Textos veiculados na lista "Amigos de Blocos" em  julho de 2001

Sem o sol da manhã
                                                
Todos os dias o sol nasce saudando os verdes campos e morre ao entardecer se escondendo por trás das altas colinas que teimam em beijar o céu, como se fossem pirâmides contemplando a fina teia da história.

Todos os dias a moça de cintura fina e lábios de mel sonha em viver eternamente com seu amado num casebre de madeira lá no alto das montanhas, onde pássaros solenes cantam eternos amores.

Todos os dias poetas tecem palavras desconexas, livres das pontas e dos novelos de lãs brancas e negras e brincam com tristezas e sonhos num velho ritual de magia sem encantos, sem versos, sem rima.

Todos os dias crianças brincam sem fantasia com armas de tiros repetidos, mirando inimigos inventados por adultos loucos e se gabam ao colocar mais um risco na suja coronha que matou o fim de tarde.

Todos os dias religiosos clamam por paz celestial invocando verdades divinas na esperança que homens de boa vontade sorriem juntos olhando em direção ao horizonte no amém do amanhã.

Todos os dias águas rolam por entre pedras eternas e correm juntas em direção ao revolto mar, levando risos calados e pétalas livres das amarras da feia flor do holocausto.

Todos os dias homens de bons costumes se reúnem secretamente para louvar ao Senhor do Universo e se livram por algumas horas de suas chatas esposas que teimam em saber de seus rituais secretos.

Todos os dias mulheres emancipadas e donas de liberdade ainda que tardia morrem de enfarte em filas homéricas de veículos poluidores no sujo trânsito das grandes cidades.

Todos os dias doutores em medicina erguem bebês de provetas nascidos ao longo do inverno sob a tutela de modernos governos e os apresentam aos seus pais dizendo: — "Pais,  esses são seus filhos. Filhos, esses são seus pais."

Todos os dias mendigos cortam o pão nosso de cada dia em pedaços negros como a noite e o jogam em bocas de arena no circo das bactérias para serem devorados pelos ricos homens em rituais de sangue: " — Os que vão morrer te saúdam".

Todos os dias a química dos amores se juntam em desafinada sinfonia e gozam na masculinidade dos amantes enquanto fêmeas soltas se completam nos beijos mortais das mulheres aranhas, sem teia, nem peia.

Todos os dias o castigo impiedoso da carne abate vítimas dos homens sem rituais de louvação em espetos de carneiros e vacas a alimentar o prazer da degustação, onde o vinho não é o Cristo dos homens, nem a hóstia sagrada da eterna religião.

Todos os dias fracos e fortes debruçam seus queixos de merda sobre mãos cansadas e olham decorados azulejos em desenhos marcados na memória, e ao dar a descarga contemplam seus prazeres sumirem no rodamoinho da fertilização da vida.

Todos os dias os anos passam sem se importar se estaremos aqui de manhã, devastando velhas florestas para fazer nascer novos desertos na brincadeira dos deuses, como filhos de Zeus com poderes mágicos sobre o mar e a terra.

Todos os dias pastores abençoam nossa divina existência à imagem do Pai e perdoam nossos pecados assim como perdoamos nossos ofensores, e olham para o infinito com pensamento celestial lançando velha profecia: "O fim do mundo está próximo".

Todos os dias o terceiro planeta do sol apenas gira sobre si mesmo, pouco se importando sobre sua própria existência, apenas reagindo quando lhe cortam em pedaços e não respeitam antiga carne-de-sol.

Todos os dias, com vírgula como cicatriz marcando a testa de Lampião, a noite quando não mais beijar o brilho das estrelas e formos apenas cantigas de luar, a memória finda marcará o futuro sem o sol da manhã.

E, nesse dia, a Terra será apenas pó. Do lugar de onde viemos. Sem dó.

Douglas Mondo