Textos veiculados na lista "Amigos de Blocos" em
maio de 2002
Zé e Maria
Zé -- Zé porque todo homem isolado é monossilabicamente
Zé -- chegou. Cheio de visões. Entrou. Quis sentar,
descansar... Não sentou -- logo, não descansou.
Mas até que uma soneca em sua tipufa cairia bem pra ele,
ele que tava caindo de sono... Ah desejo doido de se afundar na
rede velha e sambada e descansar as imagens!...
II
Maria -- "Maria porque és mulher / e toda mulher
Maria é" --, sua mãe de carne e leite, ali,
olhando-o. Desgrota! Lá vem ela de novo, trazendo no rosto
pálido e sofrido mais um sermão. Igual aos inúmeros
que nas madrugadas afora recitara pra ele: Meu filho, estas não
são horas de você chegar, me deixando preocupada;
e essa bebedeira toda aí? Vai se banhar pra tirar metade
da catinga ou quer comer logo? Olha, deixei aí um pouco
de arroz, feijão, quer que esquente o caldo com uns pedaços
de galinha? Pára, pára, mamãe! Não
quero nada, me deixe em paz, vá dormir, eu me banho, eu
não bebo mais, pronto!, eu esquento a comida, eu... E chorava.
E ia comer. E via a moela e um coração do frango
na marmita (ela sempre deixava aquela moela marrom e um coração
minúsculo pra ele). E ele os comia, com raiva. Depois,
a alma do galináceo lhe subia ao peito e à boca
e ele cantava desbragadamente, anunciando a segunda-feira.
III
Lá vem Maria outra vez. Seu filho cantando alto na madrugada
anunciava também que ele terminara de comer e ela devia
lavar os bregueços: Se eu posso lavar isso hoje, eu não
deixo pr'amanhã. Amanhã? Mas já é
quase de dia! Então, hoje, quer dizer, ontem, acabou, e
hoje não pode... Ah meu Deus, que confusão!, e esse
rapaz que não pára com essa cantoria e vai se deitar,
deixar eu descansar, aliviar o juízo... Dai-me força,
Cristo! Não, mamãe, hoje eu lavo esses troços
aí, deixe comigo, hoje é domingo de maio, segundo
domingo de maio, seu dia, aliás, foi ontem, já tá
amanhecendo mas vale ainda. Deixe que eu lavo, a senhora pode
ir dormir, deixe comigo, eu lavo, ajeito tudo aqui...
Não adiantava insistir. E Maria vai. Febre danada de alta:
Pra que fui sair e pegar esse bruto vento frio? Vou tomar uns
comprimidos pr'aliviar essa dor de cabeça, essa tremura
no corpo todo, essa ânsia de morte, não, acho melhor
me deitar, talvez passe e eu acorde melhor, com fé em Deus
e na Virgem Santa!
IV
Na cozinha, mãos ébrias e desacostumadas deixam
cair um prato. A mãe dorme tão profundamente...
Ele esconderá os cacos, depois explicará a ela,
ela não dirá nada -- é tão boazinha
a minha mãezinha queridinha. Junta os pedaços de
louça. Que sono... Boceja. Leva uma das mãos aos
lábios. Mão cheia de cacos que caem ruidosamente.
Ela dorme tão profundamente, não escutou o barulho.
V
Mas ele ouviu. Se levanta. Percorre o olhar vazio pela casa vazia.
Meia-noite. O relógio caro ainda marca domingo, o segundo
do quinto mês. Zé não quer continuar a dormir,
não tem mais vontade de descansar as imagens, visões
de uma juventude de muitas mulheres, bebidas e, oh paradoxo, nenhum
dinheiro.
Visões, e uma decisão firme e irrevogável
quando um caixão barato desce ao fundo turvo da cova. Ah
meu Deus, minha mãe!...
No silêncio de uma sala escura, um homem de negócios
chora, lembra de Deus, ajoelha... e reza.
Edmilson Sanches
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