CINEMA na literaturalogotipo

Em Busca de um Cinema Esquecido

2. ANTROPOFÁGICO OTHON

De modo algo simplista, embora sugestivo, podemos considerar que a evolução da narrativa cinematográfica bressaniana está dividida entre duas atitudes: uma idéia central exposta através de quadros dramáticos e uma composição refinada entre luz e música. Nos seus filmes, não é possível avaliar (nem sequer descrever) uma história que se conta, uma sinopse. Para a justificar, Os Sermões – A História do Padre Antônio Vieira (1989), seria uma sensata escolha.  Podemos, evidentemente, lembrar que este é uma espécie de biopic que funciona ao contrário da tradição, da biografia factual, é mais uma reflexão sobre o cinema e as origens do barroco brasileiro. Aqui, numa forma estilística de vanguarda, a prosa de Vieira se aproxima da poesia concreta, com detalhes visuais luminosos e acentuada audição que namora o silêncio. Há imagens congeladas, repetição sucessiva de uma mesma palavra e um diálogo próximo com o movimento modernista, numa vertigem barroca fragmentada. Dez anos depois, o português Manoel de Oliveira, também de trajetória autoral,  levou o mesmo e polêmico personagem as telas. Palavra e Utopia foi um rotundo fracasso, salvando-se a competente atuação de Lima Duarte como o Vieira no final de vida. O filme de Bressane, pelo contrário, é de uma dinâmica poética encantadora. O cineasta  traçou a biografia de Vieira, um dos maiores estilistas da língua portuguesa, não linearmente, apreendendo o essencial de sua fé, as posições políticas lúcidas, o combate à inquisição e sua dupla ligação com a metrópole, Portugal, e a rica colônia, Brasil. Uma visão nada convencional da vida do padre e escritor. O experimental Bressane (Rio de Janeiro, 1946) misturou trechos de antigos filmes do cinema mudo (principalmente Dreyer e Murnau), história (lembrando, por exemplo, Lampião), a orientação poética de Haroldo de Campos, intervenções de Caetano Veloso e referências à pintura, resultando num filme sólido com extraordinária interpretação do ator baiano Othon Bastos. Figura marcante de clássicos como O Pagador de Promessas (1962), Deus e o Diabo na Terra do Sol (1963), Os deuses e os Mortos (1970) e, mais recentemente, Central do Brasil (1998), Othon Bastos vem de coerente carreira teatral iniciada no Teatro da Universidade da Bahia, com o mítico Martin Gonçalves, e de expressão política-social  no Teatro Oficina, em São Paulo, no final dos anos 60.  Teve seu melhor momento no cinema como o angustiado fazendeiro consumido por dilemas morais, Paulo Honório,  de São Bernardo (1971), de Leon Hirszman, baseado na novela homônima de Graciliano Ramos. O ator mastigava soturnamente as palavras, numa violência contida, nunca a fazendo explodir. Sua atuação em Os Sermões também foi excepcional, recebendo o prêmio de melhor ator no Festival de Brasília. Usa o seu protagonista como se fosse fantasma da sua própria história. Othon Bastos devora impiedosamente as suas criações. Bressane, um dos pioneiros do movimento Cinema Marginal, filmes bonitos e radicais do final dos anos 60, sem preocupação em seduzir o público, é autor de uma obra inventiva, debochada, de competente realização estética e grande incompreensão. Costuma avaliar o seu cinema-manifesto com a frase do cineasta francês Abel Gance: “Cinema é a música da luz”. Filmando com poucos recursos e valiosa agilidade, nunca comoveu o público nem parte da crítica especializada. Mesmo assim, é evidente sua originalidade em filmes como Tabu (1982), Brás Cubas (1985) ou Miramar (1997). Começou como assistente de direção de Walter Lima Jr. em Menino de Engenho (1965) e em 1970, por motivos políticos, exilou-se em Londres, Tânger e Nova Iorque.  Hermético, inventivo, pensador da linguagem cinematográfica, senhor de um estilo rigoroso, exigente, difícil,  está à milhares de distância de um cinema conservador e estagnado, vendável, que imita a televisão. O significativo Os Sermões, com uma elaborada fotografia de José Tadeu Ribeiro, é onde o conceito do diretor se cristaliza: a tendência à extrema abstração, repetidos e longos planos do mar infinito e de árvores imponentes, narrativa lenta, imagens simbólicas, amplitudes de significados nem sempre decodificáveis, a errância por cenários diversos - sinais de um mundo de correspondências, entre tempo e espaço, idéias e imagens.  Dinâmico e criativo, denso, de narrativa anticlássica, é jogo lúdico entre luz e palavra. As frases de efeito, mensagens, aforismas, citações num só plano, tão comuns na criação de Bressane, adquirem densidade e combinam com a verborragia  de Vieira. O ritmo do filme, seus silêncios, sua dramaturgia diluída, sua pontuação narrativa, torna-o complexo, não há como negar. No entanto, não se pode julgá-lo como apenas um filme de citação, de referência, para quem tem um repertório parecido com o autor, afinal a singularidade e o fascínio de Os Sermões passam por outros fatores – passam por tudo aquilo que é específico da sua condição de objeto cinematográfico. Aliás, em rigor, creio que Bressane se vem inserir numa área moderna em que a música, a imagem e a palavra funcionam como modelo, ao mesmo tempo radical e emocional, susceptível de ser recriado de forma inovadora e mais ou menos perversa, pois brinca com a inteligência do público. Seus filmes  sem concessões comerciais existem como se habitassem um sonho sonhado por um deus ausente.

 Os Sermões – A História de Padre Antônio Vieira (1989)
Direção e Roteiro: Júlio Bressane
Fotografia: José Tadeu Ribeiro
Cenografia: Roberto Granja
Vestuário: Bia e Inês Salgado
Música: Lívio Tragtemberg
Montagem: Dominique Paris
Elenco: Othon Bastos (padre Antonio Vieira), Eduardo Tornaghi,
Breno Moroni, Paschoal Vilaboim, Caetano e Dedé Veloso, Bia Nunes.
Produção: Júlio Bressane (Embrafilme)

Antonio Júnior
de Salvador (Bahia}