CINEMA na literaturalogotipo


O FRÁGIL E NECESSÁRIO CINEMA BRASILEIRO

Os mais graves problemas da indústria cinematográfica brasileira são os roteiros capengas, a figuração comprometedora e a falta de salas de exibição. É um cinema que merece ser visto, embora tenha um número limitado de obras de real potencial artístico. Eu procuro garimpá-lo. Quando menino, nas sessões da tarde na tevê, ria com as ingênuas chanchadas de Oscarito e Grande Otelo ou com as comédias caipiras de Amácio Mazzaropi. Das produções pretensiosas da Vera Cruz, admiro O Cangaceiro (1952), de Lima Barreto, o primeiro filme brasileiro a obter êxito internacional, e Floradas na Serra (1954), de Luciano Salce, este talvez pelas presenças impactantes de Cacilda Becker e Jardel Filho e pelas delícias de um melodrama possuído por Douglas Sirk. Adolescente, descobri Bruno Barreto, Carlos Diegues e, principalmente, Arnaldo Jabor. De Bruno, tão impessoal quanto o seu irmão Fábio, vi com prazer A Estrela Sobe (1974) e Dona Flor e seus Dois Maridos (1976), mas revistos há pouco, os encontrei datados, valendo apenas o frescor de José Wilker, Sonia Braga ou Odete Lara. Diegues é um cineasta esforçado, acertando em termos com Os Herdeiros (1969), Xica da Silva (1976) e Chuvas de Verão (1977); unicamente em cheio com Bye Bye Brasil (1979), um dos mais belos filmes da cinematografia nacional. Jabor tem carreira densa e correta, seja no histérico Toda Nudez Será Castigada (1973) ou no sensual Eu Te Amo (1980). No delicado Eu Sei Que Vou Te Amar (1984), centrado nas lembranças e discussões de um jovem casal recém-separado, levou a Palma de Ouro em Cannes de melhor atriz para Fernandinha Torres. Realmente lamentável que tenha trocado o cinema por um jornalismo de olho no próprio umbigo.

Ano passado, no Centro de Estudos Brasileiros, em Barcelona, assisti aos filmes nacionais mais expressivos do século passado, inclusive o pioneiro Humberto Mauro e seus Brasa Dormida (1928) e Ganga Bruta (1932). Não concordo com o título de “nossos maiores cineastas” dado pelos especialistas   - ou não, inclusive estrangeiros -, a Glauber Rocha e Nelson Pereira dos Santos, nem que o cinema nacional atravesse um momento radiante depois dos anos duros pós-extinção da Embrafilme pelo governo Collor de Mello. Produção permanente nem sempre significa qualidade. Glauber é autor de uma única obra-prima, Deus e o Diabo na Terra do Sol (1963), claramente inspirado no russo Eisenstein, e revela chispas de genialidade em Barravento (1961), Terra em Transe (1966) e O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro (1968). O seu último trabalho, A Idade da Terra (1980) é neurótico, desconexo. Nelson Pereira dos Santos comove com Vidas Secas (1963), a comédia Como Era Gostoso o meu Francês (1970) e o drama baseado em Graciliano Ramos, Memórias do Cárcere (1983). É autor também dos aborrecidos Tenda dos Milagres (1977) e Jubiabá (1986).

O Cinema Novo desvendou o país, conseguindo prestígio no mercado internacional e prêmios em inúmeros festivais. Numa época de um clássico falado e acadêmico como O Pagador de Promessas (1962), de Anselmo Duarte, Palma de Ouro em Cannes, surgiram Ruy Guerra com Os Cafajestes (1961) e Os Fuzis (1963), Luís Sérgio Person com  o original São Paulo S/A (1964), Joaquim Pedro de Andrade com O Padre e a Moça (1965) e Macunaíma (1969), Roberto Santos com A Hora e a Vez de Augusto Matraga (1965), Domingos de Oliveira com Todas as Mulheres do Mundo (1966), Maurice Capovilla com Bebel, a Garota Propaganda (1967), Ozualdo Candeias com A Margem (1967), Antonio Carlos Fontoura com Copacabana me Engana (1968) e David Neves com Memória de Helena (1969). São filmes com personalidade autoral, audácia, inquietação. Walter Hugo Khouri e Gustavo Dahl com méritos menores, assinaram peças valiosas como Noite Vazia (1964) e O Bravo Guerreiro (1968).

A origem do cinema de experimentações, com novas possibilidades, inaugurando o cinema intelectual, vem do vertiginoso Limite (1930), com produção, roteiro, direção e montagem de Mário Peixoto. Lembro também do sertão, da caatinga, de Lampião e seu grupo filmados nos anos 30 pelo mascate sírio Benjamim Abraão Jacó. São imagens perturbadoras, com uma luz solarizada, estourada. Um gênero, o documentário, que no futuro daria vida aos impressionantes O País de São Saruê (1971) de Vladimir Carvalho e Cabra Marcado para Morrer (1984), de Eduardo Coutinho, que merece estar em qualquer lista dos dez melhores filmes brasileiros. Nos anos 50, o cinema europeu invadiu o Brasil. Surgiu a civilizada Vera Cruz. Quando vi o insosso O Quatrilho (1995), lembrei desses anos de produções caretas. A figura principal da Vera Cruz, Alberto Cavalcanti, um cineasta brasileiro valorizado na Europa desde o cinema mudo, assumiu a direção geral de produção, supervisionou a construção dos estúdios, trouxe profissionais do mercado cinematográfico inglês e lançou atores. Logo depois, montou sua própria produtora, a Kino Filmes, para realizar três filmes, entre eles, O Canto do Mar (1953).

Com Nelson Pereira dos Santos abrindo caminho para o Cinema Novo com Rio 40 Graus (1955), influenciado pelo neo-realismo italiano, a história do cinema brasileiro quase encontrou uma identidade. Ultrapassando os interesses do mercado, nasceu um cinema com intenções revolucionárias. Pedra fundamental do movimento cinemanovista é o filme de episódios Cinco Vezes Favela (1961), produzido pela CPC/UNE, lançando jovens e prometedores cineastas: Marcos Faria (O Favelado), Miguel Borges (Zé da Cachorra), Carlos Diegues (Escola de Samba, Alegria de Viver), Joaquim Pedro de Andrade (Couro de Gato) e Leon Hirszman (Pedreira de São Diogo). Acusado de alegórico e apelidado de “Cinema do Terceiro Mundo”, deu lugar no final de 60 e parte de 70 ao radical cinema marginal, ou da Boca do Lixo: Rogério Sganzerla (O Bandido da Luz Vermelha, 1968), Júlio Bressane (Matou a Família e foi ao Cinema, 1969), Andréa Tonacci (Bang Bang, 1971), Carlos Reichenbach (Amor Palavra Prostituta, 1979) etc. A Belair, produtora de Bressane e Sganzerla fundada em 1970, realiza uma série de filmes de baixo custo, feitos em esquema ágil de produção. Marcada frivolamente pela pornochanchada, a década de 70 revela alguns clarões com A Casa Assassinada (1970), de Paulo César Saraceni, inspirado numa novela do mineiro Lúcio Cardoso; Os Deuses e os Mortos (1970), de Ruy Guerra; A Rainha Diaba (1971), de Antonio Carlos Fontoura; Mãos Vazias (1971), de Luiz Carlos Lacerda; Os Inconfidentes (1971) e Guerra Conjugal (1974), este adaptado de contos de Dalton Trevisan, de Joaquim Pedro de Andrade; o notável São Bernardo (1971), de Leon Hirszman; Tati, a Garota (1972), de Bruno Barreto; Morrer de Amor (1972), de Jorge Ileli; Os Condenados (1973), de Zelito Viana, do livro do modernista Oswald de Andrade; Lição de Amor (1975), de Eduardo Escorel; Marília e Marina (1976), de Luiz Fernando Goulart; Gordos e Magros (1976), de Mário Carneiro; o desconcertante A Lira do Delírio (1977), de Walter Lima Jr. e O Homem que Virou Suco (1979), de João Batista de Andrade, com um dos nossos melhores atores, José Dumont.

O nosso primeiro grande artista moderno, o baiano Glauber Rocha, encerrado numa fábula selvagem e grandiosa, morreu jovem, em 1981, aos  42 anos, depois de um exílio voluntário em Sintra, Portugal. Não havia mais a noção da câmara em movimento, oscilando, o travelling. Nesse momento infértil, destacaram-se Jabor, o argentino Hector Babenco em Pixote – A Lei do Mais Fraco (1980), uma obra que seduziu muitas platéias e abriu as portas do mercado internacional para o seu diretor, graças a uma história realista e uma fabulosa atuação de Marília Pêra como a prostituta Suely; Ícaro Martins e José Antonio Garcia em O Olho Mágico do Amor (1981); Leon Hirszman com o poderoso Eles não usam Black-tie (1981); Walter Lima Jr com o cândido Inocência (1982); Carlos Alberto Prates Correia em Noites do Sertão (1984), adaptado de Buriti de Guimarães Rosa; André Klotzel com a satírica A Marvada Carne (1985); Suzana Amaral em A Hora da Estrela (1985); Wilson Barros em Anjos da Noite (1986); Caetano Veloso com o godarniano O Cinema Falado (1986); Sérgio Toledo em Vera (1986); Sérgio Bianchi com o cínico Romance (1987) e José Antonio Garcia em O Corpo (1989), de um conto de Clarice Lispector.

Sem a Embrafilme nos anos 90, em três anos foram rodadas unicamente 14 produções. Criou-se o buxixo do renascimento artístico e da produção com o escrachado Carlota Joaquina - Imperatriz do Brasil (1995) de Carla Camuratti, acolhendo mais de um milhão de espectadores. É uma comédia amadora, esquecível, sustentada no equilíbrio perfeito entre Marieta Severo e Marco Nanini. O nosso cinema feminino é banalizado por Gilda de Abreu, Teresa Trautman, Norma Benguell, Tizuka Yamasaki, Carla Camuratti e Sandra Werneck, entre outras cineastas.  Há a sensibilidade  e boas intenções de Ana Carolina (Amélia,1997), Suzana Amaral, Daniela Thomas, Tata Amaral (Um Céu de Estrelas, 1996), Monica Gardemberg (Jenipapo, 1996), Eliana Caffé (Kenoma, 1998), Lucia Murat (Brava Gente Brasileira, 2000), Laís Bodanski (Bicho de Sete Cabeças, 2000), que revelou Rodrigo Santiago, e Lina Chamie (Tônica Dominante, 2001). Ugo Giorgetti (Sábado, 1995) foi uma contribuição importante e pouco comentada. O conjunto de sua obra é compromissado com a geografia de sua própria cidade, São Paulo. Em Uma Outra Cidade, para a tevê Cultura, Giorgetti descreve a metrópole a partir de cinco poetas: Roberto Piva, Jorge Mautner, Rodrigo de Haro, Cláudio Willer e Antonio Fernando De Franceschi. Walter Salles é a principal promessa surgida no final do século XX. Terra Estrangeira (1995) e O Primeiro Dia (1998), ambos em colaboração com Daniela Thomas, são criações genuínas. Seu Central do Brasil (1997) levou o Urso de Ouro no Festival de Berlim e mais 54 prêmios internacionais, e Abril Despedaçado (2001), da novela do albanês Ismail Kadaré, é humanista e poético. O autor revê o documental e a tradição do Cinema Novo, utilizando a criação para dizer algo sobre o país.

Na mesma década dos 90 e nos primeiros anos do novo milênio, brilham A Ostra e O Vento (1997) de Walter Lima Jr. e O Coração Iluminado (1998), de Hector Babenco. Nada mais sério. Djalma Limongi Batista (Bocage, o Triunfo do Amor, 1997), Sérgio Resende (A Guerra de Canudos, 1998) e Flávio R. Tambellini (Bufo & Spallanzani, 2000) são cineastas de olho na bilheteria e pouco inspirados. Os novatos Beto Brandt (Os Matadores, 1997), Aluísio Abranches (Um Copo de Cólera, 1998) e Roberto Santucci Filho (Bellini e a Esfinge, 2001), ainda não disseram a que vieram; Guel Arraes aposta na estética, mas escorrega num arremedo televisivo. Carlos Gerbase (Tolerância, 2000) não inova e Jorge Furtado (Houve uma Vez Dois Verões, 2001) ainda nos deve o filme fundamental que esperamos dele, treze anos depois do aclamado curta Ilha das Flores. Tudo resulta numa proliferação de filmes enfadonhos, previsíveis. Há encanto em Baile Perfumado (1997) dos estreantes pernambucanos da Árido Movie,  Paulo Caldas e Lírio Ferreira; no cômico e inteligente Domésticas – O Filme (2001) de Fernando Meireles e Nando Olival e no sensível e arrebatador Lavoura Arcaica (2001), de Luiz Fernando Carvalho. Existe também o pessoal da produtora Conspiração, com vitoriosas adaptações do universo de Nelson Rodrigues, destacando-se o Andrucha Waddington de Gêmeas (1999)  e do sucesso Eu Tu Eles (2000).

Nota-se que continuamos com alguns diretores competentes, atores que dão conta do recado, roteiros amadores (dá pra acreditar que Patrícia Melo é um dos mais cobiçados roteiristas tupiniquins?), distribuição e exibição ainda mal organizadas – um filme brasileiro estréia com um número de cópias que varia de 50 a 60, enquanto as superproduções norte-americanas chegam com cerca de 150. Um escândalo, afinal isso dificulta a produção de um número cada vez maior de obras nossas, e é preciso experimentar para encontrar o ritmo certo. Eu ponho esperanças em Walter Salles, Andrucha Waddington, Hector Babenco, Fernando Meirelles e Jorge Furtado para um cinema mais comprometido com nossos anseios. E não desanimo, permanentemente interessado no cinema brasileiro, na sua procura incerta de um caminho sincero. Hoje mesmo irei ver Caramuru – A Invenção do Brasil (2001), de Guel Arraes, mesmo sabendo que direi no final da projeção : “Mais que falta de imaginação!”.

OS 13 MAIS

Deus e o Diabo na Terra do Sol (1963) de Glauber Rocha.
São Bernardo (1971) de Leon Hirszman.
Cabra Marcado para Morrer (1984) de Eduardo Coutinho
São Paulo S/A (1964) de Luís Sérgio Person.
Bye Bye Brasil (1979) de Carlos Diegues.
Eles não usam Black-tie (1981) de Leon Hirszman.
Vidas Secas (1963) de Nelson Pereira dos Santos.
Pixote – A Lei do Mais Fraco (1980) de Hector Babenco.
O Primeiro Dia (1998) de Walter Salles Júnior e Daniela Thomas.
A Lira do Delírio (1977) de Walter Lima Júnior.
A Hora e a Vez de Augusto Matraga (1965) de Roberto Santos.
Macunaíma (1969) de Joaquim Pedro de Andrade.
Os Cafajestes (1961) de Ruy Guerra.

Antonio Júnior