Textos veiculados na lista "Amigos de Blocos" em  maio de 2002

Politicamente Correto

O judeu esperava o policial que iria prendê-lo. É lógico que nem judeu nem
policial seriam as palavras empregadas. Nem o verbo "prender". Mas para
captar o que estaria acontecendo foi necessário que eu usasse a língua
antiga, anterior a Reforma. Não se preocupe se não entender algumas
palavras. A Universidade está preparando um dicionário que em breve estará
sendo vendido a preços populares. Espero que sejam sinais de um novo tempo.

Aliás a exigência do Judeu para ser preso foi que o policial que viesse
fosse culto o suficiente para usar a língua antiga. A Agência de Preservação
das Minorias teve um trabalho muito grande para achar alguém, mas, por
sorte, um dos agentes especiais tinha curso de história.

A campainha tocou. Do outro lado da porta o Judeu viu um homem de cerca de
trinta anos, com um uniforme cinza. Cor irritantemente neutra. Convidou-o
entrar e sentar-se na sala. O Agente assentiu com a cabeça e sentou-se numa
das poltronas do aposento e o Judeu escolheu a outra, em frente. Ele esperou
ao agente examinar o ambiente a sua volta antes de começar a conversar.

Os olhos do agente percorreram uma a uma das peças ali. Quadros, armas
antiga, uniformes de soldados e oficiais, objetos de uma época que a
Humanidade queria esquecer. O silêncio durou cerca de dois minutos, quebrado
pela pergunta do agente, em bom vernáculo da língua antiga:

-- Por que objetos Nazistas? Que prazer mórbido teria você um Judeu em
colecionar objetos símbolos de sua opressão?

O Judeu sorriu e respondeu:

-- São apenas objetos. E eu os colecionei apenas para provar isso. Não para
mim nem para os meu pares, mas para todos. Sou um historiador como você.
Apaixonado pelo passado e de reconstruí-lo para que as gerações futuras
entendessem que tinham uma origem e teriam um futuro.

--Mas onde encaixa esta coleção? Você sabe que apenas mencionar qualquer
referência aos nazista é proibida. O que se dirá de uma coleção desta?

-- Eu sei. E sei também que botar o dedo em qualquer ferida aberta contra
uma minoria é crime. E muitas vezes no meu trabalho esbarrei em várias
delas, algumas abertas pelo meu próprio povo. No início me deram liberdade
para pesquisar desde que meus trabalhos não saíssem do ambiente da
Universidade. Mas depois, primeiro era difícil achar fontes de pesquisa
adequadas. Volumes significativos sumiam. Sumiam também qualquer menção a
eles. Os bibliotecários olham espantados, dizendo, "nunca tivemos este
exemplar". De Mechem Kampf até O Senhor do Anéis. Depois, meus próprios
trabalhos sumiram. Por fim, meu registro foi cassado.

-- Senhor, não há mais lugar para historiadores. Somos felizes sem
diferenças de espécie alguma. E historiadores nos trazem lembranças de um
tempo que não volta mais.

-- Percebi isto. Você parece estar conformado com sua situação. Um
historiador que virou policial. Mas voltando a minhas razões, escolhi o
Nazismo justamente pela contradição. Um judeu colecionando objetos
nazistas... Ironia pura. Para caracterizar o ridículo da minha prisão (que
vocês insistem em chamar de reeducação).

-- Meu senhor, seriam pra seu próprio bem e para o bem da sociedade. Não
queremos mais nenhuma discriminação. Nenhum preconceito.

-- E você acha que eu quero? Não creio que seja eficaz simplesmente negar a
existência de diferenças e de uma tal maneira que chegaram a queimar livros
em praça pública! Isso me levou aos nazistas também. O que era diferente
estava fora. Nos tornamos iguais. Mas não entre nós. Iguais aos nazistas!

O rosto de pedra do policial deu mostras de perturbação. As palavra do Judeu
acordaram o historiador adormecido. Não foram suficientes para ele relaxar o
cumprimento de seu dever. O Judeu foi levado para um instituição de
reeducação. Era como chamavam o presídio.

Alguns dias depois o policial pediu exoneração. Foi o inicio deste
movimento.

Eu era aquele policial.

Álvaro Alípio Lopes Domingues