CINEMA na literaturalogotipo


MAUÁ - O ÂNIMO DA NACIONALIDADE

        A maneira frívola como a crítica tratou um dos melhores filmes do cinema nacional - "Mauá, o Imperador e o Rei", de Sergio Rezende - revela o pânico/Brasil dos textos da imprensa pseudo- politicamente correta, limitada pela falta de luzes e, muitas vezes, pela má-fé, dos seus articulistas. Caíram de pau no roteiro, mas tiveram o cuidado de elogiar a reconstituição de época, como se os autores deste filme brilhante merecessem um tapinha na cabeça, idêntico ao que se reservava aos escravos. Mauá é um filme raríssimo. É talvez o primeiro filme bem sucedido sobre política e negócios do Brasil. O que se costuma ver quando há a abordagem aos bastidores do poder são resquícios do teatro amador, quando inevitavelmente os diálogos e personagens obedecem à caricatura preconceituosa dos cineastas e roteiristas. Em Mauá acontece o contrário.

        O maior ator brasileiro de todos os tempos - Othon Bastos, no papel do Visconde Feitosa, é uma contundente encarnação do Mal do nosso cinema e não uma reles caricatura, como disseram os críticos. Othon Bastos é o mestre da concentração e sua oposição a Mauá é a metáfora maior do filme. Quando Othon Bastos aparece em cena, todo mundo deveria ficar de pé. Não há desempenho maior do que o dele no papel de Corisco, o ambíguo anti-herói da obra-prima de Glauber Rocha, "Deus e o Diabo na Terra do Sol".

        Começo por Othon para chamar a atenção para Paulo Betti, perfeito no papel de Mauá, emocionante no seu entusiasmo por um projeto de país por meio da vocação empresarial. A garra e o talento de Betti sobram também na cena mais emocionante deste filme sobre o poder, que é o encontro de Mauá/Betti com o amor da sua vida, no cais, quando Malu Mader/May chega vestida de branco do Rio Grande do Sul e revela sua doçura e o amor à primeira vista na troca de olhares.

        Mas não é politicamente correto emocionar-se com a vida de Mauá, já que ele encarna o que "há de pior" no mundo, a figura do (toc,toc,toc) "empresário". No Brasil, empresário é nome feio. Portanto, pau no filme, que escolheu a metragem de 135 milímetros para um projeto tão ambicioso e soube prender a atenção do espectador até final por meio de um ritmo onde todo excesso é debastado e onde os cortes não obedecem à obviedade da continuidade, mas privilegiam a intensidade dramática.

       Os detalhes - morada de Deus - não devem ser frívolos no comentário cinematográfico. Por isso, deixemos de lado o óbvio - por exemplo, destacar o cuidado com os figurinos e o cenário (que insistem em chamar de reconstituição de época - épocas não se reconstituem, o que existem são os instrumentos visuais em função da narrativa, e nisso Mauá é imbatível). Esse entorno, que fazem parte do essencial do filme, precisam ser perfeitos e a nova fase do cinema nacional - com o diretor Sergio Rezende à frente - tem dado mostras que aprendeu o ofício.

        O detalhe que importa são os atores. É preciso destacar Antonio Pitanga, o escravo Valentim que é alforriado por Mauá - o segredo desse ator maravilhoso é que ele acredita em Brasil e acredita em cinema nacional; é que é um ator de primeira linha que sempre soube imprimir excelência nessa área que chamam de coadjuvante; é a perfeição técnica mascarada em força de natureza; é a empatia da sua expressividade que imanta a história do cinema nacional desde os anos 60. É preciso também destacar o ator que faz o jovem Mauá - cruel e determinado na sua cara de menino; e novamente Malu Mader, deslumbrante e contida na sexualidade, explícita e recatada, presença admirável num filme que merece a qualificação de obra-prima.
 
 

    Exageros? Certamente. Um deles é o desbaste dos defeitos do herói para privilegiar a coerência de sua biografia. Mas o Brasil precisa dessa luz definida sobre seus personagens. Por que não? Enquanto, na maior cara de pau, os americanos no inundam com suas veleidades patrióticas, nossos protagonistas culturais enchem-se de dedos quando o assunto é nacionalismo e patriotismo. E isso que Mauá tem o cuidado de mostrar todas as relações do empresário do império como empreiteiro e como sócio e aliado dos ingleses. Mas o que conta são as nuances dessa trajetória (sua briga com Rotschild é exemplar; ou mesmo seu arrependimento do seu envolvimento com o Uruguai). A atuação dos ingleses no drama é esclarecedora, como de resto todo o filme, que se pretende didático, sem jamais cair na chatice.

        Mauá, o filme, merece ser elogiado indefinidamente, porque trata o Brasil com o espírito da maioridade, porque respeita o espectador, porque é um conjunto de acertos. Jamais pode ser chamado, como foi, de monótono. É um crime desqualificar este filme, que ironicamente acaba sofrendo o mesmo processo experimentado por Mauá: o da incompreensão. "Há um sabor que nosso tempo (talvez farto das toscas imitações perpetradas pelos profissionais do patriotismo) não costuma perceber sem certo receio: o elementar sabor do heróico", diz Borges em "O pudor da História"", texto de 1952 inserido no volume "Outras Inquisições".

        Mauá resgata o heroismo e inspira-se na idéia de pátria, sem cair na armadilha da xenofobia. Sua integridade vem da excelência do ofício (o cinema exercido com a aura da melhor carpintaria), iluminada pela idéia de nação que, sem esconder o conflito, concebe sua inteireza e permanência a partir de uma biografia. Esta, na tela, é tornada ilustre pela evidência da sua obra, e eterna pela injeção de ânimo que inspira na carne morna do estado atual da nacionalidade.

Nei Duclós
 


 

Email do diretor Sérgio Rezende sobre este artigo

Caríssimo Nei: Navegando pelo mar revolto da internet cheguei ao bom porto do seu site. Rapaz, que alegria você me deu com seu artigo sobre o Mauá. Tenho 51 anos, mas reagi como criança. De fato, o que você coloca sobre as reações ao filme são a expressão absoluta dos fatos. Nunca apanhei tanto na vida. A gente veste a couraça - o que é péssimo, definitivamente - e toca em frente.

Sua análise lavou minha alma. Porque você viu o filme. Um incauto pode achar pouco, mas encontrar um homem capaz que veja nosso trabalho - goste ou não goste - é o que de melhor nos pode acontecer. Aconteceu. Repito: lavou minha alma.

Grande abraço

Sergio Rezende

P.S.: Brinco sempre com Othon Bastos, dizendo a ele que daqui a 500 anos, quando abrirem a caixa de chumbo com a memória do cinema brasileiro, o óbvio ficará evidente: Othon é nosso maior ator. Um Othon basta.

Fonte: http://www.consciencia.org/neiduclos/jornalismo/maua.html
(com autorização do autor)