Sobre o filme "Terra Estrangeira"
(Grande Prêmio do Público, Paris Film Forum 1995)
Direção: Walter Sales e Daniela Thomas
Roteiro: Daniela Thomas, Marcos Bernstein, Walter Salles
Que terra estrangeira é esta abordada pelo filme? Melhor dizendo, que terras são essas, já que o filme se passa entre São Paulo e Lisboa, incluindo portanto brasileiros, portugueses e também africanos de língua portuguesa (com seu linguajar "pretuguês", como ressaltou Walter Salles: as separadas por um oceano?, por um idioma? (: Gosto de sentir e minha língua roçar/ A língua de Luís de Camões", compôs Caetano, por fronteiras geográficas de linhas imaginárias?, por passaportes, por algum tipo de identidade ou conexão? E seriam realmente terras, ou sentimentos apátridas ligados a uma noção de nação holográfica, a uma terra de nenhum lugar, ocupando a totalidade das coisas? Os horizontes de Terra Estrangeira nos remetem a uma série de complexas indagações, com uma simplicidade de quem nos pergunta, com ar inocente: Deus existe? A terra existe? E se existe, é feita de quê: chão ou emoção? Qual a jurisdição pessoal e transferível para cada um delimitar a sua pátria? Uma nação é necessariamente um país?..."Alguém que vi de passagem/ numa cidade estrangeira/ lembrou os sonhos que eu tinha/ e esqueci sobre a mesa/ como uma pêra se esquece/ dormindo numa fruteira// como adormece um rio/ sonhando na carne da pêra" (Milton Nascimento e Ronaldo Bastos, em "Um Gosto de Sol")"A língua é minha pátria/ e eu não tenho pátria: tenho mátria/ e quero frátria" (Caetano Veloso, em "Língua")
A gama de indagações que se faz após a exibição do filme é impressionante, como impressionante também é o clima conseguido pelos diretores/roteiristas de Terra Estrangeira, uma vez que, ao tempo dramatúrgico, é anexado o literário, unindo países diferentes em épocas diversas, através de laços fortíssimos com o movimento saudosista, bem português — e ironicamente modernista, de 1912 — integrado ao banzo, nostalgia mortal e antiquíssima dos negros africanos, ligada principalmente não ao seu país de origem, mas às suas origens, ou seja, ao seu desenraizamento cultural. Neste sentido, Terra Estrangeira também fala de ciganos (que, com a Pragmática na Espanha, ficaram até sem idioma), dos judeus errantes, e de toda uma minoria estigmatizada que na estrada, no caminho, enfrenta preconceitos e dificuldades para defender o que lhe parece fundamental, a liberdade de não ser um ser gregário (e aí a ruptura não é apenas um rompimento feito de rompante, desesperadamente, mas uma violação de algum tácito acordo inaceitável, beirando a desobediência civil — mesmo que inconsciente —, traduzindo-se em um sutil protesto contra a sacralização de determinados lemas e símbolos, e no questionamento da validade social de se "empunhar bandeiras").
Pelos muitos enfoques, Terra Estrangeira lembra-me muito "República dos Sonhos", livro que deu a Nélida Piñon, inclusive, o prêmio Juan Rulfo, no México. Embora com trajetórias e tratamentos totalmente diversos, Madruga é um emigrante espanhol que vem para o Brasil e enriquece, "vence", enquanto Alex, Miguel e Paco são brasileiros que acabam perdendo-se em Portugal, naufragando e meio a tormentas. No entanto, de início, os três têm o mesmo incentivo propulsor que fez com que Madruga desafiasse as ondas: "o sentimento da desordem e da descoberta", e todos sentem a água como condutor e/ou mortalha de anseios, vivenciando-a como símbolo das próprias emoções — frágeis garrafas de vidro com pedido de S.O.S. vagando na superfície de profundezas abissais. É o elemento água apresentado como metáfora poética do útero materno com seus líquidos amióticos e mares de lembranças, cuja perda se extravasa no primeiro choro. Oceanicamente salgado. Diz Madruga, em República dos Sonhos: "O mar é minha memória. Sempre lancei no Atlântico as minhas lembranças. Mesmo aquelas de que hoje me envergonho. Onde estaríamos nós, se o homem europeu não tivesse ultrapassado Gibraltar, enfrentando e vencido o Atlântico? Unicamente o oceano é capaz de nos roubar e igualmente nos devolver a visão descomunal da realidade".
E a realidade é que todos esses personagens centrais — do filme e do livro — foram expatriados de seus sonhos, e se encontram sitiados em uma vida gradeada pelo "aqui-e-agora". Ilhados no presente, estrangeiros são todos os que perderam suas próprias referências pessoais, desvinculando-se da preservação cultural de suas memórias (nelas incluídos fatos, falas, lendas, aspirações, histórias), abdicando do território do seu imaginário, vagando ao léu, prisioneiros de uma diáspora desgastante e por vezes auto-destrutiva. Diante disso, todo cidadão desempregado que morre de fome em sua terra, ou que perde seus valores éticos, ou que se vê desrespeitado em seus direitos humanos, que é assassinado, estuprado, aviltado, seqüestrado, acuado ou castrado (até mesmo em seus projetos artísticos — por exemplo: escritores e cineastas no Brasil), também desbrava esta terra estrangeira, que, em seus perigos e armadilhas, vai acrescentando estranhezas a quem as atravessa, aprisionando e encurralando as pessoas — não mais os personagens — sem medir conseqüências, até que os obriga a viver sem opção, à margem de seus objetivos, sejam eles de ordem estética, espiritual, afetiva, intelectual, ou mesmo prática.
Por tudo isso, Terra Estrangeira para mim não é um thriller, um documento-verdade, um filme de ação, de estrada, ou sobre política brasileira. É um filme que extrapola qualquer rótulo ao aprofundar-se, com extrema delicadeza, em impalpáveis crises existenciais, que explodem em meio a profundas contradições geo-lingüísticas (portanto culturais), expondo a trágica nudez dos personagens, mesmo vestidos de comportamentos agressivos, de dificuldade de relacionamentos afetivos ou de uma falsa couraça emocional, defendendo a fração ideal do solo de seus sonhos, já esbulhados e transformados em miragem inacessível, utópica, aérea, etérea e volátil. Solos de sonhos que cabem no solo de violino de um mendigo cego, inconsciente da própria riqueza (não através de sua música, que é indiferente aos transeuntes, mas através da fortuna em diamantes que seu violino esconde); um pobre a quem, aliás, o filme poupa de ver-se desprezado enquanto artista, ou de saber-se rico, para além de sua arte... Fazendo minhas as palavras de Madruga, o filme "mergulha a mão no fundo dos nossos corações. Mas onde será que fica mesmo o coração humano?"...
Leila Míccolis
Publicado no Jornal Blocos nº 26, de novembro/dezembro 1995, RJ