CINEMA na literaturalogotipo


LEILA, ODETE E DARLENE: SOSSEGA-LEÃO!

“Meu coração é um caçador solitário que caça
em uma colina solitária”
(William Sharp)
Suas vidas foram pura lenda, vidas misturadas com o Cinema Novo, o feminismo e o sucesso profissional. Nos bastidores, rasgavam o coração por homens insensíveis, consumiam drogas desenfreadamente e não seguravam a fama como quem segura um cavalo indomável, descendo ao inferno da frustração, como já havia acontecido com a star Marylin Monroe, que acabou suicidando-se, e muitas outras. Exuberância erótica, angústia, dor, insegurança e sensibilidade formavam o caráter dessas mulheres fascinantes e contraditórias: Leila Diniz, Odete Lara e Darlene Glória. Como todos os nomes míticos, parecem inventados, porém desta vez não é assim, e apenas Darlene nasceu com outro nome, Helena. Elas não suportaram o peso da solidão e cansadas, consumidas, deixaram o cinema e as badalações boêmias em busca da poesia do eu interior. Suas histórias, já contadas muitas vezes, nem sempre corretamente, por jornalistas relapsos, cineastas banais ou elas mesmas. Verdadeira, mas ruim como literatura, é a autobiografia de Odete Lara, Eu, Nua, onde se revela inteiramente.

Nenhuma delas foi atriz de qualidades dramáticas impressionantes, se bem que a tórrida Darlene Glória tenha comovido multidões com a nelsonrodriguiana Geni de Toda Nudez Será Castigada e a angustiada Odete Lara supere-se como a apaixonada cantora de cabaré de A Rainha Diaba. A carioca Leila Diniz (1945-1972), mais uma personalidade que propriamente uma atriz, representou o espírito libertário dos anos 60, tendo tornado histórica uma sincera e apimentada entrevista sua ao jornal O Pasquim, em plena ditadura militar. Vivendo com o cineasta Ruy Guerra, sua morte precoce em desastre aéreo encheu páginas de jornais e sensibilizou todo o Brasil, principalmente por deixar uma filha de colo, Janaína. Ela fez televisão, atuando em novelas de sucesso como O Sheik de Agadir e E Nós, Aonde Vamos?, e teatro, em montagem dirigida por Ziembinsky (O Preço de um Homem, 1962) ou no mega-êxito Tem Banana na Banda, de 1970. Estreou no cinema aos 21 anos com uma comédia clássica de Domingos de Oliveira, Todas as Mulheres do Mundo (1966). Filmou com Carlos Alberto de Souza Barros (O Mundo Alegre de Helô, 1966), Roberto Santos (O Homem Nu, 1967), Nelson Pereira dos Santos (Fome de Amor, 1968, e Azylo Muyto Louco, 1969) e Luís Carlos Lacerda de Freitas (Mãos Vazias, 1972, prêmio de melhor atriz no Festival de Cinema de Austrália).

Ex-cantora de rádio e ex-atriz de circo, a capixaba Darlene Glória levou às telas um vigor e uma vivacidade de um passado como vedete no Teatro de Revista. Nascida em 1943, sua estréia no cinema aconteceu em 1964, em Um Ramo para Luiza de J. B. Tanko. Atuou em filmes geniais como São Paulo S. A.(1965) de Luís Sérgio Person e Terra em Transe (1967) de Glauber Rocha. Mas fez em maior número obras ruins como O Matador Profissional (1968) de Jece Valadão, Os Paqueras (1968) de Reginaldo Faria, A Viúva Virgem (1972) de Pedro Carlos Rovai, e Os Homens que Eu Tive (1973) de Tereza Trautman, inspirado na vida de Leila Diniz e proibido durante muitos anos. Seu melhor momento aconteceu em Toda Nudez Será Castigada (1973) de Arnaldo Jabor, que lhe renderia prêmios importantes, entre eles o Coruja de Ouro de melhor atriz e o mesmo prêmio no Festival de Gramado. “O papel de Geni foi o primeiro que recebi em toda a minha vida à altura do meu talento. Só que, quando eu fui convidada, já estava morrendo. Estava mergulhada num mundo de drogas, vivia à base de cocaína, LSD, maconha e álcool, para escapar a frustração dos meus desencontros amorosos e fiz o filme com ódio, com muito ódio! Depois, quando o filme estreou e fez sucesso no mundo inteiro, já não tinha condições de reagir”, disse numa entrevista reveladora em 1991. Logo depois do drama de época Um Homem Célebre (Miguel Faria Jr., 1974), trocou o cinema pela religião evangélica, numa militância fanática, só voltando às telas 25 anos depois no filme Até que a Vida nos Separe (1999), estréia do publicitário José Zaragosa, e em algumas telenovelas como Carmen (1987) de Glória Perez ou Araponga (1999) de Dias Gomes, Ferreira Gullar e Lauro César Muniz. Há poucos anos confessou que foi estuprada por vários homens quando ainda era menor de idade.

A grande musa do cinema nacional da década de 60 chama-se Odete Lara. Bela e enigmática, incendiava a imaginação do público desde os anos 50, atuando em chanchadas populares como O Gato de Madame (Agostinho M. Pereira, 1956), Absolutamente Certo (Anselmo Duarte, 1957) ou Moral em Concordata (Fernando de Barros, 1959). Nascida em São Paulo, em 1928, de origem italiana, queria ser dançarina e terminou atuando em mais de trinta filmes. O primeiro filme sério, o bergmaniamo Na Garganta do Diabo (1959) de Walter Hugo Khouri, levou-a a uma série de personagens interessantes, existencialistas, angustiados. Com o mesmo diretor fez o talentoso Noite Vazia (1964), ao lado de Norma Benguell, onde formavam uma dupla de prostitutas, que dois amigos atraíam para uma noitada de sexo. Dois anos antes exibiu seu corpo monumental na versão de Nelson Pereira dos Santos para O Boca de Ouro, de Nelson Rodrigues. Esteve também muito bem, em dois filmes de Antonio Carlos Fontoura, Copacabana me Engana (1968) e A Rainha Diaba (1974), este último ao lado do extraordinário Milton Gonçalves. Como a Irene do primeiro, uma crônica realista do famoso bairro carioca, recebeu o Air France e o Coruja de Ouro de melhor atriz. Bruno Barreto transformou-a numa cantora de rádio, Dulce Veiga, famosa e lésbica, em A Estrela Sobe (1974) e com Carlos Diegues atuou no alegóricos Os Herdeiros (1969) e Quando o Carnaval Chegar (1972). Participou do universo de Glauber Rocha em O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro (1968), premiado em Cannes, e Câncer (1968-72), ainda inédito. Trabalhou também com os diretores David Neves (Lúcia McCartney, uma Garota de Programa, 1971), Jorge Ileli (Morrer de Amor, 1973) e Hugo Carvana (Vai Trabalhar, Vagabundo, 1973). Sua última atuação no cinema aconteceu em O Princípio do Prazer (1979) de Luís Carlos Lacerda, mas em 1991 surgiu numa participação especial na telenovela global O Dono do Mundo de Gilberto Braga.

No teatro, Odete Lara fez 15 peças, entre elas Se Correr o Bicho Pega se Ficar o Bicho Come de Ferreira Gullar e Oduvaldo Vianna Filho, em 1966. Verdadeiro mito, teve um certo sucesso como cantora ligada à Bossa Nova, lançando dois discos, e como Darlene e Leila, mergulhou fundo no sexo fácil e nas drogas pesadas, abandonando tudo, inclusive o cinema, pelo budismo e temporadas em mosteiros na Índia, Japão e Estados Unidos. “Angústia e ansiedade na minha vida eram uma constante absoluta. Até certo período, eu ainda tinha esperança de que, se obtivesse muito sucesso esta angústia iria se dissolver. Achava que me sentia angustiada por não me achar realizada, entende? Mas aí, quando tive sucesso, vi que ela não passava, e, pelo contrário, se intensificava. Então procurei dissolvê-la de outra forma, já que não conseguia através da profissão”, desabafou na época do lançamento de Caminhos Para a Paz Interior, livro do monge vietnamita Thich Nhât Hanh, com tradução sua. Hoje, está recolhida em um sítio em Nova Friburgo (RJ), escrevendo, lendo, meditando. Sua vida foi levada às telas por Ana Maria magalhães em Lara (2000). Eu considero Odete Lara uma atriz muito interessante, como um cisne branco. Desde A Rainha Diaba tento desvendar o rosto duro, melancólico e ansioso, ver o avesso da deusa. Conversei sobre ela com o escritor Caio Fernando Abreu, nos meus tempos de São Paulo, já que se conheciam. O autor de Morangos Mofados escrevia um roteiro com o cineasta Guilherme de Almeida Prado pensando nela como protagonista. Não sei no que deu. A bonita novela Onde Andarás Dulce Veiga?, é uma homenagem explícita à atriz. Caio, dono de uma língua ferina, tinha adorações delicadas.

Atrizes de poderosa sensualidade, Leila Diniz, Darlene Glória e Odete Lara marcaram época com carreiras com bons títulos cinematográficos e talentosos diretores, aliando à um desespero interior com resultados inesperados e até trágicos, como no caso de Leila. Machucadas, feridas, rotuladas, infelizes como símbolos da mulher liberada, elas se violentaram terrivelmente, ocas e abandonadas, incapazes de encontrar a satisfação no próprio trabalho. Um universo sem entusiasmo e frustrante, contraditório e enfermo. O mundo dessas mulheres se escondia numa complexidade de espantos, cheio de força e criatividade, que oscila entre a vontade da afirmação artística e do sentimento de opressão, perda, rejeição. O passado e o presente estavam excluídos, eram absurdos; só existia a possibilidade de abandonar tudo e reiniciar a vida de outra forma, com a modéstia de um futuro incerto e diferente, que necessita de tudo, exceto de mentiras. Elas desafiaram a fama e não resultaram perdedoras ao fugir dos anos obscuros em que viviam, nem mesmo a sorridente Leila com a sua morte súbita. Como esquecer a sua imagem de fada do bem, grávida, alegre e de biquíni? São aves raras de uma época em que o cinema brasileiro era um dos melhores do mundo, com o movimento Cinema Novo arrebatando prêmios em inúmeros festivais, e produzindo uma série de atrizes míticas de essência exclusivamente cinematográfica como Luiza Maranhão, Adriana Prieto, Isabella, Helena Ignêz, Irene Stefânia, Anecy Rocha, Norma Benguell e Jacqueline Myrna. Recordá-las é acreditar num tempo em que a arte nacional iluminava mentes e corações.

Antonio Júnior