Textos veiculados na lista "Amigos de Blocos" em
dezembro de 2001
Significado do amor
Costumo trabalhar até muito tarde e geralmente pela manhã
acordo sem muito tempo de fazer alguma coisa antes de recomeçar
novamente. Mas hoje amanheci pensando naquele menino epilético
que eu havia visitado e que agora com um tratamento adequado,
já não sentia as conseqüências devastadoras.
Não sei porque uma angústia tomava conta de mim
e minha vontade era me dirigir à periferia da cidade para
ver aquela família, e talvez outra, que estivesse necessitando.
Naquele momento, acho que espiritualmente, eu precisava bem mais
que eles. Em vésperas de natal, imaginava a devastação
e tristeza que deveria tomar conta deles, sempre tão carentes
de doçura e afeto.
Meu coração batia desordenadamente quando cheguei
à porta, se pudermos chamar de porta o lugar onde deveria
bater para que me atendessem. E surpreendentemente Marlon apareceu,
com o rosto mais cheio e menos amarelado do que o tinha conhecido,
o que tanto me impressionara. Ele sorriu sinceramente e aquela
expressão ficou fixada para sempre em mim, tenho certeza
absoluta.
Sua mãe chegou logo depois, e ela sim, me pareceu deveras
abatida. Ligeiro ríctus de satisfação, mais
parecendo um esgar, surgiu em seu rosto, ao me ver, e as lágrimas,
acho represadas, saíram livremente quando a abracei. Olhei-a
admirada que apesar da vida e dos sofrimentos incomensuráveis
pudesse ainda ser bonita. Os traços estavam marcados pela
vida atribulada, e muitas rugas precoces se alojavam nos olhos
grandes e impressionantemente negros. Os cabelos mal tratados
eram lisos e também escuros, e mesmo com a falta de trato,
abundantes, embora foscos pela limpeza precária. O nariz
perfeito poderia servir até para se comparar às
nossas deusas gregas, mas a pele estava manchada pelo sol em demasia.
Imaginei, como teria sido bela, se a vida lhe tivesse dado oportunidades
e conforto. Nesse momento, jurei, que haveria de ajudá-la,
sempre no que me fosse possível. E me entristeci ao sentir
como somos tão mesquinhos e mal agradecidos quando temos
um mundo de vida, esperança, amor, ternura, realizações,
ideais concretizados, mesmo que não inteiramente, e perspectiva
para sonhar. Eu me senti uma idiota ali, ao lado daquela mulher
valorosa, e não sabendo apreciar o que recebera ao nascer.
Que recebia elogios com a mesma indiferença que ela ouvia
críticas e desdém. Que me sentia ofendida com uma
palavra quando ela almejava por alguém que se interessasse
pela sua vida.
Saí de lá sabendo que ela esperava outro filho
de um homem bêbado, violento, que a brutalizava para deixar
nela ainda uma criança, que passaria as mesmas e inevitáveis
agruras. Saí de lá imaginando a vida de alguém
que tinha alma, coração, sentimentos, a quem não
deveria ser vedado sonhar e desejar, mas que estava transformada
num robô pronta a sofrer sem a palavra definitiva e final.
Ao entregar uma cesta com alimentos, deixei junto com isso a
minha impotência, porque sabia que a verdadeira alegria
lhe tinha sido negada ou ela estava frágil para procurá-la.
Perguntei-lhe o que queria fazer, se gostaria de passar algum
tempo longe
daquele lugar ou tomar outro rumo, se pudesse, e ela prontamente
me respondeu que sua vida era ali, e não se sentiria bem
em outro lugar.
Lembrando do natal, recordando as mágoas tão sem
consistência que às vezes tomam conta do ser humano,
pergunto-me porque não encaramos a vida de outra forma
sendo capazes de sobrepujar coisas tão pequeninas. E é
no espírito de natal, que quero aprender cada vez mais
com pessoas excepcionais como essa moça, e pedir ao criador
seja qual for o nome que ele tiver, que me ajude nessa íngreme
e pretensiosa missão. Mas principalmente me ajude a ser
menos egoísta, mais, muito mais compreensiva e ser capaz
de ver acima e além das pequeninas coisas que recebemos
e usufruímos.
De nada adiantará pensar e confraternizar o Natal com
o coração afastado do que é a essência
do ser e do viver. Será inútil
tentarmos a confraternização se durante o ano nos
afastamos de tudo que possa significar a profundeza de se doar
e de amar verdadeiramente. Por isso quero aprender. Por isso almejo
me aperfeiçoar. E seguir sem entraves para compreender
realmente o significado da palavra amor. Se conseguir um mínimo
que seja, sei que terei conseguido ser feliz e poderei encarar
meus ideais fundamentados em meu próprio conhecimento do
ser humano.
Vânia Moreira Diniz
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