Essa história começa em 1978, no aeroporto de Lisboa, quando a cientista política Maria Helena Alves foi visitar o irmão, o jornalista Marcio Moreira Alves, então exilado em Portugal. Na hora de embarcar de volta, um jovem casal pediu-lhe que trouxesse o filho de três meses e o entregasse à avó para cuidar. Com leucemia (os médicos lhe davam seis meses de vida), em dificuldades financeiras, a mãe não tinha como mantê-lo. Ela e o marido eram refugiados políticos.
Condensando uma época, o drama virou um filme de oito minutos, “Leucemia”, de Noílton Nunes, que ganhou prêmios em festivais e ajudou a campanha pela anistia. Resumia-se à cena do aeroporto, filmada em preto-e-branco, num clima de sufoco bem anos 70. A imagem final é o grito pungente da mãe que tanto impressionou Maria Helena.
Vinte e cinco anos depois, o rapaz, José Júlio, mora em Madri e a mãe, Maria das Graças Senna, de 53 anos, trabalha com cinema no Rio. Sua sobrevivência é quase um milagre. A leucemia foi descoberta durante uma de suas várias prisões, quando permaneceu um ano no presídio da Papuda, de onde foi transferida para o Hospital Militar de Brasília, a fim de tratar das seqüelas deixadas pela tortura. Chegou a pesar 37 quilos. Lá, o médico assustou-se ao perceber que as feridas não cicatrizavam. Abandonada nas imediações da cidade de Guará, foi recolhida por alguém que a levou para o Hospital de Sobradinho. Depois de se restabelecer, veio para o Rio e com a ajuda de amigos conseguiu deixar o país.
Maria da Graça continua trabalhando, mas à custa de padecimentos: sofre de vômitos freqüentes, desmaios e, de vez em quando, precisa de internamento hospitalar, como aconteceu há pouco. Para entrar no ambiente frio das ilhas de edição de filmes, ela tem que enrolar as mãos com gazes.
Os remédios muito caros, as dores fortes e permanentes, o dinheiro insuficiente, ela aguarda que a Comissão de Anistia do Ministério da Justiça atenda ao seu pedido de reparação e lhe conceda os benefícios previstos em lei, já que, na época da prisão, trabalhava como pesquisadora em um Instituto de Pesquisa e foi demitida em conseqüência de sua atividade contra a ditadura. Como argumenta seu advogado no pedido de reparação, além das prisões, da tortura e do exílio, ela foi impedida de exercer suas atividades profissionais por motivos exclusivamente políticos. Assim, por justiça e absoluta necessidade, poucos merecem como ela o que reivindica.
Zuenir Ventura
Fonte: O Globo On Line, de 20 de agosto de 2003
(quarta-feira)
Enviado por: Leninha