Textos veiculados na lista "Amigos de Blocos" em  dezembro de 2001

Cronica de Campos do Jordão numa temporada

Quinta feira, 25 de julho

Estou sentada bem em frente aos acontecimentos. Faz frio, obviamente, e o barzinho na rua central acendeu seus tocheiros modernos e eficientes. São movidos a gás, um grande invento para quem vem em direção ao frio, sem suportá-lo!
Ainda ontem os aquecedores estavam desligados. Não que a temperatura estivesse mais amena, mas quem dita neste caso é o ponteiro economico e de fato, neste ponto, o centro da cidade não estava suficientemente lotado, as lojas e restaurantes tão frequentados. Ainda era quarta feira. Hoje é o início do último final de semana do mês mais frio, e paradoxalmente mais quente em agitação por essas bandas, os turistas chegam com toda força! Vale a pena esquentar os frio deles, da mesma forma que eles esquentam a temporada, raciocinam os comerciantes.
Pedi uma porção de bolinhos de queijo e uma cerveja bock. Sorvo a última, enquanto os primeiros não chegam e, pela enésima vez, em meio à animação geral, penso que estou só, e não sinto nenhum desprazer nisso. Por quê não esqueço tal detalhe, então? A mente é como o corpo, silencioso quando em bom funcionamento. O prazer é mudo, só a dor leva ao pensamento. Devo sentir uma pitada dela, concluo, e deve ser por estar só.
À minha direita sentam-se duas adolescentes, mudas, de cara infeliz, e percebo que nada perco em minha solidão, uma vez que ambas não trocam palavra. Se fossem casadas uma com a outra, eu entenderia... Bebem cerveja Corona, do gargalo, mas se percebe que não apreciam. Não sentem no álcool o prazer que sinto.
Acabo pedindo mais uma bock, pensando a quem pretendo enganar quando digo que atualmente só bebo cerveja! Resta ver quantas... E as duas remanchando na mesma Corona, não chegaram nem na metade.
Um telão exibe as Olimpíadas e eu me dou conta que não é um jogo de futebol! Para cúmulo de minha ignorância, os esportes de grupo parecem tão semelhantes! Lembram-me dos domingos de minha infância, meu pai colado à televisão, vendo o bando de marmanjos correndo atrás da bola. Monte de homens e dois times para mim será sempre futebol. Antigas memórias. Lá pelas tantas, um homem passa pela calçada armando caretas. Tem o rosto pintado de branco e por isso se sabe que é um palhaço, caso contrário poderia ser um excêntrico, um bêbado...pessoas que devemos fingir que não notamos.
Ele olha com jeitos indecifráveis e faz gestos estranhos, tentando mexer com nosso riso. Até as adolescentes mal humoradas sorriem. Os que passam a seu lado o ignoram, ou até fazem cara feia...ninguém quer um palhaço ou um louco tão perto. Ainda mais quem chegou há pouco, para o final de semana, enfrentando fila na estrada.
Palhaços são tão falsos! Detesto quando percebo seus braços masculinos, cheios de pelos, testosterona...Nada contra ela, mas palhaços não deviam ter sexo, ou deviam ser sempre crianças.
Moças bonitas distribuem ingressos para uma danceteria: mulheres não pagam, antes de uma hora., escuto-as falando às minhas vizinhas. Decido perguntar se existirão pessoas com mais de quarenta, mas elas me julgam rapidamente num relance e passam adiante, sem me oferecer o convite. Resposta obtida. Estou na faixa dos enta...e estou só, sendo desafiadoramente apresentada a mim mesma.
Terminei um velho relacionamento ha pouco, de maneira inesperada. Estar só e dormindo no casa do Morro dos Ventos Uivantes, pode parecer um exercício de saúde mental, uma prova de fogo. Mas não é. Não me sinto mais só do que me senti nos últimos anos, nem mais infeliz que em minha adolescência. O titulo Solidão é angustiante, mas é só o título...o livro propriamente dito é de agradável leitura.
Pensando bem, sou a melhor amiga de mim mesma. Ninguém é tão igual a mim ou concorda com todas a minhas opiniões.
Num dia decido, como ontem : "Vou à Pedra do Baú". Só escuto aplausos! Na volta me parabenizo por ser uma aventureira, um tanto extravagante, mas uma mulher de fibra! "Você conseguiu! Fez a escalada, tomou tombos ridículos, não quebrou nada, o que mostra que goza de alguma protação invulgar e....seus musculos não entraram em fadiga! É uma atleta!" Nem tanto, retruco para mim mesma: é verdade que tenho me exercitado, mas não é o mesmo que há vinte anos! Pura modéstia! Há muita coisa melhor na maturidade: você é dona de você, de seu tempo, de sua vida. É verdade, ao menos em férias.

Meus pais voltaram para São Paulo ha alguns dias, e eu fiquei, junto desta mata que descortino de cima da montanha onde fica a Casa, junto do céu azul de inverno, do clima estimulante.Respiro, ergo sum. Pois meus pais partiram e tenho sempre a impresão de que estão na Casa, que posso me deparar com eles na sala de televisão, ou ver minha mãe sentada sobre o leão de cimento, tomando o sol da tarde, como uma gata gorda e terna. Amar deve ser isso, não se sentir só! Estou cercada de fantasmas queridos.
Devoro as bolinhas de queijo, assim que chegam, sabendo que vou engordar, mas que importa? As férias estão no final!
Peço a conta, já um pouco incomodada por ficar tão consciente de não fazer parte deste grupo, uma população caudalosa entre 14 e 17 anos, que me ignora. Folhetos negros também não me foram oferecidos e um momento de tristeza me invade. Envelhecer é ver desaparecer seus iguais, diz Simone de Beauvoir.

Saio e vou comprar bombons de cereja ao licor, divinos. Sirvo-me dos ulitmos da prateleira...estão sempre no final. Quem vier a Campos é bom começar a procurá-los no início da estadia.
Atravesso a rua, mal conseguindo passar pela moçada, a noite caindo, embalada por um ritmo quente de uma emissora de rádio. Um inferno, mas quero estou decidida a atravessar a rua, onde há uma loja que vende aconchegantes chinelos imitando patas de elefante, um mimo.Não comprei antes porque não tinha me dado conta de que não conseguiria esquecê-los. Mas que desilusão, já os venderam! Só restava o de modelo orangotando, que era um horror.
Sem o item invernal do vestuário, desisto de mais compras, já é noite fechada e me preparo para voltar para o carro. Toca atravessar a multidão de juventude insaciável! No palanque da Rádio, um locutor pede uma garrafa, em altos e animados brados.
Por uma santa curiosidade resolvo observar o que será feito dela! Mas, claro, é a danca de garrafa! Duas concorrentes estão empatadas em quantidade de palmas...resta o desempate, que será feito com as duas dançando simultaneamente!
Ora, ora, como dançam bem! Que preparo físico acrobático! E isto por uma garrafinha! Imaginem o coração dos rapazes! A ovação foi ensurdecedora. Eu também aplaudi, o que é justo é justo, as duas mereciam ganhar! No entanto, vim embora pensando que me negaria a fazer esse papel e a dançar essa dança! Mesmo que minhas pernas aguentem subir na Pedra do Bau, não é mais uma questão de pernas, mas de mentalidade! Que bom que os jovens me reconhecem, e sabem que sou diferente, por que não conseguiria ser como eles são. Não faço críticas, elas são um absurdo cultural, mas com certeza não me igualo a esse bando.
O bom de tudo é que tenho uma certa coerência interna: não preciso tantas provas de que valho alguma coisa e consigo estar só, sabendo que posso viver e me divertir e aborrecer tanto como se tivesse um bando de gente a tiracolo!
Estou sendo apresentada a mim mesma, como dizia, mais velha e mais consciente...e estou gostando um pouco do que vejo, por incrível que pareça. Passo por um Karaoquê, e escuto`gente cantando em inglês com bom sotaque e muita bossa, enquanto a galera dança no sereno. Não sinto vontade de parar. O vento frio vai empurrando meu corpo para o aconchego do carro. Ligarei o ar condiconado, será delicioso!
Tranco-me por dentro, dou uma gorjeta ao rapaz, pelo vidro entreaberto. Estico o braço imprestável pelo esforço do dia anterior (nem só de pernas se faz uma escalada!) até o chão do banco traseiro, em busca do toca-fitas. Subo até o Morro dos Ventos Uivantes, escutando e cantando minhas lições iniciais de canto lírico.
Em meio à escuridão da estrada de terra páro o carro. Nenhuma iluminação Desligo o motor e a música. Escuto o silêncio. Abro a porta e coloco a cabeça para fora, em busca do céu estrelado. Tudo gira, como se me hipnotizasse, o espaço realmente se deita sobre a terra e a fecunda. Urano e Geia.
Sinto-me comovida e abençoada.

Clélia Romano