Textos veiculados na lista "Amigos de Blocos" em
maio de 2002
Violência na Infância
Minha maior e mais íntima amiga na infância e adolescência
foi Roberta. Linda, encantadora, dona de uma personalidade tranqüila
e temperamento extremamente meigo éramos conhecidas como
inseparáveis e nas brincadeiras gostavam de nos caracterizar:
Assim mesmo quando estávamos juntas nos dias alegres de
folga éramos intimadas a ser penteadas e arrumadas ao estilo
das grandes estrelas.
Ruth, a cabeleireira mor da turma com um jeito muito especial
para lidar com isso tinha um trabalho enorme para cuidar de nós
duas. E ficava muito zangada se fôssemos displicentes e
estragássemos o que ela havia feito com carinho.
Confesso que quando prendiam o meu cabelo na nuca às vezes
me induziam a pensar em leve semelhança mais proveniente
do tipo de rosto e dos meus olhos grandes e puxados.E quanto a
Roberta quando era caracterizada eu ficava admirando. Ela era
muito linda. Em todo o caso era difícil ver analogias entre
adolescentes e mulheres já adultas. E assim passávamos
as tardes imitando os gestos de cada estrela. Parecia até
que estávamos na tela do cinema. Éramos aplaudidas
pelas outras colegas e principalmente pelos garotos que se reuniam
a nós e a farra se estendia até tarde.
Além de tudo era chamada para recitar poemas não
só meus (modestamente), mas de grandes poetas brasileiros
e estrangeiros.
Nunca esquecerei desses dias inesquecíveis de tanta sedução
em que todos estavam predispostos a brincar apenas pelo prazer
do simples divertimento. Existia ao lado desse fascínio
uma pureza que jamais presenciaríamos nos tempos de hoje.
E, no entanto saíamos, passeávamos e nos reuníamos
muito mais do que os adolescentes atuais.
Roberta e eu tínhamos mania de ir à praia de manhã
antes do colégio e para isso estudávamos até
tarde acordando antes da hora normal para completarmos os trabalhos
escolares.
Enquanto as ondas balançavam e fixávamos o mar
que sempre foi para mim magnífico e calmante, deixando
que a água nos molhasse, conversávamos sobre assuntos
variados. Aos treze anos Roberta tinha um namorado firme (como
se dizia) com quem cedo veio a casar-se. Ambas começamos
a vida demasiadamente jovens.
Nunca esqueci um dia que minha amiga chegou muito agitada e perguntei-lhe
se ocorrera alguma coisa:
- Estou triste, Vânia. Papai não deixou que eu mandasse
a carta.
- Que carta? A que você fez para Raul?
- Claro, para que outra pessoa eu mandaria? Ele está viajando,
você sabe.
- Tudo bem. Só não compreendi porque Dr. Paulo
não consentiu naquela carta. Parece que sempre os adultos
estão afins de realmente atrapalhar o que fazemos.
- Ele leu um trecho da carta.
- Mas não podia, Roberta. Meu pai diz que isso é
violação de privacidade. Eu até fiquei com
esse nome na minha cabeça.
- Pois, é. Eu também acho, mas ele diz que estamos
muita garotas para usar esse direito totalmente. E minha carta
foi censurada por estar muito ardente. Disse que eu
fizesse outra ou modificasse aquela. Para, Vânia. Eu não
achei graça nenhuma.
Enquanto Ro contava a história eu ria tanto que ela ficou
irritada. Minha amiga estava tão indignada com o pai que
eu fazia um esforço enorme pra não continuar a rir.
Mas não conseguia.
- Queria ver se fosse com você.
Finalmente me acalmei:
- Desculpe Roberta. Mas foi engraçado.Não sabia
que o Dr. Paulo era tão severo nisso. Não parece.
- É um pouco sim. Mas nunca pensei que ele agisse assim.
- Acho interessante. Papai é tão rígido
em certas coisas e em outras é completamente liberal e
ainda defende nossos direitos. Na minha casa, Roberta, ninguém,
de jeito nenhum se atreve a abrir uma correspondência que
não é sua, mesmo em se tratando de nós. Nem
pegar a extensão mesmo sem querer. Todos têm o maior
cuidado nisso. Em compensação ele é muito
mais severo em outras coisas. Você já viu, morre
de medo que eu queira ser artista ou qualquer coisa assim.
- Mas, Vânia é porque você tem essa tendência
para fazer teatro. Todo mundo elogia a sua atuação
no teatro do colégio. E seu pai é tradicional.
Assim conversávamos horas dos assuntos mais diversos,
sérios ou não. Éramos amigas de verdade e
uma sabia os segredos da outra.
Nunca esquecerei o enorme carinho de Roberta quando meu irmão
estava doente. Mesmo nos dias de desânimo total ela ia para
minha casa. Eu lhe dizia que não ia ser uma boa companheira
porque estava muito triste.
- Não estou aqui para me divertir, Vânia, dizia,
e sim para ficar a seu lado. Suas irmãs são tão
pequeninas e seus irmãos como todos os homens são
meio desligados. Com quem poderia desabafar? Mesmo que não
queira falar sabe que estou aqui.
Muitas vezes meus pais ouviam o som das nossas risadas conversando
e distraindo o pequeno Cláudio. Ela me ajudou muito e foi
mais que uma irmã. Uma irmã atenciosa, amiga e profundamente
presente.
Quando converso com Roberta (ela mora no Rio) recordamos nossos
tempos e continuamos fiéis amigas. Não nos vemos
com tanta freqüência, mas nos falamos e jamais esquecemos
uma da outra em qualquer acontecimento. Ela tem uma especial admiração
pelo que escrevo e fica feliz ao constatar que continuei e cada
vez mais na minha mania de escrever. E eu impressionada
como ela nada mudou de sua generosidade e meiguice.
Quando há pouco tempo pedi licença para fazer esse
depoimento ela me respondeu:
- Claro que sim, Vânia. Tudo bem. Como vou negar isso para
minha amiga de infância, que foi parte dela? Escreva e boa
sorte! Sei que terá sucesso! E com a sua sensibilidade
saberá interpretar o que passamos. Talvez ajude outras
pessoas.
2ª PARTE
Roberta não tinha o temperamento parecido com o meu em
certos aspectos. Ou digamos preferências. E daí a
vantagem e o valor desse relacionamento: sabíamos administrar
nossas diferenças. Minha amiga era tranqüila, não
gostava muito de festas nem de dançar. Eu era exatamente
o contrário: profundamente agitada, adorava sair e me divertir.
Mas tínhamos o mesmo modo de encarar a vida, com extremo
entusiasmo e não acreditávamos em maldades ou perseguições.
Confiávamos nas pessoas e jamais
discutimos ou nos afastamos de quem que seja no colégio.
Éramos queridas e também amávamos profundamente
aquele lugar que nos viu crescer.
A minha amiga também era muito protegida em casa, mas
de uma maneira que achava esquisita. Dona Irene e principalmente
Dr Paulo a protegiam bem mais do que aos seus irmãos embora
não fosse a caçula. Tinha uma preocupação
diferente com Roberta que ela própria comentava em nossas
costumeiras conversas.
- Não sei, Vânia, papai parece ter medo que alguma
coisa me aconteça. É esquisito. Você não
acha?
- Não sei, Roberta. Às vezes acho, mas o meu pai
não é também mais ou menos assim?
- É diferente. Dr. João tem outras preocupações.
Mas papai parece que está sempre de sobreaviso parecendo
recear algo que ainda não consegui discernir.
- Você tem razão. Mas o que poderá ser? Temperamento
dele?
- Mas ele não é assim nem com a Suzana que é
a menor.
- É agora pensando é isso mesmo. Não fique
preocupada. Dr. Paulo é maravilhoso.
- Também acho. Vamos esquecer isso.
O pai de Roberta era deputado reeleito em vários mandatos
e uma pessoa culta e agradável.
- Roberta você continua firme com Raul?
- Claro. Ele é o amor da minha vida. Nunca vai ser diferente.
Eu sorria sempre que minha amiga falava do namorado porque sabia
o quanto era apaixonada. Ela só tinha treze anos.
- Ele é legal.Mas acho diferente de você.
- Você o acha muito velho, Vânia?
- Não!!! Claro que não. Ele tem vinte e dois anos
e os meninos da nossa idade não tem graça nenhuma.
Não é isso que quero dizer. Claro que perto da gente
fica parecendo assim meio coroa mas eu acho legal.
Só gosto de gente mais velha.
Minha amiga sorriu aquele insinuante e bonito sorriso que todos
apreciavam e respondeu divertida:
- É as meninas dizem que você só gosta de
velho. E que eles vivem atrás de você.
- Espera aí Roberta. Quando você fala assim parece
até que são velhos mesmo. São da turma do
Fluminense. Eles todos tem mais de vinte anos. Mas não
passam dos vinte e cinco. . Mesmo porque acho que meus pais não
permitiriam e eles estão sempre por perto nas festas.
- E você tem treze.
Sorri também. Ela tinha razão. Mas os garotinhos
eram tão sem graça! Eu não tinha o que conversar
com eles.
3ª PARTE
Em meio aos divertimentos e também às tristezas
como a morte de meu irmãozinho ocorreu um fato doloroso
que hoje nem consigo precisar exatamente a maneira como aconteceu.
Estava jogando vôlei ao final das aulas quando alguém
me chamou. Deixei uma colega em meu lugar e saí ligeiramente.
Estava próximo ao dia das mães e uma freira responsável
por essa área social me pedia que eu fizesse um poema.
Acedi com alegria e quando estava voltando percebi um grupo de
meninas maiores conversando. Eram colegas da irmã mais
velha de Roberta, mas Lúcia não estava lá.
Falavam tão alto naquele barulho do campo que pude entender
que comentavam de Roberta. Isso porque se referiram à
Roberta, irmã de Lúcia.
Não conseguiria hoje narrar na íntegra as palavras,
mas o que disseram me deixou estarrecida.
Fiquei parada sem conseguir me mover até que lentamente
como embalada por algo irresistível fui procurar minha
mestra preferida Mère M. de Assis.
Não a encontrei imediatamente, mas quando ela me viu ficou
pálida de susto. Eu tinha corrido ladeira acima, caído
uma vez e o joelho estava sangrando. Meus cabelos presos em rabo
de cavalo haviam se soltado e se espalhavam no rosto que estava
molhado de lágrimas e contraído de susto.
Abraçou-me apavorada perguntando:
- Que houve, Vânia? Passava a mão pelos meus longos
cabelos procurando acalmar-me enquanto eu repetia
- Elas disseram que a senhora sabe! Como posso contar-lhe isso?
A senhora sabe. Só por isso vim procurá-la. Porque
estou tonta. Como vou decidir? E se ela ouvisse?
- Vânia, você não está sendo coerente
no seu relato. E é sempre tão clara! Vamos sentar.
O que você ouviu e de quem?
- As meninas da turma mais velha, colegas de Sônia estavam
falando da Roberta. E repetiam: Pergunte a Mère M de Assis,
ela sabe.
Minha mestra levantou-se pálida. O sangue parecia haver
sumido do seu rosto corado e então se dirigiu a mim segurando
minhas mãos trêmulas:
- Esqueça isso, minha filha. Devem ter falado bobagem.
As maiores pensam que sabem tudo.
Nada adiantava. Eu chorava mais ainda repetindo
- Como vai ser se ela escutar?Como vai ser? Levará o maior
choque do mundo. E como vou olhar para ela se não lhe contar?
Mentir para minha melhor amiga e deixar que saiba por um qualquer?
Omitir que ouvi? Não vou deixar ela passar por isso. Não
vou.
Sentou ao meu lado e acariciou meu rosto enxugando com os próprios
dedos minhas lágrimas que insistiam em descer em profusão:
- Você ouviu tudo, Vânia. Não posso retroceder
agora. Mas tem que dar um tempo. Tenho que ligar para o Dr. Paulo
e vermos a melhor forma de agir. Se falavam assim, é possível
que um dia Roberta ouça.
- Claro que sim. Não entendo porque sua família
não tomou providências antes que outras pessoas soubessem.
- Não censure, querida. Ás vezes adolescentes como
você pensam em certos momentos mais objetivamente e os adultos
estão cercados de problemas.
- Eu não estou censurando. Mas não quero ver minha
amiga sofrer. Ela é tão meiga. Tão... Oh,
Meu Deus, ela não pode passar por isso.
- Sei o que quer dizer, Vânia e também o que está
sentindo. Já vieram lhe buscar? Vá para casa. Quero
que descanse até amanhã. Mas antes vamos à
enfermaria fazer um curativo no seu joelho.
Recomecei novamente a chorar
- Não dizia eu, como vou poder descansar? Quero resolver
isso agora. Roberta vai lá em casa. Como enfrentá-la
sabendo que estou escondendo algo tão importante da sua
vida e que ela pode ouvir como eu? Por pessoas que não
tem nada haver com ela, que falam com maldade. Ajude-me Mère
M. de Assis. Se acontecer isso Roberta não se recuperará
jamais.
- Não foi por maldade, filha. Foi inconseqüência.
- Pensei que não soubesse o que era maldade. Mas ouvindo-as
falar, o jeito que elas conversavam e só pelo fato de comentar
com outras pessoas sobre a vida de alguém num acontecimento
tão triste, só por isso entendi. Foram más.
Por que?
Minha professora abraçou-me e levou-me para tomar um refresco
bem doce. Disse-me que isso melhoraria meu estado nervoso.
Olhei-a como a pedir socorro e perguntei-lhe o que mais poderia
ocorrer para encher meu coração de tanta dor.
4ª PARTE
Durante aqueles dois dias que se passaram Roberta não
teve condições de ir à aula. E quando entrei
em sua casa a pedido de sua família, ela se encontrava
na sala e me aguardava. Abraçou-me, os olhos marejados,
porém demonstrando estar relativamente bem.
- Vânia, querida, eu sempre senti que havia alguma coisa
diferente comigo.
- Mas não há. Aconteceu. Faz tanto tempo! Você
só tinha quatro anos.
- Quando papai veio me contar lembrei-me de certos sonhos e visões
esquisitas.Nada nítido.Como alguém pode violentar
uma menina de quatro anos? Parecia um pesadelo.
- Essas coisas nunca passaram pela minha cabeça. Roberta
parece que ele era inimigo político do Dr. Paulo. Mas como
seu pai disse precisamos caminhar para frente.
- Deus me livre que eu tivesse sabido de outra maneira. Vânia
nunca vou esquecer o quanto foi minha amiga.
- Você faria exatamente a mesma coisa por mim. Desde pequenas
somos ligadas assim. E Deus nos ajude nesse mundo, Roberta. Parece
que certas pessoas só querem o mal das outras. Estou começando
a sentir medo.
- Fico imaginando como meus pais devem ter sofrido. Visualizo
os dois em desespero total.
- É melhor nem sabermos mais nada em detalhes.
- Não há muito, a saber, querida. Eu fui violentada,
desmaiei, fui encaminhada ao hospital, já que meus gritos
foram ouvidos pelos empregados e minha babá. Sabe, Vânia
parece que essa pessoa além de tudo não era muito
normal. No julgamento foi comprovado problema psíquico,
tanto que teve que parar em uma casa de recuperação.
Meu pai pensou em tudo Disse que teve ganas de matá-lo.
Foi controlado pela família e teve que fazer um tratamento
sério. Eu queria tirar isso da minha cabeça.
- Vai tirar. Todos nós teremos que esquecer.
- Lembra Vânia, como sempre gostamos de ir à Volta
Redonda e como você apreciava visitar a siderúrgica
e ficar apreciando os fornos consolidando o aço que ia
se formando em tiras?
- Sim. Seu pai gosta muito dali. Afinal nasceu lá. E nós
aprendemos a admirar aquilo tudo. Eu tinha mania de ficar em frente
aos fornos e as pessoas me afastando com medo que eu me machucasse.
Era legal. Mas porque está lembrando disso?
- Porque foi justamente num fim de semana em Volta Redonda que
tudo aconteceu. Justamente num lugar tão especial.
Quando Dr. Paulo e Dona Irene chegaram à sala chorávamos
abraçadas e ele com esforço brincou:
- Não sabia que grandes estrelas podiam ser tão
choronas assim.
Olhamos rindo através das lágrimas que escorriam
insistentes e com dificuldade respondi:
- Por que as lágrimas escorrem mesmo quando queremos evitar?
Dr. Paulo devemos estar esquisitas com os olhos e o rosto tão
vermelho.
- Estão lindas! Não podem imaginar quanto! Respondeu-me
com intenso carinho.
CONCLUSÃO
Roberta reiniciou as aulas no dia seguinte e de cabeça
erguida olhamos as mesmas jovens que tinham ironizado a minha
inocente amiga, zombando de uma situação dolorosa.
Mas que agora faziam parte do passado.
Foi num dia que a aula de artes se prolongava algo enfadonha
que Roberta me falou sobre seu noivado:
- Vou ficar noiva no fim do mês, Vânia. Você
é a única que não pode faltar.
Sabia dos projetos dela, mas jamais pensei que Dr. Paulo permitisse.
- Por que agora, Roberta? Seu pai deixou?
- Disse que vai deixar ficar noiva, mas que tenho que pensar
até o casamento. E me fez prometer que continuaria o estudo.
Ele tem muita confiança em Fábio. Ele é mais
velho do que a gente, você esqueceu?
- Claro que não, já falamos tanto sobre isso. Mas
não sei. Acho que você deveria esperar um pouco mais.
- Não, Vânia vamos casar logo que possa.
- Por que isso? Essa pressa?
- Amor, amiga, amor.
- Se está feliz tudo bem. Deve saber o que está
fazendo.
Um ano depois Dr. Paulo chamou Raul e contou toda a história
de Roberta pedindo que ele tivesse o maior cuidado com a sensibilidade
e a vida emocional de sua filha. Disse-lhe que minha amiga era
tudo para ele e não permitiria que sofresse.
O rapaz se comprometeu e no dia do emocionante casamento ela
entrou na Igreja mais parecendo uma delicada boneca de porcelana,
com apenas quinze anos. Estava lindíssima e choramos abraçadas
muito tempo enquanto as pessoas impacientes esperavam na fila
dos cumprimentos. E eu pedia a Deus que Roberta fosse realmente
feliz, pois já havia sofrido muito.
Quando chegou de viagem nos encontramos e ela me confessou que
estava feliz, seu rosto parecia demonstrar isso. Mas havia alguma
coisa que eu só consegui captar pouco tempo depois. Encontrávamo-nos
sempre até que um dia ela desabafou o quanto fora difícil
sua noite de casamento.
- O trauma ficou, Vânia. Só eu sei. Na hora que
estávamos juntos só pensava em violência disse-me
ela com a voz embargada.
- O Raul foi legal?
- Sim. Eu é que não estou bem.
- Faça uma terapia, ou melhor, uma análise. Sei
que já fez, mas recomece. Está precisando. Por favor,
Roberta você é uma garota ainda.
- Fique calma, Vânia. Eu farei.
Semanas se passaram sem que tocasse no assunto até que
me pareceu mais contente e confessou-me que tudo estava se normalizando
e que ela já podia apreciar momentos de felicidade. Parecia
empolgada e eu ansiava para que estivesse me dizendo a verdade.
Sua vida me parecia instável com variações
esquisitas.
Alguns meses depois quando eu partia para outra vida e talvez
para longe da minha cidade querida, procurou-me angustiada, no
dia do meu casamento.
- Não se case, Vânia, por favor. Ainda está
em tempo. Por favor. Não pode ser infeliz. É muito
garota e muito bonita, Inteligente e vibrante. E acabou de completar
dezesseis anos Tem que fazer muita coisa. Não case.Vai
se arrepender. Perderá esse entusiasmo pela vida.
Olhei-a conturbada com a sua emoção:
- Tenho a mesma idade que você, Roberta, só alguns
meses mais moça. Então não é feliz?
- Quero que você deixe o tempo passar. Por enquanto não
case. Ainda tem tempo de cancelar o casamento.
Senti o pânico na minha querida amiga de infância,
mas não havia tempo para socorrê-la.
- Roberta, converse com seu pai. Alguma coisa está errada.
Por favor, tome alguma providência se estiver sendo infeliz.
- Não estou, Vânia, não estou infeliz, mas
o casamento em nada me ajudou.Não nessa idade. Não
com esse trauma. Estou com medo que você não seja
feliz. E também sofra. Não tem esse trauma, mas
têm outros.
Olhei-a, tão emocionada e impotente que não consegui
falar e quando semanas depois nos encontramos ela estava disposta
a prosseguir a vida normal até que alguma esperança
delineasse o seu caminho.
Esse caminho tem sido cheio de controvérsias. De dúvidas
e incertezas. Da consciência de feridas não totalmente
ultrapassadas e de horas de depressões superadas por um
espírito superior e extremamente magnânimo.
Creio que aquela violência de que foi vítima prejudica
a plenitude de sua verdadeira realização. E isso
traz uma insegurança que magoa.
Uma das razões que concordou com esse depoimento foi justamente
mostrar a quem o lesse o que a brutalidade é capaz de causar.
Quem a contempla vê uma mulher bonita, elegante, charmosa
e atraente e os que a conhecem apreciam suas imensas potencialidades
de espírito e inteligência. Entretanto a consciência
do que sofreu tão pequenina e indefesa ainda atormentam
seu coração sensível e delicado.
Mas posso garantir que a sua generosidade, carinho e coragem
continuam intactas, apesar das agruras que interceptaram algumas
vezes a sua vida e que deixaram seqüelas de tormento não
superado.
OBS: Os fatos são absolutamente reais e os nomes dos personagens
excetuando o da autora foram substituídos para preservar
suas identidades
Vânia Moreira Diniz
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