Textos veiculados na lista "Amigos de Blocos" em
março de 2002
HISTÓRIA DE UMA FAMÍLIA MISERÁVEL
"Enquanto houver um brasileiro
passando fome este não será um País democrático".
(Tancredo Neves)
"Uma pessoa com fome não é uma pessoa
livre".
(Adlai Stevenson)
Família - de célula-máter a célula-mártir.
Quem cuidará das famílias abandonadas?
(E.S.)
O drama está mais perto e bate à porta. É
um dia de fevereiro, 4 horas da tarde. A jovem de cabelos pretos,
lisos e desgrenhados, pés sujos e rachados, vinha caminhando
como uma autômata, empurrada pelo vento. Devia ter uns 20
anos. Entretanto, sua anemia extrema, seus olhos fundos, todos
os ossos à mostra (exceto aqueles que o "short"
roto e a desfiada blusa negra encobriam) teimam em lhe dar muito
mais idade. O que ela conta lacera a alma, liqüefaz os olhos.
(Sei: há miséria em todo canto, no mundo todo; mas,
a miséria vizinha, a miséria ao vivo, em cores,
colada ali, como dói...).
Antes de tudo, ela pede uma "ajuda". Precisa juntar
dez reais até antes do fim da tarde. Por quê? Para
quê? Sua irmãzinha, de dois anos, estava morta desde
o dia anterior, em um hospital da cidade. Conseguira o caixão
com "o gerente" de uma loja comercial e agora faltava
completar a "taxa do enterro". De ontem para hoje o
que conseguiu totalizava... um real (mostra as moedinhas). Já
andara muito, já pedira mais ainda, não tomara café
nem almoçara... nem hoje nem ontem. De que a criança
morrera? Pneumonia. Não tinham dinheiro para comprar "os
remédios". Disse que foi à "farmácia
do SUS". Não tinha "remédio" pra
pneumonia. Voltou, de mãos abanando. A receita tornou-se
papel inútil. Esboço de óbito individual.
Atestado de falência múltipla. Sequer pôde
conseguir a água de coco recomendada para a criancinha.
Com nada de hidratação, nada de alimentação,
nada de medicação adequadas, a criança voltara
ao hospital... para morrer. Morrer de fome e descaso. O diagnóstico
deveria ser "pneumonia associada a pobreza" - material
e moral. Imoral.
Mas, para um pobre, desgraça pouca é bobagem. Outros
dois irmãos, menores, subvivem ali numa casinha alugada,
um desses desvãos da cidade. E os pais, o que fazem? O
pai morreu faz três anos. A mãe é paralítica
e vegeta em cima de uma cama. Recebe uma pensão mais miserável
do que a vida que leva. Um salário-mínimo para pagar
aluguel, água, energia... Sobram mais ou menos uns 70 reais.
Se forem destinados apenas para comida, dá uma média
(divididos por 30) de dois reais e trinta e três centavos
por dia, embora tenha mais meses de 31 dias do que de 28. Como
são quatro pessoas na casa, já "descontando"
a irmãzinha morta, cabem 58 centavos diários para
cada, a serem divididos por três refeições
diárias (você, leitor, não acha que essas
pessoas têm direito a café da manhã, almoço
e jantar?). Pois bem: 58 centavos divididos por 3 (refeições),
o resultado: 19 centavos para serem "gastos" em cada
"refeição". Quem se habilita? Quem é
o mágico?
Quando é indispensável comprar um remédio,
um sabão, vai faltar para o "de comer". "Por
isso - diz a moça magrinha, olhos tristes de lágrimas
-, tem dias que a gente come, tem dias que a gente não
come". (A naturalidade, o olhar sem ódio, a voz sem
cobrança, o tom sem indignação, a nenhuma
raiva com que esses seres humanos dizem isso, meu Deus!... Que
gentes, melhor, que almas são essas? De onde vêm
assim, tão resignadas, tão simplórias, tão
conformadas?...).
As pessoas dessa família não têm dinheiro,
quer dizer, direito a merenda, roupa, calçado, remédio,
educação, cultura, lazer, cinema, bombons, bolas,
bonecas, frutas, vitaminas, academia de ginástica, cursos
de inglês, aulas de informática, sessões de
terapia, tênis para "jogging" e "footing",
computador, "videogame", assinatura de jornal, revista,
TV a cabo, bicicleta, automóvel, "jet-ski", férias
no Caribe, festa de 15 anos, aniversários... Não
têm direito a caixa postal, "Internet", "home-page",
"e-mail"... Não, essas pessoas não vivem,
não estão no mapa (só o da fome), não
estão no mundo. Ou, como despetala Baudelaire, nas suas
"Flores do Mal": os pobres vivem pela morte e só
ela é sua única esperança.
À exceção dos períodos eleitorais
(que as inclui, anônimas, no "grande elenco" do
circo-teatro político), famílias abandonadas, mães
paralíticas e filhos esmoleres não existem. A fruição,
o gozo, o prazer terreno fecham-se para eles. A única coisa
que se lhes abre é a porta da indiferença. Corações,
abraços, consciências, oportunidades, bolsos, cerram-se...
São tão miseráveis, estão tão
abaixo da linha da pobreza que sequer têm o direito de morrer
em paz. Não tem onde caírem mortos. Antes disso,
antes do suspiro final, têm de fazer um último esforço,
têm de sofrer a humilhação derradeira: mendigar
um caixão, a taxa do cemitério, o "agrado"
do coveiro.
De um jeito ou de outro, conseguem. Porque, enfim, será
ali, numa cova rasa, que seus corpos, mortos, atingirão
a igualdade que lhes foi negada em vida: ali todos os órgãos
inermes haverão de apodrecer, suas carnes decompostas transformar-se-ão
em banquete de vermes, seus líqüidos pútridos
e gosmentos adubarão capins e farão florescer rosas,
seus miasmas misturar-se-ão ao ar da noite que todos os
vivos inalarão, e seus fantasmas e almas e o pó
de seus ossos haverão de resistir até o dia do juízo
final, da remissão dos pecados e, queira Deus, do começo
da paz eterna.
Enquanto isso... de que sorriem os que estão no Poder?
De que sorriem os abastados abestados abostados?
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P. S. - Naquela tarde, a moça magra não precisou
caminhar mais.
Edmilson Sanches
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