
fechada, pequenos grupos se reúnem nas portarias dos prédios,
aprecem os primeiros policiais, lojas são fechadas com
medo de assaltos, os restaurantes com luz de velas, tento beber
um suco, mas é impossível conseguir, me arranjo
com um refresco de laranja com acerola, que estava pronto na refresqueira,
desisto de voltar ao CREA.
No caminho para o Castelo, a única coisa que funciona
é um grupo de música latina que toca seus instrumentos
ligados a uma bateria, são precavidos esses latinos. Procuro
encontrar o ônibus pra Engenho de Dentro, e penso a essa
altura, com certeza deve ter acontecido um apagão, é
a impressão que tenho, e agora me ocorre de pensar, quem
será o culpado? Um acidente poderia ter ocorrido? Hoje
o tempo melhorou, seria o calor, com o excesso de aparelhos de
ar condicionados ligados? Pode ser sabotagem? Ataque terrorista?
Invasão alienígena, tipo Orson Wells? Quem responderá?
Talvez a internet, mas como sem energia para os computadores?
Nós estamos dominados por máquinas, sem energia
tudo pára, o sistema financeiro, o trânsito, a vida
fica suspensa, e nós totalmente inertes, as empresas sem
produzir, Onde está o racionamento? E as recentes chuvas?
Será que isso tudo não poderia ser evitado? Será
que não podemos viver em segurança? Pois sim, talvez
agora a crônica fique mais coerente com o título;
porque tenho uma má notícia, não estamos
a salvos de nada, de levar um tiro, de pegar dengue, de ser atropelado,
de pagar impostos sem retorno, não estamos livre nem da
escuridão, e somos reféns de máquinas, que
necessitam de energia, toda nossa vida está dentro de máquinas,
nosso saldo bancário, nossa identidade, nossas necessidades
mais básicas. Quer nota fiscal senhor? Olha só amanhã.
É verdade hoje só amanhã.
Finalmente o ônibus. O rádio despeja as primeiras
notícias, aconteceu um apagão nas regiões
Sudeste, Sul e Centro - oeste, será verdade? O locutor
logo aconselha: - Evitem sair de casa, não saiam. Não
sei se fico mais tranqüilo, ou agora é que começo
a me preocupar, pode ser uma maneira mais amena de avisar que
o mundo está próximo do fim, talvez algum asteróide
destes com nome e número complicado esteja em rota de colisão
com a Terra, quem sabe? Mas o ônibus segue o caminho, e
todos os relógios da Presidente Vargas marcam: 13:36, ao
menos agora confirmamos que algo houve, e foi as 13:36, mas será
que estes relógios não poderiam funcionar com baterias
carregadas por energia solar, seria tão complicado assim,
não entendo porque dependem de energia elétrica,
acabam por colaborar no aumento de consumo.
A esta altura, me pergunto afinal o que toda essa história
tem a haver com o título da crônica, pequeno depoimento
contra a violência? Acho que tem total relação,
e explico, pode haver maior violência o fato de toda uma
região do país ficar as escuras? É o fiel
retrato dos tempos que vivemos, nunca se sabe o que pode acontecer,
o cidadão acorda Prefeito de uma cidade do grande ABC,
e termina a noite ou a madrugada morto, sem nenhuma razão
aparente, apenas hipóteses, assim como os técnicos
de Furnas que o rádio anuncia quase uma hora depois do
apagão, que desconhecem as causas de tamanha confusão.
Na verdade somos prisioneiros de máquinas e de sistemas
de governo que não nos garante nenhuma segurança,
é cada um por si e Deus por todos, mas até quando,
até mesmo Deus cansa, e aí quem nos salvará
de nós mesmos.
PS: A energia retornou depois das 16:00 horas, e esqueci o embrulho
com os equipamentos no ônibus, vou ter que buscar na garagem.
Flávio Machado
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