1. A TERRA PROMETIDA
Um dos filmes míticos do Cinema Novo - um polêmico e renovador
movimento responsável por uma geração prodigiosa de
diretores -, São Paulo S.A (1965) é um drama de riqueza estética
e social, misturando documentário e ficção de maneira
fragmentada, usando cortes repentinos, num estimulante exercício
de linguagem. Apoiado argumentalmente sobre a crise existencial de um jovem
empresário vitorioso (Walmor Chagas), perdido num mundo que o leva
a ganhar dinheiro a qualquer custo - numa terra prometida, a São
Paulo em desenvolvimento desordenado e em crescimento industrial, símbolo
então da prosperidade e da abundância. Sua mimada esposa (Eva
Wilma, com a mesma voz inconfundível e fraterna), uma burguesa acomodada,
insiste na continuação de uma posição social
de sucesso financeiro; a ex-amante, a frívola e interesseira Darlene
Glória, provoca-o com seu sentido de luxo e ganhos fáceis;
o sócio, um imigrante italiano que enriqueceu à base de golpes
desonestos, envolve-o num cotidiano corrupto e falso, incluindo o universo
familiar. Com certa habilidade teatral, Walmor Chagas, na época
marido e parceiro profissional da atriz número um do teatro nacional,
Cacilda Becker, concede a expressão angustiada e o desequilíbrio
necessários para expor o inconformismo de Carlos. Walmor, um ator
pouco lembrado, tem méritos próprios. Num texto de Edward
Albee, montado em 99, mesmo sem atuar há anos, ele varria de cena
Tônia Carrero, Luís de Lima e Ítala Nandi.
Filme incômodo e transgressor, agressivo na sua análise
intimista, cronista sombrio da vida, de uma moral atormentada, São
Paulo S/A é também - e principalmente - um canto de amor
ao gigantismo e a desumanidade de São Paulo, captada generosamente
pela fotografia do argentino Ricardo Aronovich, um mestre que em sua temporada
brasileira filmou com Ruy Guerra, Leon Hirzsman e Eduardo Coutinho. São
imagens atormentadas de arranha-céus, indústrias automobilistícas,
a avenida Paulista, o viaduto da Sé, o parque do Ibirapuera, a multidão
anônima, exposições de arte, imigrantes, pregadores
religiosos, estacionamentos futuristas, o subúrbio. É uma
apaixonada crônica de costumes que lembra Yasujiro Ozu em sua poesia
e sinceridade. O diretor e roteirista paulista Luís Sérgio
Person , que morreu em 1976 aos 39 anos, vítima de um acidente de
carro, não passou para a história como Glauber Rocha ou Nelson
Pereira dos Santos, mas sem dúvida com este filme construiu uma
das obras mais sólidas do cinema brasileiro. Dois anos dois, repetiria
o feito em O Caso dos Irmãos Naves, com Juca de Oliveira e Raul
Cortez. Seu talento dramático e pictórico particularmente
ilumina São Paulo S/A na abertura operística, no furioso
e carnal beijo trocado entre os amantes na praia do Guarujá, nos
rostos filmados nas ruas (um recurso usado hoje pelo excepcional Walter
Salles Jr.), à serviço da investigação de uma
cidade (e do homem urbano), numa perspectiva ideológica e vital.
O original ponto de vista da narração é marcado
pela bonita música de Claudio Petraglia e um elenco pontuado por
nomes notáveis em pequenos papéis: Etty Frazer, Silvio Rocha
e Otelo Zeloni (como o vigarista Arturo). Uma sensual Darlene Glória,
antes da explosão definitiva com Toda Nudez Será Castigada
(1974), brilha em closes, molhada, dançando, ou quando canta o refrão
"Soy
pecadora como mujer de filme mexicano". Seria o prenúncio de
um mito cheio de faíscas como Odete Lara, Leila Diniz, Helena Ignêz
ou Adriana Prieto. No entanto, depois da cidade de São Paulo, a
mais comovente protagonista do filme é Ana Esmeralda. Interpretando
a intelectual Hilda (será uma referência a poeta Hilda Hilst,
que na década de 60 tinha vida semelhante naquela cidade?), com
uma presença magnética entre Cleyde Yáconis e Fernanda
Montenegro, constrói um personagem profundo em seu infortúnio.
"Eu devo amar", ela diz. Hilda, a que queria demais da vida, cheira
lança-perfume, tem diversos amantes, veste-se elegantemente e fala
com sabedoria de arte: "Quem não viu Guernica, de Picasso, não
conhece nada de pintura", ensina ao companheiro. O seu suicídio
acelera a insatisfação de Carlos.
São Paulo S/A é o Brasil dos anos 60 e de hoje: o futebol,
a praia, os truques desonestos, a televisão, os valores familiares
banalizados, o emergente poder publicitário, o culto às celebridades,
embora revele uma certa ingenuidade e esperança diferentes do cinismo
e descrença atuais. Atrevido e experimental, com uma opção
estética e visual em aberta confrontação com o enfoque
dominante do cinema brasileiro, uma audaz indignação formal
que propõe novas formas cinematográficas, é radical
e verdadeiramente moderno, belo em sua memória subjetiva exposta,
clássico de referência para o desenvolvimento de um cinematografia
inteligente e harmoniosa. Qual o filme nacional do século vinte
e um que seria capaz de finalizar com o personagem central afirmando alucinado:
"Recomeçar. Mil vezes recomeçar. Recomeçar de novo,
recomeçar sempre. Recomeçar"? Não lembro nenhum,
nem mesmo os mais recentes do experimental Julio Bressane.
São Paulo S/A (Brasil, 1965)
Roteiro e Direção: Luís Sérgio Person
Fotografia: Ricardo Aronovich
Música: Cláudio Petraglia
Montagem: Eduardo Escorel
Elenco: Walmor Chagar (Carlos), Eva Wilma (Luciana),
Ana Esmeralda (Hilda),Otelo Zeloni (Arturo),
Darlene Glória (Ana), Etty Frazer, Silvio Rocha
Antonio Júnior
de Salvador (Bahia)